sábado, 5 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como >  Op Tridente > Jan/Mar 1964 >  Foto publicada na 2ª edição de Tarrafo (Braga, Pax Editora, 1970), em anexo, com a seguinte legenda: "20. Quando o cansaço é demasiado,o corpo sucumbe". [A foto pode não ter sido tirada na Ilha do Como, só o autor poderia esclarecer, mas para o caso não é relevante]



Foto: © Armor Pires Mota (1970-2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.












1. Continuação da publicação de Tarrafo:  crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed., ed. de autor, Aveiro, 1965. Parte 2 (Ilha do Como, Jan / Mar 1964), pp. 79-82. (*)... Este é último episódio relativo à Op Tridente, cuja duração de 72 dias (de 15 de janeiro a 24 de março de 1964).  Esta edição foi retirada do mercado, na época, e está esgotada. Na 2ª edição, "autorizada", o autor reformulou este episódio, que aparece sem data, com o título "O tambor de pele de boi" (pp. 135-137).

Com a amável autorização do autor, o nosso camarada  Armor Pires Mota, natural da região da Bairrada (Oliveira do Bairro), ex-Alf Mil, CCAV 489  (1963/65),  começámos, a partir de 14 de Outubro passado, a reproduzir, no nosso blogue, nesta série Antologia, as crónicas do Tarrafo, relativas à Op Tridente,  recorrendo para o efeito a um exemplar, fotocopiado, da primeira edição do livro (pp. 47 a 85), onde ainda eram (e são)  visíveis as marcas do lápis azul da censura.  


2. Paralelamente, e tanto quanto possível cronologicamente,  temos vindo a acompanhar o relato dos acontecimentos, na versão de outro combatente do Como, o nosso amigo e camarada Mário Dias, hoje sargento comando reformado, membro da nossa Tabanca Grande.  Em relação aos restantes dias que se seguiram depois de  1 de Março de 1964 até ao final da operação (que terminou a 24), selecionámos o seguinte excerto (retirado da I Série do nosso blogue):


(…) 9. As vacas e o arroz 

Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT. 

Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a Biaque Dehethé, sendo remetente Mussa Sambu, de Conakry. 

Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.

Coisas da guerra … sempre impiedosa. 

Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328”.

10. Últimas operações


Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassaca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada. 

Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de Inácio Batalé, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas. 

Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.

Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.

Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.


Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9 mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha. Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos. 

Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros. 

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como. Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”. Foram também os últimos banhos. 

No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” [ A sorte protege os audazes]. 

Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou. 

BAIXAS DE AMBOS OS LADOS 

Das NT: 8 Mortos; 15 Feridos.
Do IN: 76 Mortos (confirmados); 29 Feridos; 9 Prisioneiros 

CONCLUSÕES

De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.

Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.  Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que: 

- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963; 

- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado; 

- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação; 

- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata; 

- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência; 

- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao seu pessoal e transcrita nesta crónica; 

- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha.

A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar),  que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira: 

(i) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT; 

(ii)  A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região; 

(iii) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história)...

Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e, 

Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados. (…)

Mário Dias

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8981: Antologia (74): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (7): Ilha do Como, s/d [Março de 1964]

Postes anteriores desta série:

3 comentários:

Luís Graça disse...

Não posso deixar de agradecer, aqui, em público, mais uma vez, os bons ofícios do nosso camarada José Marques Ferreira, amigo e vizinho do Armor Pires Mota, que serviu de "intermediário" entre nós e o autor de "Tarrafo"... Foi através dele que obtivemos a autorização do APM para reproduzir estas páginas da 1ª edição desta obra, que é um marco de referência na literatura da guerra colonial. Bem hajam os dois!

José Pedro Neves disse...

Faço minhas, as palavras do Luis Graça, com a devida vénia.
São documentos como este, que fazem a diferença, na História da Guerra Colonial.
Para os jovens de hoje, que sirva pelo menos, para ficarem a conhecer um pouco, a vida dos jovens que nós já fomos e agora somos pais e avós.
Os meus agradecimentos ao Autor de "Tarrafo", Armor Pires Mota.
José Pedro Neves

José Marques Ferreira disse...

Camarada Luis Graça;

Prova provada que ando por aqui de vez em quando (quase diariamente como respondi ao inquérito) e para acrescentar que nada há de bons ofícios. Está em causa esta nossa tabanca e por ela o que posso fazer, farei sempre. Neste caso com o Armor Pires Mota é fácil, porque se trata de uma pessoa afável, compreensiva, e que, também, por estas iniciativas, porque o conheço, está sempre pronto a colaborar. Agora está muito ocupado e preocupado com trabalhos literários de vulto sobre a região e ainda há dias, em Oliveira do Bairro, na Câmara Municipal, bastantes pessoas assistiram ao lançamento de um livro de poremas, que ele fez questão de editar, para oferecer ao amigos. Lá estive. O livro de poemas intitula-se «No coração da memória».
Já referi há tempos um livro sobre a Guiné, intitulado «Guiné: Sol e Sangue» É muito bom aqui para o blogue, edição de 1968. Ainda «A Cubana que dançava flamenco», ficção, mas de interesse empolgante. «A estranha noiva de guerra», em 2ª edição, com prefácio e apresentação (também lá estive) de Mário Beja Santos.
Quanto ao resto, fiz o que devia fazer, pelo que são dispensáveis as referências de enaltecimento.
Bem haja a vós pelo trabalho aqui desenvolvido.

Cum um abraço,

JM Ferreira