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segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (167): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca. (*)

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Cherno Baldé, com data de 1 do corrente:

Conforme prometido, junto envio mais um texto fruto de algumas notas de leitura feitas à volta da figura mítica, entre os fulas, de Alfa Moló e a criação do reino de Fuladu. Neste texto faço sobressair a importante figura de El-Hadj Omar (Foutyou) Tall, que as crónicas sobre Firdu e sobre Fuladu conferem o papel primordial no levantamento da população fula contra os soninquês pagãos (mandingas) do reino de Gabu na segunda metade do séc. XIX.(*)

Espero que tenha interesse e possa ser publicado no nosso blogue da Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos, Cherno Baldé




2. Notas de leitura (**):

ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - Parte I

por Cherno Baldé


Em Junho de 2010, no poste P6661 (*), falando sobre os acontecimentos ocorridos no regulado de Sancorlã, nos períodos de antes e após independência (1903-1974), tinha escrito:

“Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana dos últimos séculos, nada acontecia por acaso. Tudo se fundamentava e se justificava, partindo de pressupostos de ordem mística que, aparentemente, estariam na génese de todos os acontecimentos, fossem eles bons ou maus, fossem de natureza política, económica ou social, sempre explicados a partir da conjunção de determinados factores de ordem mística, muitas vezes sob a forma de pactos com seres invisíveis ou simplesmente entre indivíduos ou grupo de pessoas e cujo (in)cumprimento poderia ser sancionado ou premiado a seu justo valor e no devido tempo ».

Estes, eram tempos em que não havia só um Deus, mas muitos deuses, não havia só uma crença, mas uma pluralidade delas, tempos em que a África ainda não se orientava por Meca ou pelo Vaticano, mas sim através dos deuses (Irãs) que habitavam ao seu lado e com os quais podiam falar na sua própria língua.

Os povos que habitavam no reino mandinga de Gabu, mesmo se chegaram em tempos diferenciados, com origens diversas e viviam sob condições sociais diferentes, tinham em comum o facto de partilharem o mesmo espaço sócio-económico e ambiental, obrigando-os, necessariamente, a uma interação económica e mestiçagem cultural constante. Nessas condições, deveras adversas, que os indivíduos fossem de puro sangue (se o termo faz algum sentido) ou que fossem de sangue mestiço ; que fossem homens livres ou de condição servil, as identidades não eram imutáveis, mas submetidas a uma permanente construção, como foi o caso da família de Alfa Moló Baldé.

[Recorde-se: (i) Gabu foi a capital do Império Kaabu (também conhecido por Ngabou ou N’Gabu), um reino Mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na chamada Senegâmbia, região que abarcava o nordeste da atual Guiné-Bissau, mas que se estendia até Casamança, no Senegal. 

(ii( Antes disso, Gabu, ou Kaabu, fora uma província do Império Mali que se tornara independente depois do declínio do império. 

(iii) No século XIX, os fulas estabeleceram a sua supremacia na região, pondo fim ao domínio de Kaabu. 

(iv) Durante o período colonial a cidade passou a ser designada por Nova Lamego, mas recuperou o seu nome tradicional após a independência do país." Fonte: Gabu (região). In: Wikipédia, com a devida vénia...]

(i) A chegada e a instalação de familias Fulas no território mandinga de Gabu

Segundo Abdarahmane Ngaindé, os mandingas do reino de Gabu enquanto guerreiros e esclavagistas, tinham construido fortins (tatas),) cobrindo este grande espaço territorial. Citando Michel Benoît, ele escreve :

 "Uma provincia, muitas vezes, não era mais que um tata instalado no meio da floresta que algumas famílias de pastores fulas percorriam com as suas manadas de gado bovino" (Benoît 1988, 510). 

Esta ocupação descontinua do território e a facilidade de instalação dos pastores fulas permitiam amplo aproveitamento do espaço para a criação itinerante dos seus animais.

Os especialistas da história do império de Gabu não são unânimes quanto à data exacta da chegada das primeiras vagas de famílias fulas nesta região de África Ocidental. As testemunhas, quando solicitadas, perdem-se sempre nas neblinas de longas histórias invocadas com muita emoção, mas pontuadas de muitas fantasias e imprecisões. As migrações, dizem, teriam sido feitas por escalas incessantes, facto que dissipa e impossibilita qualquer tentativa de descrever em detalhes a origem e percurso exacto desta ou daquela vaga de habitantes fulas.

Todavia, é sabido que as populações fulas de Fuladu são de origens diversas, podendo-se dinstinguir as originárias de Macina (actual Mali) ], como é o caso da família do autor destas linhas, o Cherno Baldé], de Bundu e Futa-Toro (actual Senegal), assim como do Futa-Djalon (Guiné-Conacri). A chegada desta última categoria é mais recente e data da segunda metade do séc. XIX.

Alguns autores, tais como Mamadu Mané ou Djibril Tamsir Niane, pensam que uma parte desta população se teria fixado nesses territórios com as primeiras vagas mandingas cuja chegada remonta aos séculos XIII/XIV, baseando-se num provérbio popular entre os mandingas segundo o qual "quando um mandinga chega de manhã, invariavelmente, o fula chega à tarde".

No entanto, pensam outros, é bem possível que tenham chegado um pouco mais tarde do Futa-Djalon na sequência das repressões que se seguiram à tomada de poder dos letrados muçulmanos, contra as populações pagãs a quando da revolução teocrática de 1725 (Ngaide, 1998).

De notar que estes movimentos de populações fulas para esta região foram muito semelhantes à digressão conduzida pelo célebre Coli Tenguella que chegou ao Futa-Toro (Senegal) em 1512 para fundar o primeiro reino fula dos Denyankês, tendo atravessado o Futa-Djalon e o actual território da Guiné-Bissau onde teria tido confrontos com os Biafadas, atravessando o rio Corubal (para os fulas o rio Corubal é Mayôh-Côli, isto é, rio Coli, em homenagem ao lendário chefe fula que teria abandonado o Mali, após a morte do pai «Tenguella Bâ », durante o reinado de Askia Mohamed),  o que teria favorecido o aumento da população fula, juntando-se aqueles que ja lá estavam.

A abundância de pastagens,  aliada à existência de extensas bacias hidrográficas, permitiram-lhes consolidar as suas bases económicas e sociais em todas as províncias que os acolheram, reforçadas pelos dons e oferendas aos príncipes e aos diferentes governadores (Farins) dos clãs mandingas reinantes naquelas províncias. Mais tarde e paulatinamente, eles se sedentarizam e se  passaram a dedicar-se, também, a uma agricultura pouco extensiva aos cuidados dos seus escravos ou servos, a fim de garantirem seu sustento.

Em conclusão, diz-nos Ngaidé Abdurahmane, poder-se-ia dizer que, desde finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, os fulas, chegados em vagas sucessivas, predominam em várias províncias de Gabu e as riquezas destas mesmas províncias dependiam, em larga medida, do número destes últimos. Isto é confirmado, diz-nos Ngaindé, pelo testemunho de Francis Moore [c. 1708 - c. 1756],  citado por Mamadou Mané. Este autor sublinha que « …sem estes estrangeiros (os fulas), os mandingas correriam o risco de passar fome, pois eles tiram deles todo o seu sustento » (F. Moore, 1978).

Este testemunho do inglês F. Moore, é datado do início do sec. XIX (1804). Um pouco mais tarde, na segunda metade do mesmo sêculo, o residente francês em Karabane (Casamansa), E. B. Bocandé (1812-1881), oferece-nos um testemunho similar ao afirmar:

«…é em proporção do número de Fulas estabelecidos no seu território que os chefes das aldeias mandingas devem a sua força, poder, a riqueza e a consideraçao de que beneficiam, porque aqueles o dão presentes de forma continua".

Ainda, segundo Abdarahmane, citando um outro testemunho inglês, Joye Bowman Hawkins « Os fulas eram tratados como sujeitos sob dominação e, como tal, deviam pagar uma taxa anual pela utilização das zonas de pastagens. Nessas condições, cada família era obrigada a pagar um determinado número de cabeças de gado. Os chefes mandingas davam-se ao luxo de escolher os melhores animais da manada, às vezes de forma abusiva, o que tornava as coisas cada vez mais insuportáveis na perspeciva dos fulas" (Bowman,  1981), para os quais aqueles animais não eram simples animais, mas considerados como membros da própria família.

E, é neste mesmo sentido que Mamadou Mané sublinha:  « Porque eram detentores das riquezas materiais (gado e produtos agrícolas como algodão e milho) os fulas eram constantemente abusados e explorados mais que todos os outros, pela aristocracia kaabunké" (Hawkins, 1981 et Quinn, 1971).

Estes testemunhos, entre muitos outros deixados por administradores e aventureiros europeus em África, permitem fazer-nos ver, para além dos abusos recorrentes e das suas consequências sociais, o papel fundamrental que detinham os fulas no reino mandinga de Gabu.

A acumulação de vexames e a situação económica e social no interior do reino no periodo após a abolição da escravatura, pelos ingleses, e o consequente declinio do comércio atlántico, vão estar na origem da revolta que vai derrubar os alicerces do reino e afastar os mandingas dos seus territorios de dominio tradicional.


(ii) Alfa Moló e o nascimento do reino de Fuladu

« Os primeiros anos do reino de Alfa Moló coincidem com a constituição do reino (1867-1881). Durante este período o povoamento fula se reforça e as populações ocupam zonas bem determinadas no antigo reino Gabunké, espalhando-se através do território recentemente 'libertado'. A sociedade fula implanta-se progressivamente e os diferentes elementos da sua organização económica e social se estabilizam. A secunda fase (1881-1903) coincide com o reino do seu filho, Mussa Moló. Este período é caracterizado por uma guerra fratricida que opõe Mussa ao seu tio Bacar Demba e de seguida ao seu irmão Dicori Cumba. Será um período dominado pela recrudescência da violência e das destruições humanas que acompanham-no" (Abdarahmane Ngaindé, 1998).

A juventude de Alfa Moló, diz-nos Abdarahmane citando De Roche, parece ter tido "um carácter particular" (Roche, 1985) na medida em que numerosas fontes de informação confirmam que ele foi educado pelo seu mestre, Samba Egué, que não tinha um filho varão , pelo que considerava aquele como seu filho legítimo a quem, de resto, tinha dado o seu apelido, facto que explica os privilégios que Alfa Moló vai beneficiar durante a sua juventude.

Com efeito, ele teria sido educado como um nobre, beneficiando de toda a atenção requerida e, em vez de se ocupar do gado, ele gostava de se entreter nas lides de cavalos, as idas à caça e ao maneio das armas, actividades reservadas, exclusivamente, aos homens corajosos e também livres. Mais tarde, ele será um caçador destemido, tendo à sua volta auxiliares (aprendizes) aos quais ele introduzia na arte do ofício. Naquela época, os caçadores eram muito considerados, gozando de um grande prestígio, fruto da sua coragem para enfrentar os diversos perigos visíveis e invisíveis escondidos na floresta africana.

Mas, apesar de tudo o que se pode dizer sobre Alfa Moló, que seja de origem nobre ou servil, de nada diminui a importância e o valor da acção que ele e seus companheiros vão realizar e a notoriedade que ele vai adquirir no periodo subsequente. Todavia, o nome de Alfa Moló Baldé só entra, verdadeiramente, em cena depois da passagem de El-Hadj Omar Tall (mais tarde imperador do Sudão), o Marabu que vai estar na origem do mito que envolve o surgimento do reino de Fuladu e os seus principais protagonistas.