Mostrar mensagens com a etiqueta Norberto Tavares de Carvalho. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Norberto Tavares de Carvalho. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2011:

Queridos Amigos,
Conclui-se assim a recensão sobre as memórias do comandante Bobo Keita. Importa reconhecer o seu olhar peculiar sobre a vida da guerrilha em que esteve envolvido tantos anos. Envolveu-se em controvérsias, desamores e não esconde ressentimentos. É claramente desprimoroso com as tropas portuguesas no Leste, após o reconhecimento da independência, carece de contraditório. E se a caso se vier a demonstrar que Osvaldo Vieira abençoou a conspiração de Janeiro de 1973, em Conacri, é escusado continuar a bater no ceguinho de que a PIDE foi o braço-longo e o cérebro da operação.
Seria bom que pessoas responsáveis e que ainda estão vivas, caso de António Fragoso Allas, o dirigente da DGS em Bissau, viessem depor com documentos na mão. Compete a portugueses e a guineenses apresentarem provas, ambos estão comprometidos com a verdade histórica.

Um abraço do
Mário


Bobo Keita: do assassinato de Cabral à entrada em Bissau, em 1974

Beja Santos

O que o comandante das FARP Bobo Keita nos conta em “ De Campo em Campo, Dos Estádios de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde” (edição do autor, 2011) quanto ao período próximo do assassinato de Cabral poderá ter a maior importância caso venha a ser confirmado por outros testemunhos. Mas há uma relativa nebulosa ou vontade de não comentar em profundidade tudo quanto estava a ver quando chegou a Conacri, vindo da União Soviética. Diz que a situação estava caótica mas não explica porquê. As coisas não estavam bem em Conacri e aponta imediatamente para os nomes de Momo Turé e Aristides Pereira, dá-os como recrutados por Spínola e mobilizadores de todos aqueles que tinham sido castigados. Em Conacri recebe uma informação de que fora designado como novo comandante dos tanques anfíbios, sucedendo a Inocêncio Cani, comprovadamente o conspirador que primeiro atirou sobre Amílcar Cabral, na noite de 20 de Janeiro. Recebido na véspera do assassinato pelo próprio Cabral, este revela-lhe que tinham acabado de sair do seu gabinete os embaixadores da Tanzânia e da Argélia que lhe deram a informação que as autoridades de Bissau tinham fechado a zona de Cacine e preparavam um novo golpe contra a República da Guiné, era um plano que incluía a eliminação da sua própria pessoa.

Em 20 de Janeiro, Bobo deixa Conacri na companhia de José Pereira, representante do PAIGC em Boké, é para ali que ambos se dirigem. De madrugada, foram convocados pelo governador de Boké, são informados do assassinato do líder e que entretanto um barco saíra de Conacri levando a bordo Aristides Pereira, feito prisioneiro. Deu-lhes a entender que esse barco se dirigia para Cacine e deveria passar por Boké. O que nos relata sobre o assassinato de Cabral é o que já consta de outros testemunhos, Norberto Tavares de Carvalho cita abundantemente Oleg Ignatiev que, como veremos oportunamente, é parcialmente contraditado por outros testemunhos como o de Oscar Oramas, o embaixador cubano em Conacri.

O relato imprevistamente descamba nas negociações entre autoridades portuguesas e o PAIGC e depois Bobo dá a sua opinião, muito crítica, sobre a alegada clivagem entre guineenses e cabo-verdianos, desmente-a categoricamente, não deixando porém de referir que os cabo-verdianos têm, todos eles, missões de desempenho muito elevado, desde artilharia passando por mísseis terra-ar, direcção política e outras actividades que requeriam elevada formação ideológica ou militar. Estiveram nas frentes de combate mas em lugares seleccionados, di-lo explicitamente: “Lembro-me de uma vez, quando atacámos Gadamael em força, estavam ali eles, ao nosso lado, a manejar com perícia os morteiros 120. Quem esteve presente e não se lembra de João José (o Jota Jota) no assalto a Guileje? Este cabo-verdiano, hoje radicado nos EUA, deu mostras e provas de um espírito de combatividade e de técnica no manejo das peças de artilharia que contribuiu para que Guileje não resistisse às nossas forças. O Julinho de Carvalho esteve sempre ao pé das Katyuissas e dos morteiros. O Tchifon tratava por tu tudo o que era artilharia. O Manecas era também especialista no manejo das Katyuissas e dos morteiros”. Depois o relato volta aos acontecimentos do assassinato, Cani chega a Boké, afinal não foram os barcos soviéticos que o detiveram no alto-mar, como por vezes se vê escrito, foi detido ali. Cani, segundo Bobo Keitá, iria a Boké ajustar contas com José Pereira, fora este que investigara os actos ilícitos que teriam levado à sua expulsão do Comité Executivo da luta do PAIGC, tempos atrás. O livro é outra vez reconduzido a Oleg Ignatiev e a um conjunto de fantasias como a não comprovada implicação da PIDE em Lisboa na chamada operação “Rafael Barbosa”, de que não existe qualquer indício ou prova documental.

O relato volta a dar uma guinada, vai para aviões de caça, mísseis o relato da independência unilateral, a operação “Amílcar Cabral” que envolveu Copá, Guidaje e Guileje e, por arrastamento, Gadamael Porto. E dá nova guinada para críticas a Nino Vieira com quem se incompatibilizou à volta do golpe de Estado de 1980. Estranhamente, parece ignorar o que se passou de facto na morte dos três majores no Jolmete, em 20 de Abril de 1970 e estamos chegados aos acontecimentos posteriores ao 25 de Abril.

Em Agosto de 1974 é assinado o acordo de Argel. Bobo regressa à Frente Leste e afirma desabridamente: “Eu resolvi fazer uma astúcia. Escolhi o quartel de Buruntuma. Preparámos a operação e organizámos um assalto em simulacro. Fizemos tudo para que a tropa portuguesa tivesse conhecimento da operação. Mandámos avisar a população e os elementos do Partido para que abandonassem Buruntuma pois íamos atacar aquela população”. O comando de Buruntuma não percebe o que se está a passar, contacta o PAIGC, dentro do bluff Bobo comunica que as tropas portuguesas têm duas horas para sair. No dia seguinte, as tropas portuguesas saem para Piche, só lá fica a milícia. Bobo Keita, recorrendo a este estratagema, diz ter conseguido libertar seis pequenos quartéis e que entretanto começaram as dissensões entre oficiais superiores e Carlos Fabião. Adoptou, diz ele, uma postura agressiva, estende a Bafatá e a Bambadinca o controlo de carros. Em Pirada, tendo sido informado da sublevação das milícias, procede a execuções. Afirma ter dado ordens ao oficial de Pirada. E não esconde que há populações e tropas africanas que se põem em fuga para o Senegal. Em Setembro, entra em Bissau, foi nomeado Comissário Político da região e afirma: “Eu é que organizei a retirada definitiva de Bissau dos últimos elementos do exército português”.

Assim termina o relato na primeira pessoa do singular. Segue-se uma listagem de guerrilheiros que caíram em combate, o posfácio do nosso camarada António Marques Lopes, que teve a gentileza de me enviar esta obra para recensão. Em anexo, consta o texto dos acordos de Argel e uma cronologia de factos e feitos da história da Guiné.

Estamos perante um testemunho que nalguns pontos-chave carece de contraditório: se é facto que Osvaldo Vieira passou uma boa parte do dia 20 de Janeiro de 1973 na companhia de Inocêncio Cani, e que razões determinaram a saída daquele guerrilheiro histórico da direcção do PAIGC; o guerrilheiro, à semelhança de outros depoimentos, refere que Conacri, ao tempo da conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral, era um local irrespirável quanto a intrigas e a rumores de conspirações, mas não se dá substância à natureza do que se fala, os nomes que se põem na mesa são os de Momo Turé e de Aristides Barbosa, ninguém acredita que estes dois quadros em estado de “regeneração” prepararam e executaram uma conspiração que envolveu largas dezenas de quadros guineenses; e porque continua ausente uma resenha histórica de tudo quanto se passou na Guiné entre 25 de Abril e a saída das tropas portuguesas, ao menos que os protagonistas que viveram os tais episódios que Bobo Keita refere em Buruntuma e outros locais nos transmitam a versão dos acontecimentos, parece essencial começar a clarificar o que foi de facto o entendimento sobre os acordos de Argel no território guineense, como se viveu esse período tão conturbado.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
O confrade António Marques Lopes confiou-me esta leitura.
O Cote ou Norberto Tavares de Carvalho teve o inegável mérito de recolher da boca de Bobo Keita informações de grande valor pessoal, captou o seu olhar sobre os acontecimentos na viragem dos anos 50 para os anos 60, sente-se a confiança do jovem guerrilheiro a propagar a mensagem de Cabral.
Não se entende a metodologia que desorienta mais o leitor ao invés de o motivar. As memórias batem certo quanto à chegada de armamento e às múltiplas dificuldades nos primeiros anos da luta. Há omissões ininteligíveis, corre-se rapidamente dos anos 60 para os anos 70, há uma infinita pressa em chegar ao assassinato de Amílcar Cabral. Nas entrevistas é obrigatório um corpo-a-corpo com o entrevistado, em momentos cruciais somos arrastados pelo que Bobo quer dizer com a agravante de o Cote nos encharcar com notas e esclarecimentos.
Podia muito bem ter sido de outra maneira, para bem de todos.

Um abraço do
Mário


Bobo Keita: Memórias valiosas de um guerrilheiro errante

Beja Santos

Ninguém nos conhece que as memórias dos guerrilheiros do PAIGC mal cabem nos dedos de uma mão. “De Campo em Campo, Conversas com o comandante Bobo Keita, por Norberto Tavares de Carvalho, edição de autor, 2011 (notaca-ocote@hotmail.com) é um registo de todo um percurso, dá para medir o pulso a uma trajectória, a um modo de ver e fazer a revolução e de a apreciar, desencantado, ao longe e já com poucas forças. Vale pela intensidade das memórias da juventude, para se perceber como se recrutava um jovem guerrilheiro, como evoluíram as etapas da guerra, o que ele pensa do assassinato de Amílcar Cabral e qual o âmago do diferendo entre guineenses e cabo-verdianos, por exemplo. O guerrilheiro participou activamente na alvorada da independência, faz declarações profundamente críticas quanto ao comportamento das tropas portuguesas – só neste domínio era importante que os actores da época clarificassem com os seus depoimentos o que realmente se passou, o guerrilheiro, mesmo pelo facto de já ter falecido, tem que ser submetido ao contraditório, os militares também têm honra.

É muito discutível a metodologia usada por Norberto Tavares de Carvalho, interrompe repetidamente as memórias do guerrilheiro com explicações que muito bem podiam aparecer em notícias de rodapé ou em anexo, cansa o leitor, quebra o ritmo, tantas fontes como as obras citadas revelam escassez de investigação, tudo leva a querer que Bobo Keita faz revelações dignas de melhor tratamento.

O guerrilheiro enche-se de orgulho a falar das suas raízes, lembra Amadu Djaló a conversar com Virgínio Briote: “Chamo-me Bobo Keita, sou o primeiro filho de Fofana Keita, alfaiate, e de Mbália Turé, mãe e doméstica. O meu pai nasceu na tabanca de Dabis, região de Boké. Os meus avós pertencem à tribo dos Landoma. O meu pai herdou dos seus progenitores a fé, o respeito e a confiança no divino. A minha mãe pertence à etnia Sosso da parte do pai e Papel de Safim da parte materna”. Depois o orgulho da infância, de participar nas obrigações familiares: “Lembro-me do meu quotidiano feito de vaivéns de tecidos e de panos que o pai transportava cuidadosamente do mercado e do ruído insistente da sua máquina de costura que só se calava quando a mãe anunciava a hora de comer. E tudo aquilo me fascinava e punha-me a sonhar que um dia viria a ser alfaiate como ele. Até que, vendo a paixão que eu manifestava observando os seus gestos, resolveu ensinar-me a profissão”. Vai ser um futebolista conceituado, aos poucos ganha percepção do que é o poder colonial, o que distingue um “civilizado” de um indígena, a natureza da hierarquia instituída: os que tinham bilhete de identidade, os grumetes portadores de apelidos portugueses, o gentio constituído só por indígenas. Fala em Rafael Barbosa e Momo Turé, e em 1960, com vinte e um anos, parte para a luta armada, vai para Conacri, aqui conhecerá Cabral, fica instalado no lar do PAIGC, nesta altura as duas primeiras fornadas de combatentes já tinham sido preparadas na China. Estavam lá há quinze dias quando regressou a segunda fornada constituída, entre outros, por Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Manuel Saturnino da Costa, Victorino Costa, Nino, Francisco Mendes e Constantino dos Santos Teixeira.

Descreve a sua preparação, as desconfianças de Sekou Turé, as disputas do PAIGC com os movimentos rivais, tanto na Guiné-Conacri como no Senegal, e parte para a sua primeira missão, no Norte, entre 1961-1962, esteve no chão dos Felupes, junto a S. Domingues, foram aparecendo as armas e regista detalhadamente as muitas dificuldades vividas devido às reticências das autoridades senegalesas.

As perguntas e respostas andam por vezes em ziguezague, o leitor, desnorteado, entra de chofre no Congresso de Cassacá e na formação do exército guineense. Toda esta informação confirma outros relatos já produzidos sobre a génese da orgânica da guerrilha após 1964. Bobo Keita é um guerrilheiro da frente Norte, anda por Binta e Guidage, a base era Sambuiá. Em Junho de 1968 é ferido e evacuado para Moscovo e depois regressa à frente Norte. Frequentou seminários em Conacri e depois foi para a Jugoslávia. No regresso, ofereceu-se para ficar nas regiões de Xime, Bambadinca e Xitole, aqui passou nove meses, vinha substituir provisoriamente Mamadu Injai, reorganizou a quadrícula: “A primeira medida que tomei no Leste foi acabar com a base central onde se concentrava toda a guerrilha e que daí procedia a longas marchas para ir atacar os quartéis. Além disso, na base central concentravam-se as milícias e havia uma certa confusão. Existia também o risco de que qualquer ataque do inimigo pudesse causar muitas baixas na base, devido a tamanha promiscuidade. Formei três destacamentos e um comando móvel. Com a nova organização, a população estava mais segura. Criei um depósito dos Armazéns do Povo. Com isto consegui criar uma nova vida nessa região”. Em Outubro de 1971 acompanha Amílcar Cabral numa viagem à União Soviética. No regresso, tendo-se intensificado a guerra no Sul, Cabral achou pertinente enviar um grupo de comandantes para reequilibrar a situação.

No final do ano de 1972, Cabral informa que alguns camaradas tinham sido presos (Aristides Barbosa, Momo Turé e o seu irmão Baciro). E comenta: “Esses camaradas tinham sido presos porque desenvolviam no seio dos militantes, em Conacri, actividades de mobilização contra a direcção do Partido, explorando de maneira perigosa as velhas rivalidades entre guineenses e cabo-verdianos”. Para Bobo Keita, esses camaradas teriam sido recrutados por Spínola, a sua missão era alargar o descontentamento. Em 20 de Janeiro de 1973, tendo de regressar a Boké, juntamente com Inocêncio Cani, foi despedir-se de Amílcar Cabral e este disse-lhe que tinham acabado de sair do seu gabinete dois embaixadores acreditados em Conacri que lhe tinham dado informações de que os portugueses tinham fechado a zona de Cacine e preparavam um novo golpe contra a República da Guiné: “Disse-me que os portugueses previam libertar os prisioneiros capturados pelo Partido e levá-los para Cacine bem como os homens do PAIGC que teriam capturado durante a operação. Que o plano deles incluía também a eliminação da sua própria pessoa”. Segundo Bobo Keita, a situação em Conacri estava caótica.

E ficamos por aqui, seguir-se-á o episódio do assassinato e daí partiremos para a independência e todo mais que se seguiu, até Bobo Keita, em colisão frontal com Nino, se ter afastado da Guiné-Bissau.

É um relato com muitos altos e baixos, seguramente que Bobo Keita teria muito mais a dizer sobre a evolução da guerra, ele conheceu perfeitamente a frente Norte e viveu largos meses na frente Leste. Há notoriamente silêncios, beliscadelas e sentimentos feridos. Não se lhe pode assacar a responsabilidade de exibir fontes escritas, ao que parece o manancial da documentação estava em poder de Cabral e do secretariado político. Mas estes comandantes recebiam documentação, nunca a invocam e muito menos a exibem. O que nos leva permanentemente a questionar como é que se vão cozer todas estas peças constituídas por depoimentos que mais ninguém valida.

(Continua)
____________

Notas de CV:

Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:

24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho

25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho, guineense da diáspora (vivendo na Suíça) (*)...


Bobo Keita (abreviadamente, BK) estreou-se no Leste, para onde foi destacado por Amílcar Cabral para fazer “trabalho político”. A data é imprecisa: mas terá sido em Outubro de 1961. Não sabemos quais os critérios usados na escolha, se é que os houve: de qualquer modo, BK era muçulmano e o leste era essencialmente habitado por população islamizada.

Numa das tabancas (fula ? mandinga ? balanta ? beafada ? ),  ele e os seus camaradas foram recebidos, aparentemente,  com hospitalidade e boa fé, para logo de seguida serem denunciados às autoridades locais. Tiveram que fugir, debaixo de fogo dos tugas (não sendo claro se estes eram forças do exército ou, mais provavelmente, polícia administrativa, sabendo-se que ainda eram escassos os militares, metropolitanos, estacionados no território em 1961).


Foi o batismo de fogo do BK, embora sem consequências de maior. Desta vez ninguém foi ferido ou preso.

Mas o “Cabral mandou-nos regressar a Conacri”… A estreia tinha sido desastrosa… “Era urgente redefinir a estratégia de mobilização” (p. 68).


Em 1 de outubro de 1961 morreu-lhe a mãe, que o tinha ido procurar a Ziguinchor, no Senegal, preocupada com a sorte do seu filho de quem se dizia que passava mal em Conacri. Constava que BK ia ao Senegal “carregar bananas para subsistir” (sic) (p. 69). Em Ziguinchor a mãe acaba por não encontrar o filho e, pior, morre de doença súbita.


Na época os militantes do PAIGC não circulavam livremente no Senegal. Cabral arranjou um salvo-conduto para BK ir ao choro de sua mãe. BK é preso no aeroporto de Ziguinchor. Com alguma sorte e esperteza, acabou por ser solto. E teve tempo de passar alguns dias com a família que tinha hospedado a sua mãe. Quase meio século depois, BK recorda, emocionado, esse momento:

“Embora me tivesse preparado psicologicamentre, não pude conter as lágrimas quando me remeteram os seus pertences. Nesse dia, fui invadido por uma profunda emoção e chorei a morte da minha mãe que nunca mais veria” (p. 71).

BK volta a Conacri. Retoma o trabalho de mobilização, sendo destacado desta vez para uma vasta região que ia do Cacheu até ao Óio, incluindo as zonas de "Varela, Susana, Subijac, Bassarel, Elias, Bobonda, D. Domingos, Apiudjo, Sedengal, Bigene, Binta, Farim, Cuntima e Ingoré". Foi na época de 1961/62. 

"Contrariamente ao que se passou na zona leste onde fomos denunciados logo à chegada, aí tivemos francos sucessos. Estávamos mais à vontade no norte” (p. 75).


Esta foi, em boa verdade, a “primeira grande missão” confiada ao antigo titular da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, agora transformado em militante nacionalista. Em Conacri,  Amílcar Cabral marcava pontos, ao ver reconhecido por Sékou Turé, o seu Partido Africano para a Independência (PAI) como "o único representante legítimo dos povos da Guiné e de Cabo Verde". (Isto terá sido em 1962, mas o BK diz que foi em 1961). Na realidade, os estatutos do PAI são revistos em janeiro de 1962. E só a partir de agosto de 1962 é  que a sigla PAI passa a ser substituída pelo acrónimo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

Perdedores deste braço de ferro, travado em Conacri,  foram o MLG (Movimento de Libertação da Guiné) e a FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), ambos criados por François Mendy, um manjaco, de nacionalidade francesa, e antigo expedicionário na Argélia, em 1959 e 1962, respetivamente. 




Fotograma do filme Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, com 39' de duração. Guerrilheiros do PAIGC, no Morés. Em primeiro plano, um  deles empunhando uma Patchanga; e um outro, uma Ricco... Filme projetado no doclisboa2011... Foto de Luís Graça (2011).

Por outro lado, no interior da Guiné, a luta clandestina não era fácil.  O ano de 1962 é de grande repressão. Em fevereiro de 1962 há uma vaga de prisões levadas a cabo  pela PIDE.  O histórico Rafael Barbosa é detido. 

Eis o relato do BK em relação às dificuldades desse ano, experimentadas no interior do território:


"(...) Em 1962 os tugas lançaram uma grande campanha de prevenção no interior da Guiné. Não podíamos nem estacionar num lugar para fazer o trabalho de mobilização. Pior ainda era que não tínhamos armas naquela altura, as frentes de combate ainda não estavam constituídas. Tirávamos as sandálias de plástico,  e andávamos descalços, porque os tugas observavam os pés e tinham informações de que os guerrilheiros de Cabral  usavam sandálias de plástico... Diziam que eramos 'terroristas', chamavamn-nos 'turras', bandidos." (p. 76)


BK e os seus camaradas só em 1963 (princípios ?) receberam as primeiras armas: 1 pistola metralhadora PPSH 41, calibre 7,62 mm, com tambor de 72 munições, de origem soviética; 1 espingarda semi-automática, Simonov, de calibre 9 mm, com capacidade para 30 munições, e igualmente de origem soviética; e ainda 25 granadas ofensivas.


A PPSH, a que chamávamos “costureirinha”, foi batizada por BK e seus camaradas como “Patchanga”, que era então um estilo de música tipo salsa, latinoamericano… A alcunha tem a ver com “os discos Patchanga que nos faziam dançar em Bissau” (p. 78). A Simonov, uma arma mais pequena, por sua vez, foi batizada como “Ricco”… Explicação ? 


“Havia a música congolesa do conjunto Ricco Jazz cujos discos de 45 rotações, os mais pequenos, faziam dançar Bissau” (p. 78-79).


Essas primeiras armas vieram de Marrocos, diretamente de Rabat para Conacri. Mas o carregamento,  que vinha camuflado, acabou por ser descoberto, devido ao arrombamento de uma das caixas por uns vulgares ladrões que procuravam outro tipo de mercadorias… Na sequência desta “bronca” todos os dirigentes do PAIGC, presentes em Conacri, foram detidos por ordem das autoridades locais. Amílcar Cabral, que estava no estrangeiro, teve de regressar, de imediato, a Conacri para resolver a delicada situação que configurava o primeiro conflito sério do PAIGC  com Sékou Turé…


Este incidente teve, como condão, levar alguns militantes do PAIGC a decidir iniciar a luta armada, com o escasso material que possuíam ainda e com a impreparação geral. 


“Fizemos algumas acções isoladas só para marcar o acontecimento e dar a entender que estávamos dispostos a tudo para lutar contra os colonialistas. No fim, Sékou Turé compreendeu que não se tratava de uma aventura ordinária e mandou libertar os camaradas” (p. 80).


Mal conhecendo o funcionamento das armas distribuídas, BK tomou a Ricco e o João Silva a Patchanga, preparando-se para a luta no norte, enquanto no sul o jovem Arafan Mané, com apenas 18 anos, atacava Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (p. 86-87). Não é claro, das conversas com BK,  se as ordens vieram de "cima" (ou seja, de Amílcar Cabral, que centralizava tudo), se foi uma "iniciativa espontânea" dos comandantes operacionais que estavam no terreno...


BK e João Silva escolheram Elias, no chão felupe, para iniciar as hostilidades no norte… “Outros camaradas foram para Varela e Susana” (p. 81). BK conta como foi o seu verdadeiro batismo de fogo: 


“Disparámos tiros à toa, queimámos casas. Não tínhamos nenhuma formação militar. Só algumas bases rudimentares. Eu, por exemplo, nunca tinha disparado um tiro na minha vida, foi aí a primeira vez que ouvi o som dum tiro disparado por mim mesmo” (p. 81).


Os guerrilheiros que foram atacar Varela não tiveram a mesma sorte que os que foram a Elias. Os Felupes ripostaram em massa. Todos os atacantes foram mortos “com arcas e flechas” (sic). Cortaram-lhes as cabeças e levaram-nas para mostrá-las aos portuguesas… 


O início, pois, desastrado e desastroso!... Osvaldo Vieira, o comandante da Frente Norte, mandou então retirar o seu pessoal para Bigene e daí para a fronteira, uns, e o Morés, outros.


Entretanto, nos primeiros 5 anos da luta armada, as relações com os senegaleses não vão ser fáceis. 


“Ficámos [na fronteira norte] durante 5 anos. Tivemos tempo de estabelecer relações de confiança [ - eu acrescentaria, e de cumplicidade –] com as autoridades senegalesas. Na primeira fase da luta, os senegaleses só autorizavam a nossa instalação nas tabancas, na segunda fase, quando a luta armada já tinha começado, autorizavam os nossos camiões que transçportavam alimentos . Da nossa parte aproveitávamos para camuflar armamento nos camiões” (p. 88). 


BK tranforma-se em traficante de armas e  contrabandista. A sua tática era subornar os "gendarmes" senegaleses que passaram a fazer vista quando os camiões do PAIGC circulavam com mantimentos para a guerrilha...


(Continua)


Luís Graça,

Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 28/10/2011

[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]



_______________


Nota do editor:

(*) Último poste da série > 29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)

sábado, 29 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)


Amílcar Cabral, 1966... Fotograma do filme documental Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, 16 mm, 39' de duração... Passou recentemente no doclisboa2011, na retrospetiva 'Movimentos de Libertação'...


Foto de Luís Graça (2011).


1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho (*)...
 

“Eu não fui mobilizado directamente pelo Partido” – confessa BK ao seu entrevistador, NTC. “Foi graças à minha actividade desportiva e sobretudo à conversa do Nkrumah no Gana [, por ocasião do torneio de futebol de 1959]” (p. 58).

BK sabia da existência do PAIGC, clandestino, mas não tinha contactos diretos com nenhum militante, em Bissau. “(…) Sabia que havia o Rafael Barbosa e que o meu primo Momo Turé fazia propaganda do Partido, mas não conversávamos sobre o assunto” (p. 59).

Já na clandestinidade e sob vigilância da PIDE (, instalada em Bissau desde 1956), Amílcar Cabral tinha estado na capital da província, de 14 a 21 de Setembro de 1959,  para trabalho de organização política, com os seus colaboradores mais próximos (o seu meio-irmão Luís Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa e João Silva Rosa), instalando-se depois em Conacri.

Em todo o caso não se percebe muito bem, pela leitura do livro do NTC, como é que BK decide, uma bela manhã, partir para o sul com o objetivo de chegar a Conacri, e oferecer os seus préstimos a Amílcar Cabral que, em boa verdade, ele mal conhecia. BK, que era o sustento da família, despede-se, com a aparente naturalidade das gentes africanas, da sua querida mãe e dos seus 3 manos (dois dos  quais irão mais tarde ingressar no PAIGC, na fase da luta de guerrilha). Presume-se que BK tenha ocultado à família os seus projetos.  Aparentemente ele ia para o sul fazer a “campanha da costura” (sci), numa altura propícia aos alfaiates, que era a colheita das nozes de cola.

Por outro lado, a sua saída de Bissau não parece ter sido um ato isolado… No dia 26 de Dezembro de 1960, “o primeiro grupo de colegas” (sic)  decide “organizar-se” e parte para o sul  (p. 60). Presume-se que BK se refira aqui a “colegas” do futebol e do Cupelom de Baixo. A 30, “foi a vez do meu grupo sair de Bissau” (p. 60).

Terá sido simples coincidência ou foi mesmo uma “fuga”, planeada e organizada, com a eventual cobertura do PAIGC ? BK  não é claro a este respeito, nem o seu entrevistador aprofundou (ou mostrou interesse em aprofundar) esta questão. 


Do “primeiro grupo” faziam parte craques da bola como o Julião Lopes, o Lino Correio (UDIB) e o João de Deus (primo do BK e também titular da seleção). Do outro grupo, além do BK, fazia parte o Ansumane Mané, “Corona”. Um e outro eram também jogadores da seleção. Ao todo eram apenas três, incluindo um “rapaz de Bissau”, não identificado.

Os três embarcam no porto de Bissau a caminho de Enchudé, frente a Bissau, no outro lado do Rio Geba, mas já na região de Quínara. Aqui apanham uma boleia, de carro, até 
Sangonhá, região de Tombali, já na fronteira com a Guiné-Conacri. 


“Quem nos levou foi um dos condutores do Camacho, um grande comerciante português instalado no sul”… Em Sangonhá, havia duas lojas, “a do Alfa Camará e a de um senhor mestiço que, segundo constava, colaborava com a PIDE” (p. 61).

O Alfa Camará era amigo do pai do BK. Não se se sabe se era simpatizante ou até militante do PAIGC. Muito provavelmente não, já que a mobilização no interior ainda não tinha começado. De qualquer modo, era um dos contactos do BK no sul. Ele já tinha levado, “em segredo”, as bagagens do BK, numa viagem anterior em que viera a Bissau abastecer-se (p. 61).

A escolha da rota do sul, para se chegar a Conacri, era aparentemente mais fácil do que a rota do norte, via Senegal. Para justificar a sua presença, perante as autoridades portugueses, BK apresentava-se sempre como alfaiate que ia fazer a “campanha de costura do sul”. O “Corona” era o seu “ajudante” (p. 60).

O grupo não entrou na Guiné-Conacri através do posto fronteiriço de Sangonhá. Daqui seguiu para Campaeane, na margem esquerda do Rio Cacine, a sul de Cacine. Dormiram na casa  de “um amigo que nos fora recomendado” (p. 61). Esse mesmo amigo levou os três, logo de manhã, para a “outra margem”, que já era território da Guiné-Conacri, a uma hora de distância.

Chegados lá, tiveram uma “agradável surpresa”, foram encontrar o grupo do Julião Lopes, que partira de Bissau a 26 de dezembro de 1960. (Este Julião Lopes será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau,  depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980).

Continuo, no entanto, sem perceber se BK agiu sozinho,  por conta e risco, ou se beneficiou da eventual ajuda da “rede clandestina”  do PAIGC que, na época, ainda deveria ser bastante “incipiente” em Bissau (para não dizer "inexistente" no sul). De qualquer modo, BK chega a Conacri, são e salvo,  a 12 de Janeiro de 1961, doze dias depois de se ter despedido da mãe e dos irmãos em Bissau. Ele e os seus "colegas" da bola...

Antes disso, aos dois grupos (o do BK e do Julião Lopes), reagrupados em Canfandre, junta-se em Boké, um terceiro, também oriundo de Bissau. Formaram um equipa de futebol que ainda disputou algumas partidas. Os “Portuguis Nara” (expressão local, que queria dizer: 'São Portugueses'), com vários titulares da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelas autoridades  da região de Boké,  não tanto pelo seu ardor nacionalista como sobretudo pelo seu talento futebolístico…

Chegados finalmente a Conacri, foram encaminhados para os serviços de imigração a fim de legalizarem a sua situação. Recorde-se que a Guiné-Conacri tinha-se tornado independente da França em 2 de Outubro de 1958, quase dois anos mais cedo que o Senegal (, que chegará à independência apenas a 20 de Agosto de 1960).

“Comunicaram então ao Cabral a nossa presença na capital guineense” (p.65)… 

BK conhecera o “senhor engenheiro” uns anos antes,  “quando era ainda muito jovem”… [ou seja, entre 1952 e 1956, quando Cabral trabalhou na sua terra como engenheiro agrónomo, com a sua esposa, Helena, portuguesa]. BK lembra-se de ele lhe oferecer “uma bola” e de organizar “pequenos torneios na Granja do Pessubé para os mais jovens” (p. 65).

Em Conacri, BK e os seus amigos passaram a ficar no “lar do Partido”, que ficava no bairro de Almame-La. Nessa época Cabral preparava os primeiros combatentes da futura “luta de libertação”. Ele próprio vai à China, em Agosto de 1960, pedir apoio, à frente de uma delegação que integra o Luciano N’Dau, o Dauda Bangura e o Joseph Turpin. 

Um segundo grupo segue, no 2º semestre de 1960,  para a China,  para formação político-militar, do qual faziam parte 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão os seus nomes, por or ordem alfabética: 

(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);

(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);

(iv) Hilário  Rodrigues “Loló” (, comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé);

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009) (natural de Bissau; ex-Presidente da República);

(vi) Manuel Saturnino da Costa (será 1º ministro entre 1994 e 1997; ainda é vivo);

(vii) Pedro Ramos (fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro");  

(viii) Rui Djassi (comandante da base de Gampará, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas);

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado,  na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra);

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa).

“Quinze ou vinte dias  depois da nossa chegada a Conacri  regressou da China este segundo grupo”, esclarece BK  (p. 66).

Os primeiros tempos em Conacri – estadia que se vai prolongar até Outubro de 1961 – foram passados com aulas de “preparação política de base”, dadas pelo próprio Amílcar Cabral … As aulas chegavam a prolongar-se até às tantas da noite. Cabral utilizava, para o efeito, a garagem da casa onde vivia. 

"Aí é que começamos a vida dura de militantes. Cabral dava aulas de conhecimento geral sobre a nossa terra, sobre os motivos porque resolvera lutar contra os Tugas, as injustiças, e dava exemplos práticos que toda a gente compreendia. Falava muito de independência e de liberdade" (p. 66).


À pergunta de NTC sobre se alguma vez o BK teve dúvidas ou quis voltar para trás (“e entregar-se aos tugas”), BK é firme e peremtório, mas sobretudo "politicamente correto" (aos olhos do seu entrevistador, também ele antigo militante do PAIGC, e também ele vítima do golpe de Estado de 'Nino' Vieira), como seria de esperar, de resto, de um homem que passou mais de 13 anos na dura luta de guerrilha:

“Houve momentos de incertezas, felizmente esses momentos foram passageiros. De dúvidas não posso falar. Sabe que eu tenho um princípio que é o seguinte: palavra dada é coisa sagrada. A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).

Não tenho dúvidas que Bobo Keita, sendo um homem coerente, se tivesse jurado bandeira, nas fileiras do exército português e não se tivesse sentido injustiçado (como aconteceu com o 1º Cabo Miliciano Domingos Ramos, vítima de racismo, segundo o depoimento do seu amigo Mário Dias), nunca teria chegado a comandante do PAIGC... Bobo Keita, por outro lado - é bom recordá-lo - foi dos poucos guineenses que, opondo-se ao golpe de Estado do guineense 'Nino' Vieira contra o caboverdiano Luís Cabral, se exilou voluntariamente, em Cabo Verde, em 1998, para vir morrer no país dos  tugas, em 2009...

Luís Graça,

Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 27/10/2011

(Continua)

[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (*)...

Norberto Tavares de Carvalho (abreviadamente, NTC) dedica bastante tempo e espaço à infância, adolescência e juventude de Bobo Keita (abreviadamente, BK). Grosso modo, até aos seus 21 anos, quando BK, jogador do Sport Bissau e Benfica,  decide “mudar de campo”. São cerca de 50 páginas, de um total de 300 (pp. 18-68). (*)



NTC nem sempre segue um fio condutor, lógico e cronológico, na longa entrevista (ou série de entrevistas) que ao longo de 2 anos conduziu com o comandante do PAIGC, até praticamente às vésperas (18/12/2008) da sua morte (que ocorreu em 29/1/2009, num hospital dos tugas).  


Há saltos e desvios, muitas vezes impostos pelo discurso torrencial do entrevistado. De qualquer modo é prodigiosa a memória de BK, capaz de recordar com grande acuidade e vivacidade episódios dos seus primeiros anos de vida, além de datas, lugares e nomes (para não falar já da sua dura vida como combatente e dirigente do PAIGC).


O livro, edição do autor [, aqui na foto à esquerda, com o seu amigo e nosso camarada A. Marques Lopes, em Lisboa, no verão de 2008] está dividido em cinco partes, por sua vez subdivididas em pequenos (às vezes minúsculos) capítulos: 


- De Sundiata Keita a Kwame Nkrumah (Parte I, pp. 18-46);
- Das rotas do sul ao tráfico de armas (Parte II, pp. 47-121);
- Cerco à volta de Amílcar Cabral (Parte III. Pp. 122-180);
- Aviões de caça, Mig 21 prontos a descolar (Parte IV, pp. 181-236);
- e Guerrilheiros caídos no campo da honra (Parte V, pp. 237-246).

Num total são cerca de 250 pp., com o epílogo e o posfácio (, da autoria do A. Marques Lopes). O resto são anexos, alguns despropositados, como as dez páginas de listas nominais não só dos governadores da Guiné e Cabo Verde, como dos presidentes e primeiros ministros destes dois novos países lusófonos. Despropositados, porque o horizonte temporal das conversas de NTC com BK vai dos seus primeiros anos de vida (ele nasceu em 1939) até à partida do último Governador português, Carlos Fabião, em Outubro de 1974.


Ao longo do texto, e inseridas no corpo do livro (e não em rodapé, como deveria ser) também há muitas notas, algumas bastante extensas e espúrias, com informação recolhida pelo autor (por ex., sobre o Cupelom, o futebolista Joãozinho Burgo, a PIDE) ou extraída de outras fontes secundárias (desde o livro de Luís Cabral, Crónica da libertação,  ao nosso blogue, passando pela Wikipédia), notas essas que cortam o fio e o ritmo de leitura.


Vamos tentar reorganizar e resumir a informação, de modo a perceber, por exemplo, a decisão do BK de se juntar, em Conacri, ao movimento liderado por Amílcar Cabral.


BK nasceu em 24/9/1939 no Cupelom de Baixo. Num das suas notas intercalares, NTC diz que o Cupelom era, desde os anos 40, um dos bairros mais populares e povoados de Bissau. Estava dividido em 2 partes, a de cima e a de baixo. O topónimo Cupelom foi imposto pela autoridade colonial. Para os seus habitantes, era o Pilum (ou Pilom). em crioulo. Os tugas, como eu, conheciam-no simplesmente como Pilão.


O pai era alfaiate e a mãe doméstica. A origem do pai remonta ao Mali, mas nasceu perto de Boké, na Guiné-Conacri, e onde o PAIGC vai ter uma base militar importantíssima. A mãe de BK, a quem o ligavam fortes laços afetivos, era oriunda de Bissau. A família era muçulmana, praticante.


BK tinha mais 3 irmãos, um rapaz e duas raparigas. O rapaz e uma das raparigas, esta como “socorrista”, também participaram na “luta de libertação”. De acordo com a tradição africana, BK deveria seguir a profissão do pai, que foi alfaiate por conta própria mas também assalariado da empresa francesa NOSOCO.

A família vivia numa casa de colmo, sem água, sem saneamento básico, sem luz elétrica. BK andava descalço, e de calções. As primeiras sandálias que teve foi na “escola do Padre” (p. 24).


Não conseguiu matricular-se na escola pública, de modo a poder frequentar o ensino primário. Alega que na escola primária, em Bissau, ao tempo (do Governador Sarmento Rodrigues, 1945-1950), “só aceitavam alunos da praça” (sic”), “filhos de funcionários [públicos e empregados das casas comerciais] e gente de primeira classe” (p. 28). Pelo que teve de ir bater à porta da escola das Missões Católicas.


Na “escola do Padre” (sic)  obrigaram-no a tirar o bilhete de identidade e adotar um nome português. O seu padrinho de ocasião, Padre Henrique Santos, “sem mais cerimónias pôs-me o nome de Henrique Santos Keita” (p. 28).


Na “escola do Padre” não havia turmas mistas (tal como não havia em lado nenhum, no Portugal da época, do Minho a Timor, segundo julgo saber). Além disso, BK era obrigado a ir à missa dominical e a fazer prova disso, sob a forma de senha de presença, a apresentar na 2ª feira seguinte, no início das aulas. Quem não ia à missa, apanhava falta.


BK devia ter nessa altura 9 anos. Estaríamos, portanto, em 1948 (p.29). A obrigação de ir à missa dominical (e eventualmente  o risco de ver o filho convertido ao cristianismo) encontrou no pai, fervoroso muçulmano, uma forte resistência. Felizmente que BK pôde contar com  o bom senso, a compreensão, a tolerância e a caridade do missionário. Foi dispensado de frequentar a igreja, atendendo que era um aluno com bom aproveitamento e assiduidade.


"Mas só fiz a escola primária" - acrescenta BK.  "Não cheguei a ir ao Liceu. Resolvi dedicar-me ao futebol. De qualquer modo,  diziam que o Liceu não era para  os coitados, pois aí só chegavam gente da praça, filhos de funcionários e malta bem situada" (p. 29).


BK tinha uma noção clara do seu lugar na fortemente estratificada sociedade colonial da época, tendo aprendido bem a lição de Amílcar Cabral, seu futuro professor em Conacri. "Na escala social daquela época colonial vinha logicamente a classe  representada pelos portugueses. Qualquer indivíduo, seja ele pobre e analfabeto ou abastado e instruído, uma vez que era branco ocupava um lugar social superior a todas as outras classes" (p. 54).


A seguir vinham os "grumetes", em geral portadores de nomes e apelidos portugueses e que tinham um papel auxiliar na administração colonial. Por fim, vinham "os negros civilizados que tiveram acesso à escola,  falam um bom português, vestem-se e comportam-se na sociedade como estes" (p. 54). Na base da pirâmide, estavam por fim os "gentios", a grande maioria dos guineenses que não eram "assimilados".


O gentio, segundo BK, era também designado por "indígena": nativo, animista, pagão, idólatra, "senão selvagem, bárbaro e sem bilhete de identidade", logo socialmente marginalizado, a não a ser para "pagar imposto"... Era gente, como os balantas, onde o PAIGC vai recrutar a sua base de apoio, os seus homens do mato... "Alguns deram bons militantes e quadros" (p. 55).






Guiné-Bissau > Bissau, capital do país > Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)

Cortesia de A. Marques Lopes (2005)





Sobre o bairro do Cupelom (ou Pilão, para os tugas), diz o NTC em nota intercalar: "As ruas não tinham nome, mas todos sabiam quem morava e onde. Neste bairro avizinhavam-se diversas classes e etnias que viviam em perfeita comunhão (...)". 


Havia uma numerosa comunidade muçulmana (ou islamizada), tanto no Cupelom de Baixo como no de cima, a par de cristãos e animistas, em especial Mancanhas no Cupelom de Baixo. Com o início da guerra colonial,  vieram outras gentes, mas o bairro continuou a ser  predominante de população islamizada. De dia, era um bairro com vida própria, com muita azáfama. À noite, enchia-se "dum certo secretismo ligado não só ao sector das ditas 'mulheres de vida' - escreve NTC com algum pudor - mas também às estranhas reuniões furtivas onde se falava de assuntos guardados preciosamente longe de orelhas indiscretas" (p. 56).

O Cupelom, para além de ter sido um "enorme canteiro de gente feminina que perfumava o bairo" (sic),  foi um viveiro de jogadores de futebol mas também de combatentes, quer de um lado quer do outro. "Vários  dos melhores jogadores de futebol foram aí recrutados, os mais destacados combatentes do PAIGC tiveram aí as suas influências e conhecidos elementos dos Comandos Africanos também aí fizeram história" (NTC, p. 56).

BK recorda com saudade os seus tempos de infância e adolescência no Cupelom.  Pilum era um bairro lindo, a gente hospitaleira, a juventude unida,  os  mais velhos protegiam os mais novos... Também tinha as suas histórias de conflitos de territória, por causa das "moças de outros bairros" (p. 57)...


Era, por outro lado, um lugar de passagem e de encontro, obrigatório, "para os que habitavam nos bairros circundantes" (Santa Luzia,  Plubá, Penha, Péfine, Calequir, etc.): "para descerem à cidade, [tinham de] passar pelo Cupelom", o que em si já era "um acontecimento" - sublinha o BK.(p. 56).

"Quando a mobilização começou nos anos 60, os jovens do nosso bairro foram os que mais aderiram à luta. Chamavam [ao] Pilum Bairro de Terroristas" (p. 56) (**). E porquê ? "A maior parte de nós não acreditava no futuro, não havia trabalho, a estiva pagava mal e era muito pesado, o desânimo era geral" (p. 57)...






Guiné > Bissalanca > Finais dos anos 50 > "Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa, o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné] , está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (MD), incluindo eu próprio" (MD)... 


O terceiro elemento, a contar da esquerda, é o Armando Lopes (n. 1920), pai do nosso amigo Nelson Herbert, e antiga glória do futebol caboverdiano e guineense, e que o Bobo Keita, embora de outra geração, deve ter conhecido.  (NH/LG)


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005).  Todos os direitos reservados. 




Mas voltando à adolescência do BK: aos 12/13 anos, por volta de 1951/52, teve a sua festa do fanado, na Granja do Pessubé, nos arredores de Bissau.  A cerimónia iniciática durou um mês. Foi circuncisado e tornou-se lambé (pp. 25-27).

Entretanto, a crise da NOSOCO  (onde, de resto, também trabalhou o nosso camarada Mário Dias, nos anos 50) levou o pai do BK  a procurar trabalho, no sul,  como alfaiate ambulante. Mas em breve deixou de dar notícias e a família perdeu-lhe o rasto.

BK tem agora de tomar conta da mãe e dos três irmãos. Pega na máquina de costura Singer que o pai deixara em casa, e começa a coser panos, a bordar, a vender. Os Saraculés é que tingiamos seus panos. Como jovem e como alfaiate, BK tinha a Guiné-Conacri como modelo de referência e fonte de inspiração (moda, vestuário, música e até política). Trabalhava muitas vezes até às tantas da madrugada.

Lembra-se da agitação que ia em Bissau no dia 3 de Agosto de 1959 (dia do chamado massacre do Pindjiguiti). Na altura, com quase 20 anos,  jogava à bola e trabalhava na "alfaiataria do tuga" (p. 24)... ...

No livro, BK refere-se sempre aos portugueses como tugas... NTC refere isso mesmo, "a irresístível tendência do ex-guerrilheiro em designar continuamente o português por tuga" (15)... O termo, depreciativo, designava originalmente os portugueses e, mais tarde por extensão,  os brancos.  Por parte dos combatentes do PAIGC, o termo era usado por oposição a turra (corruptela de terrorista)...

Este tratamento depreciativo do adversário é comum em todas as guerras, acrescenta NTC. Hoje o termo é usado, na Guiné-Bissau, com um outro sentido, sem a carga negativa que lhe atribuía Amílcar Cabral e os seus seguidores. Recorde-se, em todo caso, que o histórico fundador e dirigente do PAIGC sempre fazia questão de distinguir o povo português e os colonialistas,  Portugal e o regime político então em vigor...

O mais surpreendente é que BK não é coaptado diretamente pelo PAIGC. A sua ida para Conacri, largando tudo o que amava (a família, o bairro, a cidade, o futebol...), será contada em próximo poste. (**)


PS - Segundo informação do nosso camarada A. Marques Lopes, o livro está à venda no Porto, na UNICEPE, e em Lisboa, na Livraria Portugal, na Rua do Carmo, 70.

[Continua]

_____________

Notas do editor

(*) Vd. 25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações

(...) Numa sessão da Câmara Municipal, o Major Matos Guerra que era o Presidente anunciou-nos que ia destruir, com uma bulldozer nova encomendada, e por ordem do Sr. Governador Arnaldo Schultz, o bairro do Cupelom, suspeito de ser um ninho de terroristas.


Repliquei, pedindo-lhe para nos informar onde é que a população iria ser alojada. Respondeu que não sabia. Dei-lhe como exemplo o bairro de Alvalade, em Lisboa, onde se construiu o bairro, primeiro, para depois se desalojar as pessoas. 

Foi uma discussão que durou, foi suspensa para o jantar e depois retomada até de madrugada. Nós, a vereação, coesa, recusámos a proposta de decisão, que ficou suspensa. Isto pode ler-se na acta da Câmara Municipal. (...).

(***) Último poste da série > 26 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8949: Notas de leitura (293): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (José Manuel M. Dinis)


terça-feira, 25 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)





Gâmbia > Bathurst > 1953  > Comemorações da entronização da Rainha Isabel II, de Inglaterra >  Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné > De pé, da esquerda para a direita,  Antero Bubu (Sport Bissau e Benfica; capitão), Douglas (SB Benfica), Armando Lopes (UDIB),  Theca (SB Benfica), Epifânio (UDIB) e Nanduco (UDIB);  de joelhos, também da esquerda para a direita:  Mário Silva (SB Benfica),  Miguel Pérola (Sporting Club de Bissau), Júlio Almeida (UDIB),  Emílio Sinais (SB Benfica), Joãozinho Burgo (SB Benfica) e João Coronel (SB Benfica)...

No 1º jogo, a seleção da Guiné ganhou à seleção da Gâmbia por 2-0, com golos de Joãozinho Burgo; no 2º jogo,  as duas seleções empataram 2-2 (com golos,  pela Guiné, de Mário Silva e Joãozinho Burgo). Antiga colónia inglesa, a Gâmbia acedeu à independência em 1965.

Foto: ©  Armando Lopes / Nelson Herbert  (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


Legenda de João Burgo Correia Tavares (vd. De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita, 2011, p. 41).


1.  E a propósito (e na continuação da leitura do livro) das memórias do Bobo Keita (*)... Fomos encontrar, no livro do Norberto Tavares de Carvalho, uma foto já nossa conhecida, da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, onde figura o  Armando Lopes (jogador da UDIB, pai do nosso amigo Nelson Herbert, e que também era conhecido como Búfalo Bill; fez o seu serviço militar no Mindelo, em 1943, na altura em que também lá estava, como expedicionário, o meu pai, meu velho e meu camarada, Luís Henriques; ambos nasceram em 1920 e, felizmente, continuam vivos; ambos tinham igualmente uma paixão pelo futebol).

A foto, que vem na página 41,  é do arquivo pessoal do João Nascimento Burgo Correia Tavares, o Joãozinho Burgo, do Sport Bissau e Benfica... (Mas o nosso blogue já tinha publicada uma igual, em 15 de Agosto de 2010, do arquivo do Armando Lopes) (***).

Caboverdiano, da Ilha do Fogo, onde nasceu em 1929,  Joãozinho Burgo era mais novo do que o Armando Lopes (n. 1929) mas mais velho que o Bobo Keita (n. 1939). O auge da sua carreira é em 1960,  com o apuramento da seleção de futebol da Guiné para a fase de qualificação para a disputa da taça Kwame  Nkrumah.


Vencedora da Série D, a seleção guineense foi disputar a final em Acra, capital do Gana: além de Joãozinho Burgo, fizeram parte dessa equipa Bobo Keita,  Júlio Semedo (Swift, guarda-redes), Antero 'Bubu', Vitor Mendes ('Penicilina'),  'Djinha', João de Deus,  'Chito', Luís 'Djató', 'Nhartanga' (que jogará depois em Portugal), entre outros...

O Joãozinho Burgo deixou de jogar na época de 1966/67, para de seguida ir tirar o curso de treinador, ainda em 1967, em Setúbal (onde teve como colegas de curso o José Augusto, o Coluna e o Cavém) (p. 36).

O Bobo Keita, mais novo (1939-2009), embora sportinguista de coração, assinou e jogou pelo Sport Bissau e Benfica (**),  clube do seu pai, alfaiate... O mais interessante era verificar a grande popularidade que tinha o futebol nessa época, nomeadamente em Bissau, mas também no interior (Mansoa e Bafatá, por ex.).


O futebol também foi um viveiro de   militantes, combatentes e dirigentes ao PAIGC (Júlio Almeida, Júlio Semedo, Bobo Keita, Lino Correia...). Era interessante saber porquê... 

Recorde-se que o Júlio Almeida, antigo funcionário da granja de Pessubé que trabalhou com Amilcar Cabral, é referenciado como um dos fundadores, em 1956,  do PAIGC, ou melhor do PAI, mais tarde  PAIGC (**).

Bobo Keita, que nasceu no Cupelom [ ou Pilão] de Baixo, em Bissau, jogava na equipa do bairro, o Estrela Negra'... Dela faziam parte futuros militantes nacionalistas como o Umaro Djaló, Julião Lopes, Coronoa, Ansumane Mané (outro que não o brigadeiro), Lino Correia (que era de Mansoa)... Keita, miúdo de rua, não tinha botas. As primeiras que teve foram-lhe emprestadas (e depois dadas) pelo SB Benfica. Jogou com elas em Mansoa. Jogará depois nos júniores do Benfica e, dada o seu talento, chega rapidamente à seleção provincial.


Tinha então 17 anos. Como a idade mínima legal eram os 18, à face das normas internacionais do futebol, tiveram que lhe fazer uma "nova" certidão de nascimento (sic)... "A partir daí, segundo as circunstâncias, passei a exibir dois bilhetes de identidade, um com dezasste anos e outro comn dezoito anos", confidencia o Bobo keita ao seu biógrafo (p. 31).


Acabou por jogar a defesa direito no Benfica. Dos júniores passa às reservas e depois à equipa principal. Para além de ser o orgulho do seu pai, tornou-se muito popular entre os adeptos. O grande dérbi, em Bissau, eram o jogo Benfica-Sporting. Na época, o Benfica era de longe a melhor equipa de futebol da província, recheada de estrelas (que integravam por sua vez a seleção da província)


Foi o Victor Mendes, um treinador português, que levou Bobo Keita para a seleção e que o pôs a jogar como defesa lateral esquerdo, depois de muito trabalho... Ao que parece, ainda estará vivo. Outro clube cotado localmente era o UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau, onde jogava o seu primo João de Deus.


Nas conversas com Noberto Tavares de Carvalho (*), Bobo keita recorda o Torneio da África Ocidental, que começou na Ilha de São Vicente, Cabo Verde, em 1958, e que juntou outras as seleções (Cabo Verde, Senegal, Gâmbia e Guiné-Conacri) (pp. 39-40). Também, jogou na Gâmbia, onde a seleção guineense era, de há muito, temida, desde o tempo do Armando Lopes.


Na fase final, foram jogar a Acra, capital do Gana, em 1959. O encontro com o presidente Kwame Nkrumah terá sido decisivo na vida de Bobo Keita. Recorde-se que a antiga colónia inglesa, Golden Coast, a Costa do Ouro, proclama oficialmente a sua independência em 6 de Março de 1957. Nkrumah, num cerimónia de receção nos jardins do seu palácio,  incentivou então os jovens futebolistas a lutarem pela independência dos seus países. 


Em 1 de Outubro de 1960, Keita está em Lagos, capital da Nigéria, outra vez num torneio de futebol, por ocasião das festas da independência de mais um grande país africano (p. 44-46). Que memórias guarda desse tempo ?


 "Como acontecera com o discurso do Nkrumah, fui de novo sacudido por um mar de interrogações, sempre falando com os meus botões e acabando por concluir que tudo aquilo era bonito, mas completamente impensável na Guiné.  No entanto, pela segunda vez,  o acaso punha-me de caras  com os pensamentos  revolucionários daquele tempo. Só que desta vez senti algo a despertar em mim" (p. 45)...


E mais à frente acrescenta, na entrevista com Norberto Tavares de Carvalho (*): 


"Fiquei com aquela imagem de um  povo confiante, independente e livre. Esse quadro ficou gravado em mim como o segundo factor de formação da minha consciência nacionalista" (p. 46).


Três meses depois, em 26 de Dezembro desse ano, Bobo Keita, que tinha apenas a 4ª classe da instrução primária,  "vai no mato", isto é, entra na clandestinidade, mais exatamente segue em viagem para o sul, disfarçado de alfaiate, mas com destino certo: Conacri. Em 12 de Janeiro de 1961 tem à sua frente Amílcar Cabral, o homem que lhe tinha dado um bola, quando "djubi" do Cupelom, seu bairro natal...


Como é que um jovem e promissor jogador de futebol chega até aqui, ou seja, entra em ruptura com a sociedade onde, mal ou bem, está integrado ? Antes de mais, é de referir o sentimento de  injustiça e de revolta que começa a apoderar-se dos jovens jogadores da seleção da Guiné. Na Nigéria não recebem os prometidos e ansiados prémios de jogos. Sentem-se explorados e inferiorizados quando comparados com os jogadores das outras seleções africanas, em particular os nigerianos. Na capital da Gâmbia, Bathurst, o conflito, latente, estala, passando a conflito aberto, manifesto... Recusam-se a jogar... Acabam por ceder para "não ficarmos mal vistos" (p. 48), mas recebem no final o dinheiro prometido...

Os dirigentes da seleção estranharam o comportamento jogadores e não gostaram... No regresso a Bissau, entra a PIDE em ação. O ambiente é de crispação, dentro e fora do balneário. Chegou-se a pensar prender toda a selecção, mas acabou por imperar o bom senso... Os jogadores, incluindo Bobo Keita, foram discretamente interrogados, um a um, pela PIDE nas instalações dos Bombeiros Voluntários de Bissau (pp. 52 e ss.). Dada a sua popularidade, os jogadores da seleção, envolvidos no conflito passado na Gâmbia, acabaram por se safar... Acrescenta o Bobo Keita, que até o próprio Governador, na altura o Peixoto Correia, "uma ardente adepto do futebol", não terá apreciado a ação da PIDE (p. 53)...

Iremos continuar a respigar e comentar algumas notas de leitura (****) da 'longa conversa' que o Bobo Keita teve como Norberto Tavares de Carvalho, antes de morrer, em Portugal, em 2009. Era senhor de uma notável memória, era uma homem frontal, mas também de grande cordialiade.  Por sua vez, o autor do livro, com formação em ciências sociais, dá provas de honestidade intelectual e de preocupações com o rigor metodológico.

Leia-se o que diz o próprio Norberto Tavares de Carvalho:


"O trabalho de recolha, de entrevista e de releitura, durou mais de dois anos. Até que  no dia 19 de Dezembro de 2008 me desloquei a Lisboa para tratar com o comandante Bobo Keita os últimos trechos do livro. Fui visitá-lo ao hospital [, presume-se que o Amadora-Sintra,] onde estava internado. Ao ouvir a voz que o saudava, perguntou imediatamente: 'Quando é que chegaste ?'. Fiquei perplexo pois os rumores diziam que o velho combatente tinha perdido a memória. Animei-me de esperança. Tinha ainda mais perguntas a fazer-lhe para o aprofundamento de certos dados importantes. E devia ler-lhe a última parte do manuscrito" (p. 16).

O livro (brochado, 303 pp.,  incluindo fotos), edição de autor, está à venda no Porto, na UNICEPE - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, CRL, sita na Praça Carlos Alberto, 128-A, 4050-159 PORTO >  Email: Unicepe@net.novis.pt; Telefone: + 351 222 056 660. Preço: 15 € (12 €, para associados da Unicepe).


2. Sobre este tema reproduzimos aqui uma mensagem recente do Nelson Herbert, que vive em Washington onde é editor da Voz da América:

Data: 20 de Outubro de 2011 21:05
Assunto: Futebol e Nacionalismo


Caro Luis


"As equipas de futebol deram bastantes militantes ao PAIGC... Era interessante saber porquê...No caso do Bobo Keita, foram decisivas as viagens ao estrangeiro (Ghana, Nigéria...) com a seleção nacional, até 1960, ano em que ele passou à clandestinidade"...
E eis (mais) um capítulo da história da Guiné ainda por aprofundar !!!


Repare que a seleção de que Bobo Keita fazia parte, contava igualmente com um dos elementos fundadores do PAIGC, refiro-me pois ao caboverdiano Júlio Almeida (guarda redes, que deduzo estar na foto a que fez referência) , então técnico agrário da Granja de Pessubé, [onde trabalhou com] Amílcar Cabral !!!


A indicação e a consequente  transferência  de Júlio Almeida do futebol mindelense para a UDIB de Bissau foi iniciada, a pedido do clube guineense - creio que [no ínício dos] anos 50-   pelo meu pai [ Armadndo Lopes],  na altura de férias em S. Vicente, a ilha de natal de ambos.


Convém não perder de vista que ante a então apertada vigilância da PIDE, a "bola" foi  por sinal a via encontrada por Amílcar Cabral para a conglomeração, na periferia de Bissau, de guineenses e caboverdianos  em redor de ideais nacionalistas.

E falando ainda de futebol, recordo ter lido em tempos no blogue um poste que fazia referência ao papel dos soldados portugueses na Guiné, na "massificação" do futebol naquela antiga província ultramarina.


Obrigado por partilhar !

Mantenhas
Nelson Herbert



______________




Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho

(**) Comentário de Nelson Herbert ao poste de 2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense, nos anos 50


(...) "Apareceram também clubes de futebol como o Sport Lisboa e Benfica, 'por iniciativa de alguns nomes conhecidos da sociedade portuguesa, Gama das Construções [Gama] Lda, Pimenta do Cadastro, Casqueiro, etc.', e o Sporting Club de Bissau, 'sob a égide de Eugénio Paralta, irmão Zé Paralta, Chico Correia'...

"A UDIB já existia, diz-nos Cadogo Pai. No entanto, o desenvolvimento do futebol, 'trouxe mais um bafo de rivalidades, olhando a situação dos jogadores cabo-verdianos, importados pelo Benfica, que, para os atrair, os adeptos bem colocados, tinham que lhes oferecer bons empregos. Bons rapazes, no fundo, Antero, os sinais [?] Tcheca, Marcelino Ferreira (Tchalino), etc." (1ª Parte, p. 6).

(...) A origem das equipas de futebol da Guiné é, por sinal, uma das temáticas que há meses vinha eu já ensaiando propor a 'debate' a (e como contribuição para) o blogue ...Sobre esta temática tenho eu recolhido alguns testemunhos, por incentivo do meu próprio progenitor...por sinal, da leva dos futebolistas cabo-verdianos que povoaram o meio desportivo guineense da época. Aliás, modalidade-rei, com a qual os cabo-verdianos estavam em certa medida familiarizados, através dos ingleses que, pelas passagens pelo Porto Grande da Ilha de São Vicente, introduziram o futebol e o 'cricket'...Quanto a este último. facto curioso, nos demais territórios 'ultramarinos' de Portugal, foi o único onde a modalidade pegou e conserva ainda alguns resquícios da sua prática.

Dessa 'hegemonia' de futebolistas cabo-verdianos...Antero, Marcelino (Gazela), Armando Lopes (Búfalo Bill , meu pai), Tcheca, Júlio Almeida (referenciado como um dos fundadores do PAIGC), na sua maioria atletas do Sport Bissau e Benfica e da UDIB (caso do meu pai que, 'importado' de Cabo Verde, inicia a sua carreira na UDIB,transferindo-se anos mais tarde para o Benfica de Bissau), houve na época a necessidade de se contrabalançar essa então 'primazia' de futebolistas das ilhas, pelas razões já expostas acima...

E seria pois com base nesse pressuposto que nasceria o Sporting Club de Bissau (clube de que fui futebolista júnior, apesar da minha paixão clubística pela UDIB), outrora Império, e no qual militaram numa primeira fase da sua fundação, e na sua quase totalidade , futebolistas originários da Guiné. 'Cabo-verdianos' do Sporting viriam depois... e entre os nomes sonantes dessa época, cito aqui o nome de 'Djinha.'" Almeida...

Por iniciativa dos irmãos Paralta, e de mais um lote de futebolistas, de novo, na sua maioria cabo-verdianos que, na época do defeso do campeonato provincial, praticavam o ténis nos adstritos 'courts' do então estádio Sarmento Rodrigues, nasceria a ideia de fundação do Tenis Club de Bissau...

Eis pois aqui uma proposta de 'debate' e de recolha de testemunhos de que o Blogue tem sido profícuo...

Por exemplo, que papel teve a 'tropa'.  na sustentabilidade do futebol na Guiné, pelo menos a nível das equipas do interior do país, alguns, que com início da guerra deixaram de ser parte do campeonato provincial da Guiné.

Entretanto, relativamente à participação das equipas do futebol guineense, incluindo a própria seleção provincial, nas competições regionais africanas da época...Bobo Keita, um histórico comandante da guerrilha e talentoso futebolista guineense, entretanto já falecido, recordou em tempos, em entrevista por mim conduzida, o seu primeiro contacto com a ideia da necessidade da emancipação do homem africano...Aconteceu pois aquando de uma digressão da seleção provincial da Guiné ao Gana de Kwame Nkrumah (...)

(***) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6853: Futebol e nacionalismo na década de 1950 (Nelson Herbert, filho do jogador da selecção da província, Armando Lopes ou Búfalo Bill)

(****) Último poste da série > 24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8942: Notas de leitura (291): Arquitectura Tradicional da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)