Bobo Keita (abreviadamente, BK) estreou-se no Leste, para onde foi destacado por Amílcar Cabral para fazer “trabalho político”. A data é imprecisa: mas terá sido em Outubro de 1961. Não sabemos quais os critérios usados na escolha, se é que os houve: de qualquer modo, BK era muçulmano e o leste era essencialmente habitado por população islamizada.
Numa das tabancas (fula ? mandinga ? balanta ? beafada ? ), ele e os seus camaradas foram recebidos, aparentemente, com hospitalidade e boa fé, para logo de seguida serem denunciados às autoridades locais. Tiveram que fugir, debaixo de fogo dos tugas (não sendo claro se estes eram forças do exército ou, mais provavelmente, polícia administrativa, sabendo-se que ainda eram escassos os militares, metropolitanos, estacionados no território em 1961).
Foi o batismo de fogo do BK, embora sem consequências de maior. Desta vez ninguém foi ferido ou preso.
Mas o “Cabral mandou-nos regressar a Conacri”… A estreia tinha sido desastrosa… “Era urgente redefinir a estratégia de mobilização” (p. 68).
Em 1 de outubro de 1961 morreu-lhe a mãe, que o tinha ido procurar a Ziguinchor, no Senegal, preocupada com a sorte do seu filho de quem se dizia que passava mal em Conacri. Constava que BK ia ao Senegal “carregar bananas para subsistir” (sic) (p. 69). Em Ziguinchor a mãe acaba por não encontrar o filho e, pior, morre de doença súbita.
Na época os militantes do PAIGC não circulavam livremente no Senegal. Cabral arranjou um salvo-conduto para BK ir ao choro de sua mãe. BK é preso no aeroporto de Ziguinchor. Com alguma sorte e esperteza, acabou por ser solto. E teve tempo de passar alguns dias com a família que tinha hospedado a sua mãe. Quase meio século depois, BK recorda, emocionado, esse momento:
“Embora me tivesse preparado psicologicamentre, não pude conter as lágrimas quando me remeteram os seus pertences. Nesse dia, fui invadido por uma profunda emoção e chorei a morte da minha mãe que nunca mais veria” (p. 71).
BK volta a Conacri. Retoma o trabalho de mobilização, sendo destacado desta vez para uma vasta região que ia do Cacheu até ao Óio, incluindo as zonas de "Varela, Susana, Subijac, Bassarel, Elias, Bobonda, D. Domingos, Apiudjo, Sedengal, Bigene, Binta, Farim, Cuntima e Ingoré". Foi na época de 1961/62.
"Contrariamente ao que se passou na zona leste onde fomos denunciados logo à chegada, aí tivemos francos sucessos. Estávamos mais à vontade no norte” (p. 75).
Esta foi, em boa verdade, a “primeira grande missão” confiada ao antigo titular da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, agora transformado em militante nacionalista. Em Conacri, Amílcar Cabral marcava pontos, ao ver reconhecido por Sékou Turé, o seu Partido Africano para a Independência (PAI) como "o único representante legítimo dos povos da Guiné e de Cabo Verde". (Isto terá sido em 1962, mas o BK diz que foi em 1961). Na realidade, os estatutos do PAI são revistos em janeiro de 1962. E só a partir de agosto de 1962 é que a sigla PAI passa a ser substituída pelo acrónimo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
Perdedores deste braço de ferro, travado em Conacri, foram o MLG (Movimento de Libertação da Guiné) e a FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), ambos criados por François Mendy, um manjaco, de nacionalidade francesa, e antigo expedicionário na Argélia, em 1959 e 1962, respetivamente.
Fotograma do filme Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, com 39' de duração. Guerrilheiros do PAIGC, no Morés. Em primeiro plano, um deles empunhando uma Patchanga; e um outro, uma Ricco... Filme projetado no doclisboa2011... Foto de Luís Graça (2011).
Por outro lado, no interior da Guiné, a luta clandestina não era fácil. O ano de 1962 é de grande repressão. Em fevereiro de 1962 há uma vaga de prisões levadas a cabo pela PIDE. O histórico Rafael Barbosa é detido.
Eis o relato do BK em relação às dificuldades desse ano, experimentadas no interior do território:
"(...) Em 1962 os tugas lançaram uma grande campanha de prevenção no interior da Guiné. Não podíamos nem estacionar num lugar para fazer o trabalho de mobilização. Pior ainda era que não tínhamos armas naquela altura, as frentes de combate ainda não estavam constituídas. Tirávamos as sandálias de plástico, e andávamos descalços, porque os tugas observavam os pés e tinham informações de que os guerrilheiros de Cabral usavam sandálias de plástico... Diziam que eramos 'terroristas', chamavamn-nos 'turras', bandidos." (p. 76)
BK e os seus camaradas só em 1963 (princípios ?) receberam as primeiras armas: 1 pistola metralhadora PPSH 41, calibre 7,62 mm, com tambor de 72 munições, de origem soviética; 1 espingarda semi-automática, Simonov, de calibre 9 mm, com capacidade para 30 munições, e igualmente de origem soviética; e ainda 25 granadas ofensivas.
A PPSH, a que chamávamos “costureirinha”, foi batizada por BK e seus camaradas como “Patchanga”, que era então um estilo de música tipo salsa, latinoamericano… A alcunha tem a ver com “os discos Patchanga que nos faziam dançar em Bissau” (p. 78). A Simonov, uma arma mais pequena, por sua vez, foi batizada como “Ricco”… Explicação ?
“Havia a música congolesa do conjunto Ricco Jazz cujos discos de 45 rotações, os mais pequenos, faziam dançar Bissau” (p. 78-79).
Essas primeiras armas vieram de Marrocos, diretamente de Rabat para Conacri. Mas o carregamento, que vinha camuflado, acabou por ser descoberto, devido ao arrombamento de uma das caixas por uns vulgares ladrões que procuravam outro tipo de mercadorias… Na sequência desta “bronca” todos os dirigentes do PAIGC, presentes em Conacri, foram detidos por ordem das autoridades locais. Amílcar Cabral, que estava no estrangeiro, teve de regressar, de imediato, a Conacri para resolver a delicada situação que configurava o primeiro conflito sério do PAIGC com Sékou Turé…
Este incidente teve, como condão, levar alguns militantes do PAIGC a decidir iniciar a luta armada, com o escasso material que possuíam ainda e com a impreparação geral.
“Fizemos algumas acções isoladas só para marcar o acontecimento e dar a entender que estávamos dispostos a tudo para lutar contra os colonialistas. No fim, Sékou Turé compreendeu que não se tratava de uma aventura ordinária e mandou libertar os camaradas” (p. 80).
Mal conhecendo o funcionamento das armas distribuídas, BK tomou a Ricco e o João Silva a Patchanga, preparando-se para a luta no norte, enquanto no sul o jovem Arafan Mané, com apenas 18 anos, atacava Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (p. 86-87). Não é claro, das conversas com BK, se as ordens vieram de "cima" (ou seja, de Amílcar Cabral, que centralizava tudo), se foi uma "iniciativa espontânea" dos comandantes operacionais que estavam no terreno...
BK e João Silva escolheram Elias, no chão felupe, para iniciar as hostilidades no norte… “Outros camaradas foram para Varela e Susana” (p. 81). BK conta como foi o seu verdadeiro batismo de fogo:
“Disparámos tiros à toa, queimámos casas. Não tínhamos nenhuma formação militar. Só algumas bases rudimentares. Eu, por exemplo, nunca tinha disparado um tiro na minha vida, foi aí a primeira vez que ouvi o som dum tiro disparado por mim mesmo” (p. 81).
Os guerrilheiros que foram atacar Varela não tiveram a mesma sorte que os que foram a Elias. Os Felupes ripostaram em massa. Todos os atacantes foram mortos “com arcas e flechas” (sic). Cortaram-lhes as cabeças e levaram-nas para mostrá-las aos portuguesas…
O início, pois, desastrado e desastroso!... Osvaldo Vieira, o comandante da Frente Norte, mandou então retirar o seu pessoal para Bigene e daí para a fronteira, uns, e o Morés, outros.
Entretanto, nos primeiros 5 anos da luta armada, as relações com os senegaleses não vão ser fáceis.
“Ficámos [na fronteira norte] durante 5 anos. Tivemos tempo de estabelecer relações de confiança [ - eu acrescentaria, e de cumplicidade –] com as autoridades senegalesas. Na primeira fase da luta, os senegaleses só autorizavam a nossa instalação nas tabancas, na segunda fase, quando a luta armada já tinha começado, autorizavam os nossos camiões que transçportavam alimentos . Da nossa parte aproveitávamos para camuflar armamento nos camiões” (p. 88).
BK tranforma-se em traficante de armas e contrabandista. A sua tática era subornar os "gendarmes" senegaleses que passaram a fazer vista quando os camiões do PAIGC circulavam com mantimentos para a guerrilha...
(Continua)
Luís Graça,
Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 28/10/2011
[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]
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Nota do editor:
1 comentário:
Tive finalmente hoje acesso a um exemplar do livro, gentilmente cedido pelo seu autor, Norberto Carvalho...convenhamos um testemunho,um contributo inestimavel a historia da independencia da Guine... com destaque para os capitulos dedicados ao ambiente em Conacri, que antecede ao assassinato de Amilcar Cabral e a "questionavel divergencia" entre caboverdianos e guineenses nas fileiras do PAIGC... diga-se um argumento nunca tao bem desmontado como Bobo Keita o faz nos seus depoimentos a proposito !!!
Para a abordagem de uma tal polemica questao, da forma clarividente e frontal como BK, o faz, so os grandes e convictos nacionalistas !!!
Nelson Herbert
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