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sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25848: Manuscrito(s) (Luís Graça) (253): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - II (e última) Parte


Lisboa > Hospital Real de Todos os Santos (1492 - 1775)  <c.  1ª metade do séc. XVIII > Por menor de Painel de azulejos de oficina de Lisboa,  existente no Museu da Cidade, Lisboa. (Com a devida vénia...)



I Parte

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

II Parte

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O provedor

4.2. O almoxarife

4.3. O hospitaleiro e o vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar


Artigo originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, 



O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo:

II (e última) Parte (a)


4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor


À frente do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS) (também conhecido na cidade pelo Hospital dos pobres) estava o provedor, o official principal, que deveria ser "pessoa honrada, e de bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" (Regimento...,1984: 35). 

De preferência, a escolha deveria recair num membro do alto clero ou, em último caso, um leigo solteiro, letrado, que fosse da confiança pessoal e política do rei, ou seja, da corte.

De facto, por ser "couza tam grande, e de tão grande maneo" (sic), o hospital deveria ser administrado com "muy grande recado", tanto no que tocava ao "serviço de nosso Senhor", como no que dizia respeito à "conservação da mesma Caza" que - sublinha enfaticamente o outorgante do seu regimento - foi "feita para obras de piedade, e de serviço de Deoz " (Regimento...,1984: 35). Daí o provedor dever "ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos".

A avaliar pelo menos pelo espírito e letra do citado regimento as principais funções do provedor (Quadro 2, em baixo) não seriam então muito diferentes daquelas que hoje em dia são atribuídas à actual figura do presidente do conselho de administração   dos nossos hospitais.

Repare-se que a preocupação em atribuir explicitamente ao provedor a função de zelar pelo cumprimento da missão do HRTS enquanto instituição. Mais concretamente:

  • Assegurar a realização da triagem dos doentes, de modo a que no hospital não fossem admitidos doentes incuráveis ou vítimas da peste (estes últimos serão posteriormente referenciados para a Casa da Saúde, em Alcântara, nos arredores da cidade);
  • Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não pudessem deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios;
  • Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas (um problema que se vai agravar na Lisboa das Descobertas);Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.



A partir de 1564, com a passagem da administração do hospital para a Misericórdia de Lisboa, o título de provedor passa a ser substituído pelo de enfermeiro-mor:

Essa tradição irá manter-se até 1913, ano da criação dos Hospitais Civis de Lisboa e da extinção do cargo de enfermeiro-mor;

Em 1913, a nova primeira figura do hospital passa a chamar-se director.

Em 1927, em plena ditadura militar, o cargo de enfermeiro-mor é restabelecido e manter-se-á durante o Estado Novo (Graça, 1996).

O mesmo Capítulo III do Regimento do HRTS define a área de influência do estabelecimento, o qual devia cobrir a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".

Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.


4.2. O Almoxarife

O almoxarife - que devia ser "homem de bem, e de fiança, e bemcriado" (Capº VIII, pp. 57 e ss.) estava encarregue fundamentalmente dos seguintes funções:

  • Contabilidade e tesouraria (cobrança de receitas, em dinheiro e em géneros, pagamento de despesas, incluindo os vencimentos e salários, ou seja as "tenças, e mantimentos dos Officaes e Capellaes, e mercieiros e todas as outras pessoas q no dito Esprital servirem", p. 58), no que era auxiliado por um escrivão;
  • Aprovisionamento do hospital, ou seja, o "carrego de (...) comprar todas aquelas couzas q se houveremm de comprar por grosso, e em quantidade".


O regulamento vai ao pormenor de estipular que o almoxarife "não faça despesa de nenhuma couza grande nem pequena, salvo por assinados (...) e mandados do Provedor" e na presença do "Escrivãoq temos ordenado da receita e despeza do dito Almoxarife" (p. 58), "sob pena de perdimento do Officio e mais qualquer outra q for nossa merce" (p. 57).

Este escrivão seria já um precursor do moderno contabilista. Competia-lhe fazer a escrituração de três livros diferentes:

  • "Terá livro bem decracrado de todas as rendas, bens propriedades, e fazenda qualquer outra" do hospital bem como o nome daqueles "a quem sam aforadas, e emprazadas", etc. (Capº VIII, p. 61);
  • Terá ainda um livro da despesa diária;
  • Bem como um livro de registo anual de "todolos meninos Engeitados" (p. 62).

Esta figura é distinta do outro escrivão (tabelião ou protonotário) a que se refere o Capº I, "que ha de haver (...) dante o Provedor do dito Esprital". Não era residente no hospital e nem sequer tinha direito a remuneração:

"Este não hade haver mantimento algum pelo Proveito do seu Officio, hade escrever em todolos feitos q se tratarem perante o Provedor, fara as Escrituras demprazamentos das propriedades e todo o mais q a isto pertencer, segundo q agora já o faz" (p. 20).

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

A minúcia do regulamento é de tal ordem nem sequer deixou de fora as funções de categorias de pessoal que corresponderiam hoje ao agrupamento do pessoal operário e auxiliar dos nossos estabelecimentos hospitalares, tais como:

  •  o despenseiro (Capº VI), 
  • a costureira ( ou alfayata ) (Capº XIII) 
  • e a lavadeira (Capº XIV).

Ainda ao nível dos serviços de apoio, havia a figura do vedor (Capº V, p. 51) a quem cabia "a principal parte do Governo do dito Espitral, e da boa Ordem e Conservação das couzas delle". As suas funções seriam, pois, de intendência e supervisão dos serviços hoteleiros (e, em particular, da alimentação dos doentes e do pessoal).

Parte das tradicionais funções da gestão hoteleira também eram da competência do hospitaleiro (ou espritaleiro) (Capº XI) e da hospitaleira (ou espritaleira) (Capº XV).

Essas funções eram basicamente as de administrar o serviço de rouparia e de limpeza, mas também de supervisão e avaliação do serviço de enfermagem:

"O dito Espritaleiro he obrigado a prover muy a meude e ao menos duas vezes no dia se os Enfermeiros cumprem o q por bem de seus Officios devem, e se fazem de dia, e de noute as piedades, e serviço dos doentes, q por bem de seus Regimentos sam obrigados, segundo a necessidade, q a cada hum tever, e na quello q vir, q não cumprem segundo sua obrigaçam os amoestará, q se emmendem, e fará saber ao Provedor o que não fizerem bem feito, ou de todo não cumprirem para nisso prover, e fazer como o cumpram, e fação o q nisso são obrigados" (pp. 78-79).

O hospitaleiro tinha ainda o "carrego da Caza dos pedintes, andantes, q se hamde recolher na Caza q para elles he ordenada no dito Esprital" (p. 80). 

É provável que houvesse conflito de papéis entre o hospitaleiro e o vedor: em todo o caso o primeiro tinha originalmente um estatuto remuneratório superior ao segundo.


4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

Quanto aos praticantes da arte de curar, ou prestdaores de cuidados de saúde (como diríamos hoje), o regulamento do hospital previa originalmente as seguintes categorias:

  • Um físico
  • Dois cirurgiões
  • Dois ajudantes de cirurgião
  • Um boticário
  • Três ajudantes de boticário
  • Doze enfermeiros (dos quais três com a categoria de enfermeiro-mor)
  • Um barbeiro-sangrador
  • Uma cristaleira (mulher encarregue de ministrar clisteres)

Todos eles deveriam residir no Hospital, à exceção de um dos cirurgiões e do barbeiro-sangrador.

Ao físico cabia fazer a "visitaçãode todos os doentes (...), duas vezes no dia (...), pela menhã em sahindo o sol, e à tarde até às duas" (Capº IV, p.47), tanto nas enfermarias como nas "outras casas". 

Nesta visita diária, era acompanhado pelo provedor, além do vedor e do hospitaleiro, pelo enfermeiro-mor da respectiva enfermaria e, ainda, pelo cirurgião e pelo boticário (ou seu ajudante).

Este capítulo é notável pela concepção que já havia na época do que deveria ser a organização do trabalho em equipa no hospital. Na prática, não sabemos como as coisas funcionavam. Em todo o caso, na visita diária aos doentes internados, o enfermeiro-mor (categoria equivalente ao actual enfermeiro-chefe) levava uma "taboa" donde constava o nome e o número da cama dos enfermos:

"Feita a vezitação dos pulsos dos doentes" e vistas "as agoas [ urina ] de cada hum q lhe serão dadas pelos Enfermeiros pequenos" (prática a que se resumia, então, e no essencial, o diagnóstico clínico), o físico "bem considerando (...) sobre o remedio de cada hum paciente, ordenará as mezinhas de cada um, segundo q lhe melhor parecer, e as mandará compoer, e ordenar ao Boticário ".

Este último, por sua vez, "traerá consigo huma imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada" na qual o Físico (ou o boticario, se "for melhor Escrivão, e mais despachado" do que aquele) "assentará as receptas e mezinhas, q ordenar para cada hum doente em titulo apartado", isto é, "purgas apartadas por sy e de todas outras qualidades de mezinhas, debaxo doutro titutlo", por "serem tam desvariadas (umas) das outras". De qualquer modo, o físico devia "assinar (...) na dita imenta as ditas receptas" (p. 48).

O enfermeiro-mor, por sua vez, registava na respectiva "tavoa (...) debaixo do titulo" de cada doente, a dieta prescrita pelo físico, "para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador". Esta prescrição era igualmente assinada pelo físico ou pelo cirurgião.

O físico tinha ainda que fazer o que hoje chamaríamos o serviço de banco de urgência (ou, talvez melhor, de consulta externa), nomeadamente "ver todolos enfermos q á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, q para suas curas lhe parecer compridouro". Devia ainda "vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, q á Fizica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor q poder na casa apartada, q para oz ditos doentez hordenamos no dito Esprital" (p.49).

Notável é também, para a época, a preocupação do legislador com a eficiente utilização dos recursos, e nomeadamente dos medicamentos, obrigando o físico a "sempre prover a imenta das receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, por q ás vezes se manda fazer huma mezinha, e o paciente a não toma". Ou seja, já na época se punha o problema da aderência à terapêutica e da sobremedicação. Ora, para que tal não aconteça, o médico "proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor q se possa fazer e falloha de maneira q se não possa fazer couza indevida e seja tudo aproveitado como devem " (p. 49).

O regimento do físico aplicava-se igualmente ao cirurgião (Capº XII). No hospital estava prevista existência de dois celorgiaes, um dos quais residente e com funções de ensino:

Que "o dito Celorgiam q hade viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mossos q hade ter, e q hamde ser pagos das rendas do Esprital, para aprenderem theorica, e pratica , e poderam ficar ensinados para o serviço do dito Esprital" (p. 83). Esta disposição prefigura já a criação da primeira escola de cirurgia do país e do internato complementar de cirurgia.

Os dois cirurgiões eram, tal como o físico, obrigados a visitar duas vezes ao dia "todos os enfermos (...) q de Cilurgia ouverem de ser curados" (p. 83).

O enfermeiro-mor (Capº X), que chefiava cada uma das enfermarias, tinha "cuidado principal da cura, e da vizitação dos doentes", devendo ser "homem caridoso, e de boa condição, e sem escândalo". Na época, e durante muito tempo, os enfermeiros eram recrutados entre o pessoal religioso, nomeadamente das ordens hospitaleiras.

Os enfermeiros tinham o "carrego de todo o serviço dos doentes" (que deviam servir "com toda caridade , e amor q devem por Deoz, e por os proximos"), incluindo a higiene pessoal do doente, a muda das camas, a limpeza das enfermarias e dos "ourinoes". Esta última (duas vezes por semana no verão e uma por semana, no inverno) era sobretudo uma tarefa dos seus ajudantes (ditos enfermeiros pequenos ), bem como dos escravos (que, trazidos de África, chegaram a constituir 10% da população de Lisboa da época).

Nesta altura, já existia (ou estava previsto) o trabalho nocturno e por turnos em enfermagem, tal como se depreende deste capítulo: "Item sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos (...) de Vellarem todas as noutes agyros todos os Enfermos de suas Enfermarias" (p. 71).

Além disso, retirar, amortalhar e enterrar os mortos com discrição e dignidade era uma responsabilidade da enfermagem. 

Assim, em caso de falecimento de algum doente, os enfermeiros "tiraloham do leito onde gouver pelo corredor q está detraz dos leitos por q os outros doentes os não possam ver, nem recebam com isso torvaçam , e levarão o tal finado á Igreja" e dali para o cemitério, depois de prestado o serviço fúnebre religioso (pp. 72-73).

A administração aos doentes das "purgas, lamedores, unções" e demais mezinhas, prescritas pelo médico (a que se resumia, no essencial, a panóplia terapêutica da época), também era tarefa dos enfermeiros. 

Tinham, além disso, um armário onde guardavam "alguns repairos convem a saber dasucar rosado, e agoas de cheiro, e outros cordiaes, e asy cheiros para os darem aos doentes de noute, e de dia quando lhe parecer necessario".

O fornecimento desses produtos ("couzas do repairo dos doentes") era decidido pelo provedor e pelo físico, de acordo com o que era de "mais proveito para os doentes, segundo as suas paixões, e Enfermidades" (p. 75).

Competia ainda ao enfermeiro estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937. 21-22).

Por fim, era esperado que o enfermeiro cumprisse as suas tarefas, não apenas com "muy grande cuidado", como também "com toda boa vontade, e mansidam, e sem escandalo dos doentes, e com toda a caridade, e consolando-os em suas paixões, e muy ameude lhe lembrando, q se encomendem a Nosso Senhor e a nossa Senhora" (p. 76).

Pelo perfil exigido a alguns dos oficiaes do esprital, presume-se que, pelo menos, o hospitaleiro, a hospitaleira, os enfermeiros e as enfermeiras fossem originariamente recrutados entre o pessoal das ordens religiosas. O restante pessoal seria laico.

Noutros estabelecimentos hospitalares de menor dimensão e importância, o número de oficiais (grandes e pequenos) era mais reduzido (caso de Coimbra, Porto, etc.)

Na cidade de Coimbra, e antes da fundação do primeiro hospital geral, em 22 de Outubro de 1508, na sequência da política de centralização de D. Manuel I, terão existido pelo menos 17 pequenos estabelecimentos assistenciais (na maior parte, hospícios e albergarias), segundo a pesquisa documental feita por Ferrão (199?). Coimbra era então uma cidade que, após a reconquista cristã, em 1064, se irá desenvolver à sombra do Mosteiro de Santa Cruz (fundado em 1130) e, mais tarde, da Universidade (que se instala definitivamente nas margens do Mondego em 1531)

O Hospital da Conceição e da Convalescença, em Coimbra, que resultou da fusão dos demais estabelecimentos assistenciais até então existentes, com excepção do Hospital e da Albergaria de Milreus e da Gafaria de S. Lázaro, situava-se na Praça Velha. Com portal virado para poente, sobrepujando uma varanda de parapeito, possuía três naves. Mais tarde, começou a ser conhecido por Hospital da Praça (Ferrão, 199?, p. 73).

De menor dimensão do que o HRTS, regia-se por um regulamento semelhante, embora as necessárias adaptações. Dirigido por um provedor, de nomeação régia, o hospital de Coimbra tinha também menor número de oficiais do que o de Lisboa (Ferrão, 199?):

  • O hospitaleiro exercia as funções inerentes à enfermagem, além de ter a seu cargo a despensa e a tesouraria;
  • Ao escrivão competia a contabilidade hospitalar e a fiscalização património;
  • Quanto ao capelão, além da assistência religiosa, tinha também a seu cargo o registo dos doentes.

"O tradicional arcão ferrageado, onde se arrecadavam os dinheiros da instituição, possuía três chaves das quais, uma, estava nas mãos do Provedor e as restantes, uma nas mãos do Hospitaleiro e a outra nas do Escrivão" (Ferrão, 199?74).

O hospital tinha, pelo menos, um físico que, durante o dia, devia visitar os doentes, pelo menos duas vezes. O recurso ao barbeiro-sangrador e ao cirurgião era feito de acordo com as necessidades. Também não havia botica própria.

Em 1548, por provisão régia de 24 de Junho, a administração do hospital geral de Coimbra é confiada aos cónegos seculares de S. João Evangelista (ou Lóios, como eram popularmente conhecidos). O seu provedor passou então a ser recrutado entre gente desta congregação. Vinte e cinco anos depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra, o Hospital da Conceição e da Convalescença passa a funcionar como hospital escolar.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ainda em 1830 existia a figura da cristaleira, no Hospital de São José, e durante muito tempo foi um ofício mecânico exercido cumulativamente com o de parteira. No Séc. XVIII uma cristaleira chegava a fazer 400 clisteres por mês!5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar

As diferenças de estatuto do pessoal hospitalar eram já visíveis ao nível remuneratório (vd. Quadro I, em anexo):

  • No ano de abertura do HRTS, em 1504, o leque remuneratório, em dinheiro, seria originalmente de 15 para 1;
  • A remuneração média anual rondaria os de 3$800 réis (Máximo 30 mil, mínimo 2 mil);
  • E o total dos encargos com os seus mais de cinquenta oficiais grandes e pequenos ultrapassava os 250$000 por ano, não contando com outros custos com o pessoal que incluíam formas de pagamento indirecto, em géneros (alojamento, alimentação e até vestuário).

De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal do HRTS deveriam representar cerca de 15 por cento do total.

O orçamento global deste hospital deveria, pois, ser superior a 1600$000 réis; e mais de 60% das receitas seriam muito provavelmente consagradas a custear os encargos com a alimentação tanto dos doentes como do pessoal. Sabemos que, com o tempo, as despesas aumentaram exponencialmente, e o nº oficiais grandes e pequenos terá atingido as 8 dezenas em meados do séc. XVIII (Alberto et al, 2021).

De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:

  • A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
  • A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS;
  • Refira-se ainda a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, que exercia funções de ajudante de lavadeira e que tinham apenas direito a pagamento em géneros (alimentação, alojamento e vestuário).

O provedor (o equivalente hoje ao presidente do conselho de administração do hospital) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito nem a alojamento nem a alimentação, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira, os quais eram pagos à jorna)

O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).

Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).

O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.

No que respeita ao pessoal médico e paramédico, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião, em termos de estatuto remuneratório. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o primeiro capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador. Estranha-se, por outro lado, a não existência de um cristaleiro.

O regimento também é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).

Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.


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Referências Bibliográficas (a rever)

BASTO, A. M. (1934) - História da Misericórdia do Porto, Vol. I. Porto: Santa Casa da Misericórdia do Porto.

CORREIA, F.S. (1981) - Misericórdias. In: Dicionário de História..., op. cit.. 1981. Vol. IV, 1981. 312-316.

CORREIA, F.S. (1984) - Prefácio. In: Regimento..., op. cit. 1984

Dicionário de História de Portugal (Dir. de J. Serrão) (1981). Porto: Figueirinhas.

Dicionário da História de Lisboa (Dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena). Lisboa: 1994.

FERRÃO, A. S. S. (199?) - Os hospitais de Coimbra. Gestão Hospitalar. 199? 73-79.

FERREIRA, M. E. C. (1981) - Capital. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 462-465.

FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).

LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, 2 Volumes. Lisboa: D. Quixote; Ordem dos Médicos (1ª ed., 1899).

NETO, M. L. A. M. C (1981) - Assistência Pública. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 234-236.

PINA, L. (1938) - Aspectos da vida médica portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Casa Holandesa.

Regimento do Hospital de Todos-os-Santos (1984). Lisboa: Hospitais Civis de Lisboa (facsimile da 1ª edição, 1946).

 
(Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia. Estamos ainda a lê-lo.)


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(a) Fonte / Source: Versão adaptada e actualizada de: GRAÇA, L. (1994) - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994) 26-31.

Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

 

Categoria (ou 'título')Remuneração

anual em espécie

Remune-

ração em géneros

Perrfil psicoprofissional (Requisitos)
  UnidadeTotal  
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  

Pessoal    médico e paramédico

     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor  (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor   (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro-sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário

 

Quadro 2 - Funções do provedor do HRTS

Funções

Descrição

Gestão financeira

Gerir as receitas (rendas, doações, exploraçãodirecta) e as despesas (tenças, alimentação, mesinhas)

Gestão patrimonial

Arrendar, aforar e emprazar o património

Reparar e conservar os equipamentos e instalações

Controlo contabilístico

Autorizar, assinar e fiscalizar todos pedidos de despesa, e nomeadamente os do almoxarife

Conferir e assinar semanalmente os respectivos livros

Poder hierárquico e disciplinar

Exercer o poder hierárquico ("ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos")

Admitir, avaliar, suspender e substituir os funcionários

Manter a ordem e a disciplina, bem como controlar a assiduidade do pessoal

Triagem dos doentes

Assegurar que seja feita a triagem dos doentes, de modo a que no hospital não sejam admitidos doentes incuráveis, de acordo com o exame médico

Garantia de acessibilidade

Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não possam deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios

Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas

Qualidade dos cuidados

Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes ("de modo a que sejam muy curados, e providos em suas necessidades, e consolados com boas palavras ")

Participar na visita diária aos doentes

Prevenção dos riscos

Prevenir as infecções hospitalares, através nomeadamente da permanente limpeza e asseio das enfermarias

Eficiência

Assegurar a eficiente utilização dos recursos (incluindo os medicamentos e outros materiais consumíveis)

Fonte: Adapt. de Regimento do HRTS (1984)



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segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (252): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - Parte I

 




Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço (3) e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (2), ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito (1). O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira, com a frente virada para poente (para o que é hoje a praça do Rossio). Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa.

O Paço dos Estaus (ou Palácio da Inquisição) ardeu em 1834. No mesmo sítio, irá constrruir-se, dez anos depois, o Teatro Nacional Dona Maria I.



Museu de Lisboa > Hospital Real de Todos-os-Santos > Mestre "P.M.P."> MC.AZU.0074 > Inícios do Séc. XVIII > Dimensões: Altura: 1, 140 m x Comprimento: 3,430 m > Material: cerâmica. Vd, aqui zoom.
@ José Avelar/Museu de Lisboa









"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializarem bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço. 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715). 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740".


Foto (e legenda): Fonte: Museu de Lisboa | Wikimedia Commons (com a devida vénia...)


Índice:

Parte I

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

Parte II

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor

4.2. O Almoxarife

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Socioeconómica do Pessoal Hospitalar

Referências bibliográficas


Originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, Saúde e Trabalho > Textos > 59. Graça L- (2000) - O Hospital Real de Todos os Santos. Parte I.


 O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade  do príncipe ao génio organizativo

Parte I


1. O hospital monumental renascentista: 
A ostentação da caridade


Se o leitor do nosso blogue passar um dia destes por Lisboa, convido-o a visitar o excelente Museu da Cidade, polo Palácio Pimenta, ao Campo Grande. Aí poderá ter uma ideia da Lisboa pré-pombalina, através de uma magnífica maqueta da urbe e, inclusive, admirar a maqueta do antigo Hospital Real de Todos os Santos (abreviadamente, HRTS), para além de dois ou três admiráveis conjuntos de azulejos onde está representado o HRTS.

Embora a maqueta do HRTS seja uma reconstituição, feita na década de 1950, o que salta à vista é a sua arquitectura - a arquitectura monumental renascentista, reflectindo a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Assistia-se então, no início do século XVI, a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel decisivo nesse movimento.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade da sua administração durante mais de 400 anos. até ao período de 1974/76 (no caso do Hospital de São José e seus anexos, até 1836). Estima-se que o número de pequenos hospitais e outros estabelecimentos do género chegasse às cinco centenas, totalizando cerca de 2500 camas.

A política de fusão e concentração dos hospitais, seguida por de D. João II e D. Manuel II, tem de ser entendida no contexto do longo e sinuoso processo de luta secular do poder régio e, depois, do Estado contra a Igreja. 

Essa luta - muitas vezes cínica e surda - acentuar-se-á com o Marquês de Pombal e culminará com a legislação liberal de Mouzinho da Silveira (1832) e Joaquim António de Aguiar (1834), completada depois com a da República (1910), tendo-se traduzido na secularização da maior parte do fabuloso património fundiário da Igreja (os chamados bens de mão-morta, que estavam fora do mercado imobiliário, não podendo ser alienados) e na drástica redução dos privilégios do clero.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc.,  em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei. 

O Hospital Real de Todos os Santos   é disso um exemplo paradigmático.

Como diz Correia (1984), no prefácio à primeira edição do respectivo regulamento (feita em 1946, por iniciativa de um laboratório farmacêutico, e reproduzida pelos Hospitais Civis de Lisboa, em 1984), "nunca em Portugal houvera hospital tamanho e, pela sua grandiosidade, ganhou fama de ser um dos maiores do mundo", ombreando com os outros grandes hospitais quatrocentistas e quinhentistas da Cristandade, tanto em Itália (Florença, Siena, Roma) como em Espanha (Santiago de Compostela, Toledo).

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a economia mercantil, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

Por outro lado, e como já acima referimos, a arquitectura do hospital renascentista exprime a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade. Uma e outra são possíveis, no nosso caso, devido à enorme acumulação de riquezas, resultantes do comércio ultramarino, e nomeadamente da exploração comercial do ouro da Mina e da pimenta da Índia.

O HRTS estava localizado na cerca do Mosteiro de S. Domingos, onde é hoje a Praça da Figueira. A sua construção foi iniciada em 1492, a 15 de maio, com o lançamento da primeira pedra, juntamente com algumas moedas de ouro, na presença do próprio D. João II,  depois da indispensável (mas morosa) autorização papal (Bula de Sisto IV, 1479, e Breve de Inocêncio VIII, 1942) para reunir o património dos diversos estabelecimentos (mais de quatros dezenas!), existentes na cidade de Lisboa, "cujos proventos não excedessem trezentos florins de ouro" (Goodolphim, 1908, cit. por Basto, 1934. 46).

O hospital só será concluído doze anos depois, em 1504, sendo por isso anterior ao de Santiago de Compostela (1499-1515), mandado fundar pelos Reis Católicos Isabel e Fernando. Na construção do edifício, ou pelo menos da igreja e da sua fachada manuelina,  terá havido a intervenção do  "mestre de obras do reino", Diogo Boitaca (c. 1460-1527), arquiteto de origem francesa, consideradio uma das referências do estilo manuelino.

De 1504 data também o seu notável regulamento (Regimento), outorgado por D. Manuel I (1469-1521), como testamenteiro de seu primo, cunhado e antecessor, D. João II.

É, sem dúvida, um documento de grande interesse histórico, na medida em que nos permite:

(i) ter hoje uma visão global da organização e do funcionamento do hospital renascentista;

(ii) bem como reconstituir a representação dos diferentes cargos ou funções (ou papéis socioprofissionais, como diríamos hoje), do director (provedor) ao médico (físico), ou, pelo menos, dos papéis prescritos pelo outorgante;

(iii) é, sobretudo, é a expressão mais acabada da vontade do poder político de intervir no domínio da assistência, pondo em causa o papel até então hegemónico da Igreja e respondendo, ao mesmo tempo, às necessidades de uma população em que, à subnutrição e à peste endémica, se vêm pôr novos problemas de saúde, novas doenças (até então desconhecidas)  como resultado da concentração urbana e da mobilidade espacial, decorrentes da expansão marítima.

Acrescente-se que D. Manuel I seguiu a mesma política diplomática do seu antecessor, tendo nomeadamente conseguido por bula de Alexandre VI, de Outubro de 1501, a faculdade de incorporar as rendas dos pequenos hospitais de cada terra numa único hospital. O mesmo papa concedera-lhe semelhante autorização (Breve,  de 23 de Agosto de 1499) para proceder à concentração dos hospitais de Coimbra, Évora e Santarém (Basto, 1934. 168).

Voltando ao citado Regimento, deverá dizer-se que ele não é inteiramente original, tendo sido inspirado, pelo menos, parcialmente, nos estatutos dos hospitais italianos (Santa Maria Nova, de Florença, e Santa Maria, de Siena).

Outros documentos notáveis dessa época chegariam, de resto, até aos nossos dias, como por exemplo o Compromisso do Hospital Termal das Caldas da Rainha (1512), considerado o mais antigo estabelecimento do género em todo o mundo. Num caso e noutro, dois homens da Igreja terão participado na sua elaboração: o cónego Estêvão Martins e o Cardeal Alpedrinha, respetivamente. O cónego será, de resto, o primeiro provedor do HRTS, por nomeação régia (Correia, 1984. 10-11).





Maqueta do Hospital Real de Todos os Santos. Maqueta dos anos 50. Fonte: Museu de Lsboa,com a devida vénia. Fotograma de vídeo. Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa

Deve-se a Irisalva Moita (Benguela, 1924-Lisboa, 2009), arqueóloga,  olissipógrafa, criadora do Museu da Cidade de Lisboa, no Palácio Pimenta,a primeira intervenção arqueológica de uma vasta área das ruínas do HRST, aquando da construção do metro, em 1960/61. Quatro décadas depois, em 1999/2001, na sequência de um projeto de reabilitação e requalificação urbana da Praça da Figueira, foi feita uma intervenção de fundo, uma das maiores (e exemplares) levadas a cabo em Lisboa.


2. "Couza tam grande, 
e de tão grande maneo"


Passava-se, entretanto (e isso é que é um facto assinalável para a época) dos estabelecimentos de meia dúzia de camas no máximo, e sem qualquer estrutura organizativa (simples hospícios, portanto), para os grandes hospitais de 100 e mais camas, de arquitectura monumental (o esprital solemne), com uma diferenciação hierárquica e funcional já perfeitamente definida, com um órgão de gestão que era nomeado pela (e responsável perante a) tutela régia, distinto da direção técnica, e dotado, além disso, de mecanismos de controlo patrimonial, contabilístico e financeiro.

Segundo o Capítulo III do Regimento do HRTS,  a área de influência do estabelecimento cobria:

  •  a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", 
  • além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".


Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo ter
ror da peste.

Ainda de acordo com as indicações do próprio regimento bem como de diversos documentos literários e iconográficos do período que vai da sua construção ao terramoto de 1755, o HRTS era uma das mais importantes obras do equipamento urbano da cidade; tinha dois pisos, situando-se a sua área coberta no que é hoje a Praça da Figueira (vd. iamgem da maqueta acima :

  • a frontaria estava voltada para o Rossio e deveria medir cerca de 100 metros;
  • o corpo do edifício estendia-se para norte, com uma arcaria contrafortada que encostava ao Convento de S. Domingos;
  • a meio, sobrelevada e com uma escadaria de acesso, erigia-se a igreja, de fachada manuelina, com uma imponente escadaria de 21 degraus;
  • a planta do edifício era em cruz, com a torre da igreja ao centro;
  • no piso superior, três grandes enfermarias (a de S. Vicente, a de Santa Clara e a de S. Cosme) constituíam os braços da cruz, dispostas em volta do altar-mor;
  • esta estrutura cruciforme permitia aos doentes internados acompanhar diariamente os ofícios religiosos (e nomeadamente as duas missas, uma das quais celebrada por alma do fundador);
  • no piso térreo, situavam-se os alojamentos do pessoal residente (cerca de meia centena de funcionários, incluindo o provedor);
  • no piso inferior, ficaria ainda muito provavelmente a albergaria (ou casa dos pedintes andantes, com cerca de quarenta camas para ambos o sexos) e os demais anexos do hospital, incluindo a casa dos expostos, o refeitório, a botica, a casa da fazenda (ou secretaria), a cozinha e o forno;
  • no seu vasto logradouro, encontravam-se as demais instalações e equipamentos necessários ao funcionamento do hospital: os lavadouros, as latrinas, as atafonas (ou moinhos), o pombal, a capoeira, a arrecadação da lenha e a horta;
  • o hospital tinha ainda claustros com poços de água potável e cemitério privativo.

À semelhança do hospital árabe e bizantino, os doentes eram repartidos por secções em função da sexo e até da patologia: das três grandes enfermarias, uma era destinada a mulheres e as outras duas a homens, sendo uma de medicina e a outra de cirurgia.

O regulamento faz ainda referência à casa das boubas, uma casa apartada onde eram tratados os doentes com morbo gálico (isto é, gaulês ou francês), designação que englobava então todas as doenças sexualmente transmissíveis (e nomeadamente, a sífilis) mas possivelmente também outras do foro dermatológico.

Estas unidades de enfermagem para internamento de doentes do morbo gálico seriam das mais antigas que se conhece, o que é tanto mais interessante quanto, na época, "o mal de boubas era tido como doença vergonhosa e inconfessável, e os seus portadores reputados merecedores do castigo de Deus e não da piedade dos homens" (Basto, 1936. 343).

Segundo diversas fontes dos séculos XVI e seguintes, compulsadas e citadas por Lemos (1991), o número de efetivos do pessoal do HRTS foi aumentando, tal como o número de doentes a que ele recorriam, a começar pelos doentes portadores de sífilis (morbo gálico). Assim, ao tempo do andaluz Ruy Diaz d'Ysla, e ainda no reinado de D. Manuel I, havia já dois físicos e dois cirurgiões além de um "mestre que curava o morbo serpentino" e que era o próprio Ruy Diaz (cit. por Lemos, 1991, Vol. I. 133).

Haveria ainda uma casa de doidos (segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504), além de um banco de urgência e de instalações privativas para pessoas nobres

Competia ainda ao hospital receber todas as crianças abandonadas da cidade (expostos), que depois eram entregues, até aos três anos, ao cuidado de amas externas. No reinado de D. João III o número anual de expostos já andaria pela centena e meia.

Entre doentes, crianças, peregrinos e mendigos, calcula-se que o hospital teria inicialmente capacidade para alojar mais de 250 pessoas (incluindo o pessoal residente, em número superior a meia centena) . Fala-se mesmo em 400 camas. O movimento anual de doentes rondaria então entre os 2500 e os 3000, sendo já porém insuficiente a sua capacidade hoteleira nos finais do Séc. XVI (Correia, 1984; Neto, 1981). À época do terramoto, o hospitak chegaria a fornece mil refeições diárias.

Apesar dos sucessivos incêndios que o destruíram total ou parcialmente (em 1601, 1750 e 1755), o HRTS foi-se alargando em termos de instalações e equipamentos, sendo referenciada, por volta de meados do Séc. XVIII, a existência de doze enfermarias, cada uma das quais com o nome do seu santo patrono, além da "casa das feridas e convalescentes, casa da anatomia, enfermaria de mulheres feridas e doidas, casa de doidos, casa dos mortos, casa dos banhos ou das tinas" bem como das casas dos cirurgiões do banco (Correia, 1948. 12). Pelo número de enfermarias existentes, calcula-se que, por volta de 1750, o hospital tivesse já mais de meio milhar de camas. Será completamente desativado em 1775, vinte anos depois do terramoto.

Embora no regimento original não se faça nenhuma referência a qualquer sala de operações, bloco operatório ou equivalente, sabe-se que o HRTS foi a primeira 'grande' escola de anatomia e cirurgia da qual se destacaria, entre outros, o nome de Manuel Constâncio (1725-1817).

A administração deste hospital foi da responsabilidade régia até 1530 (ou até 1557, segundo outras fontes). Os provedores eram recrutados entre gente da casa real ou da confiança, pessoal e política, do rei. De 1530 (ou apenas de 1557) a 1564 a sua gestão esteve entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista (ou Lóios), para, finalmente, por carta régia de 1564, passar para as mãos da Misericórdia de Lisboa.

Durante dois séculos, até destruição do HRTS pelo terceiro (e último incêndio, na sequência do terramoto de 1755), a figura do provedor passa a ser designada por enfermeiro-mor (provavelmente uma corruptela do termo irmão-maior). Essa designação chegará até 1974.

No Quadro 1, em anexo, faz-se uma tentativa de reconstituição do seu hipotético quadro do pessoal inicial, de acordo com as disposições do Capº I do regimento ("Titolo de quantos oficiaes ha no esptall e seus mantymentos que ham daver") (Graça, 1994).

"A superioridade e cura das couzas da Igreja" são explicitamente apresentadas pelo outorgante como razões primordiais, pelo menos, no plano político e ideológico,  para dar toda a ênfase, logo no Capº II, ao serviço religioso, cometido a dois capelães residentes e seus "dous moços" (Regimento do HRTS, 1984).

Não se estranhará, por isso, que logo à cabeça do regulamento sejam minuciosamente discriminadas as funções de capelania, a primeira das quais é a de "menistrar a todos os pobres enfermos sãos, e doentes, (...) todos os sacramentos (...) e todas e quaesquer outras couzas necessárias à saúde das almas" (p. 25).

Cuidar das almas e, acessoriamente, cuidar dos corpos dos doentes pobres, é (e continuará) a ser a missão do hospital quinhentista. Aliás, no Capº III (Título do proveador, do esprital, e o regimento e maneira em q hade servir o dito seu officio), é claramente patente a motivação intrinsecamente religiosa (e, naturalmente, política) do poder régio ao fundar o hospital e criar a figura do percursor do hodierno director e/ou  presidente do conselho de administração dos nossos hospitais.

A fundação deste hospital é, sobretudo, uma pia causa. No intróito do regimento, o seu fundador, como príncipe cristão, é descrito como tendo sido "movido com boa intenção, por q os Pobres, e pessoas Miseraveis tivessem algum mais certo Recolhimento, e Remedio de suas necessidades em esta cidade do q nella para elles até então havia".

Daí o pedido de autorização ao papa (quando D. João ainda era príncipe) para que na cidade de Lisboa, "a Principal destes Regnos, e de grande Povo", fosse edificado um "Esprital solemne" que, além do mais, agregaria o património dos pequenos estabelecimentos existentes (cerca de quatro dezenas de hospitais, grande parte deles ligados às confrarias de ofícios e cada um com o seu santo padroeiro). E daí, também, a feliz e sábia designação que foi encontrada, a contento de todos: Hospital Real de Todos os Santos.

Nessa época, Lisboa passa dos 60 mil habitantes (em 1422) para os 85 mil em (1528), atingindo os 100 mil em 1551, dos quais 7 mil seriam estrangeiros residentes ou de passagem (Ferreira, 1981. 464).

Dando resposta às crescentes necessidades de saúde da população, o HRTS conheceu um crescimento exponencial ao longo dos seus 270 anos de existência, não obstante os vários grandes incêndios (que foram seguidos de reconstruções e ampliações): o número de enfermarias / serviços passou de 5 (em 1505), 9 (c. 1550), 19 (c. 1620), 22 (1715), 21 (1755-1758) e 22 (1759-1775) (Pacheco, 2008). 

Aquando do grande incêndio de 1750, no HRTS estariam internados 723 doentes, muito mais do que a capacidade instalada. Vinte e tal anos depois, em outubro de  1774, alguns meses antes da transferència de doentes e serviços para o "novo" Hospital Real de São José, o número de doentes internados em 17 enfermarias seria de  843  (um média de c. de 50 doentes por enfermaria, o que nos parece excessivo) (Alberto et al, 2021).


3. O movimento de concentração hospitalar


Um outro grande hospital da época era o hospital termal das Caldas da Rainha, como já atrás referimos, construído por iniciativa e a expensas da Rainha D. Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel I, com início das obras em 1485 e conclusão por volta de 1497. 

Tinha cerca de 120 camas (80 para doentes de ambos os sexos; 20 para o pessoal religioso e pessoas honradas; e mais 20 para peregrinos e pessoal de apoio), além de médico privativo, consulta médica obrigatório, farmácia (botica) e estatuto próprio (Correia, 1981).

De entre os oficiais que deviam reger e governar o novo estabelecimento assistencial, doado pela rainha D. Leonor, destaque-se a figura do almoxarife. Notável é, de facto,  o painel de 13 por 12 azulejos (incompleto, pintado a azul e branco, e datado de 1667-68), que ainda hoje pode ser observado na copa do edifício, e que constitui um exemplar único no nosso país e um documento interessante para a historiografia e museologia hospitalares: "a tábua do almoxarife";

Trata-se de um curioso algoritmo então usado para calcular a quantidade de carne a fornecer aos enfermos, conforme o seu número: "Taboa do (ca)rneiro q se da aos enf(erm)os ao iantar tres quartas a ca hum de resam".

Entretanto, o movimento de concentração dos pequenos hospitais e estabelecimentos similares estende-se a outras cidades e vilas (Évora, Santarém, Estremoz, Beja, Braga, etc.) nas primeiras décadas do Séc. XVI, e inclusive aos territórios de além-mar. O Hospital Real de Goa, por exemplo, irá desempenhar um importante papel na assistência aos milhares de portugueses, soldados, aventureiros, mercadores, missionários e funcionários régios, que aportam à Índia e demais terras do Oriente.

A sua fundação deve-se à iniciativa de Afonso de Albuquerque em 1510, depois da conquista de Malaca (Ferreira, 1990. 121). Em 1520, o seu secretário, António da Fonseca Ormuz, publica o regimento do hospital. A designação de Hospital Real de Goa (ou d’El-Rey) só aparecerá, contudo, mais tarde, em 1542, ano em que passa a ser administrado pela Misericórdia que, além disso, mantinha em Goa, o Hospital dos Pobres.

Em 1565, o orçamento deste hospital era de 1300$000 réis. A sua administração terá sido disputada pela Misericórdia e pela Companhia de Jesus, a avaliar por dois documentos de 1584 e 1591, citados por Ferreira (1990.122). De qualquer modo, nos finais do Séc. XVI, as dificuldades que enfrentava eram muitos, sendo nomeadamente manifesta a sua incapacidade para dar resposta ao número crescente de doentes e a sua insuficiência de meios financeiros. 

Nessa época o vencimento anual do físico era de 57$600 réis, o do cirurgião 43$200 e o da cristaleira 12$000, traduzindo uma clara diferenciação socioprofissional dos praticantes da arte médica.


Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

CategoriaUnidadeTotalRemune-ração em géneroPerfil
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  
Pessoal médico e paramédico     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor   (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro- sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário


(Continua)

© Luís Graça (1994). Última revisão: 10/8/2024

Observ.: Importante,  para a revisão que estou a fazer,  o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia.
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Nota do editor:

Último posto da série > 14 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro