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sábado, 26 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26081: As nossas geografias emocionais (27): Berlim, 2023: junto aos restos do muro mais tristemente famoso do mundo: "Mein Gott, hilf mir diese tödliche Liebe zu überleben" / “Meu Deus, ajuda-me a sobreviver a este amor fatal" (António Graça de Abreu)







Alemanha > Berlim > Agosto de 2023

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2023). Todos os direitos reservados [Edição e lendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu ( ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), ainda no rescaldo de mais um cruzeiro que efetuou, com a esposa, em agosto de 2023, desta vez à Gronelândia e à Islândia (*):

Data -  25 out 2024, 19:15

Assunto - Berlim 2023- .. Dá para publicar ?


Berlim, 2023, Alemanha

por António Graça de Abreu


"Para lá das portas de Brandenburgo e da Praça de Potsdam, reina a fria inteligência marxista, onde os soldados soviéticos, alguns deles sobraçando espingardas-metralhadoras, parecem sentinelas de um angustiante rigor, tolhendo toda a alegria de viver."  (Urbano Tavares Rodrigues, em 1954)


Regresso a Berlim no Verão de 2023, cinquenta e quatro anos depois, agora em avião da TAP e aterragem em Brandenburg, um dos aeroportos da cidade.

Caudais imensos de água límpida e poluída correram entretanto sob as pontes do rio Spree, que atravessa Berlim. E eu cresci, em conhecimento, em aspecto, hoje muito mais largo e gasto do que o rapazinho de há cinco décadas atrás. Levo comigo o gosto de regressar a uma cidade que marcou os meus anos de juventude, que me fez definitivamente descrer no modelo soviético de governo das gentes do mundo.

Para esta viagem de 2023, procurei na net um hotel situado na antiga parte oriental de Berlim, a mais rica em monumentos e História, e acho que acertei. Fico no Arcotel John F. Kennedy, logo ao lado da chamada ilha dos museus. Um quatro estrelas, noventa euros por noite, um pequeno almoço digno de marqueses, viscondes e barões pequeninos. Na mesma rua situa-se o vasto edifício do actual Ministério dos Negócios Estrangeiros, já aqui instalado nos tempos da Alemanha comunista.

Tenho cinco dias para conhecer, reconhecer Berlim, sem muros, nem arame farpado. Há muitos quilómetros para fazer a pé, de metro, compro um passe de dois dias para os autocarros vermelhos Hop on Hop off que dão uma volta à cidade em duas horas, passando pelos mais importantes lugares turísticos. Sobe-se, desce-se do autocarro, somos levados para quase tudo quanto é sítio.

Caminho algo perdido pela malha da cidade, em busca do norte/sul/leste e oeste, procurando o recortado traçado do velho Muro como referência. No mapa, no telemóvel, quanta sinuosidade, quantos espaços terraplanados, quanta reconstrução, quantas paredes tapadas, quanto rasgar doloroso na memória do coração de Berlim...

Hoje, o que é que resta do Muro, como recordar a humilhação de todo um povo? Em Charlie Point, tiro uma fotografia da fronteira entre as duas Berlins. Por aqui passei, engolindo sapos e petróleo, de carro, atravessando para o lado dos camaradas comunistas, em 1969. 

Agora, 2023 o posto militar ainda de pé, atravancando a Friedrichstrasse, mas funcionando para definir o avançar da avenida ladeada, entre outros, por um museu do Muro, um MacDonald e um Kentucky Fried Chicken. Não longe, há um pedaço do Muro honestamente conservado. E um extenso passeio com reconstituições rigorosas, com fotografias e texto, do que foram esses tempos sofridos de divisão da cidade.

Numa outra parte de Berlim, junto ao rio Spree, na Mühlenstrasse mantém-se de pé um pedaço do Muro com quase um quilómetro de extensão. Transformaram-no num original museu a céu aberto, com as secções do Muro decoradas com dezenas e dezenas de largas pinturas alusivas à liberdade, e outros temas da autoria dos mais diversos pintores. 

Sobressai uma cópia em grande de uma famosa fotografia de Leónidas Brejnev, o líder russo, beijando gloriosamente na boca o líder alemão comunista, Erich Honecker. A foto verdadeira foi tirada aqui em Berlim em 1979. Por baixo do rosto dos dois senhores está escrito em russo e em alemão Mein Gott, hilf mir diese tödliche Liebe zu überleben, o que significa “Meu Deus, ajuda-me a sobreviver a este amor fatal.”

Os museus da cidade, o Altes e o Neues Museun, o Bode, o Pergamon, a Nationalgalerie. Neste último espaço, numa sala enfeitada de magia, tiro uma fotografia entre dois retratos de mulher, à minha direita uma dama linda de rosto alongado pintada por El Greco (1541-1614), à minha esquerda, uma espaventosa senhora saída da imaginação de Pablo Picasso (1881-1973). A perfeição do traço, a serenidade do olhar, a esfusiante loucura. Que maravilha!

Toda esta zona da cidade foi intensamente bombardeada durante a II Guerra Mundial, houve grandes destruições, mas os nazis tinham já cuidado de guardar, em precária segurança, muitos dos fundos culturais mais valiosos. 

Os russos, os primeiros a chegar à Alemanha derrotada em 1945, levaram para Moscovo e São Petersburgo muitas das peças dos museus alemães. Estão ainda hoje, no Museu Pushkin e no Ermitage. A Alemanha reivindica o seu regresso, e há negociações para que tal aconteça.

Passear-me em absoluto prazer pela Avenida Unter der Linden, a Ópera com o Daniel Barenboim como o maestro, adiante o Reichstag, o parlamento da terra germânica. Logo depois, as Portas de Brandenburgo, ao fundo, silenciosamente abertas para a liberdade do mundo.

(Revisão / fixação de texto, bold, itálicos, título: LG)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

Sem título. Ilustração: Luís Graça (1999)


Contos com mural ao fundo:  O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

por Luís Graça (*)


Partiram de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Tu e a Manuela, em 1997. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar contigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguiram fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não se viam há bastante tempo. E iam estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa de aniversário do seu pai e aproveitara para rever o irmão mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. A Manuela já te falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 tu tinhas andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Foste de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. 

Alguns desses sítios “tocaram-te” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, a vermelho, com os nomes das localidades,  então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos" (sic).  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O teu amigo V... (que infelizmente  já morreu há uns anos) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os demais antifranquistas radicais, a FRAP, o GRAPO...  E fez  questão de fotografar todos os restos de murais que ia encontrando pelo “país basco” com referência aos fuzilamentos de 27 de setembro de  1975 (de 3 membros da FRAP e dois da ETA político-militar).

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância, perder-se no  "labirinto da saudade" de que fala o Eduardo Lourenço... Como tu e o teu amigo V..., mais as respetivas caras-metade, que numa noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro desse ano de 1981, chegaram a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika… Justamente quando estavam a montar a tenda, começaram a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em  "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena", na voz de Zeca Afonso...

− Há emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis,  e que nos marcam para sempre... – escreverás tu, mais tarde.

Tu, pessoalmente,  que toleravas a Amália, passarás a ouvi-la com outro respeito e  emoção, desde que ela morreu, em 1999...  Para o V..., em contrapartida , a Amália em vida não passava de uma "reaça". E o fado uma "desgraça", um dos três FFF que “o regime” (referia-se ao Estado Novo) “explorava até à exaustão para a adormecer o povo”...

Morrera na Flandres, na I Grande Guerra, o avô materno da Manuela. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa – comentaste tu.

O avô Ortiz era origem basca e francesa, pelo lado da  mãe. Dois dos seus três filhos acabaram por vir parar a Portugal como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola…

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a tua interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 20 e poucos anos…

 Era  uma história comprida, dramaticamente cumprida, a da família Ortiz.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

Uma tia, mais velha que a mãe da Manuela, morrera no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961.  Barbaramente assassinada, à catanada.   Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que a última vez que vira essa tia fora quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”.

Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui. O tio Ortiz  y Ortiz (conhecido só por Ortiz), o mais velho dos filhos do avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos.

E depois confidenciou-te:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, e vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo,  com a ida ao Porto.

A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de algum modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareceste tu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História.

A Manuela pegou nesta tua observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das guerras da história de Portugal. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. O ‘terrorismo’, como dizia o meu pai. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, sim, teriam a oportunidade, única, de conhecer uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensaste tu... Em Angola, Guiné ou Moçambique..

− Não se esqueça – recordou-te ela – que eu ainda apanhei a ‘escolinha’ do Estado Novo e a mocidade portuguesa feminina.

E que lembranças tinha a Manuela desse avô Ortiz?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa,  seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os três filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos,  o que lhes terá acontecido depois?

Delicadamente, mas algo a  contragosto,  a Manuela procurou  satisfazer a tua curiosidade  intrusiva,  sobre os acontecimentos subsequentes que levaram à dispersão da família. Ela, Manuela,  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos,  tendo ficado órfãos, pôs-se  a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria então 12 ou 13 anos. A viúva, essa, já estava internada num hospício.

Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra. As duas famílias ainda eram aparentadas, com um bisavô em comum. Daí tratarem-se por primos…

E aproveitou para te dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não te convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos, o meu tio e a minha tia,  só falavam o francês e depois o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz  que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do ‘Front Populaire’, a Frente Popular .  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de ‘chef de cuisine’.

Sobrevoavam já a França, quando ela te começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe.

Cozinheiro de profissão,  “partisan”, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz terá sido preso,  em 1941 ou 1942,   a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur,  pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. O facto de ter sido capturado com uma arma em casa, contribuiu para agravar a sua situação.

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, os judeus e outros…

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  desse campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme…

Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

A Manuela infelizmente ainda não sabia. Quando quis voltar a falar com a mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dos dois seus  irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto.  

−E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado da família. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas...

A mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas a família procurou poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou “sepultada na terra onde, apesar de tudo,  fora muito feliz”, o Porto.

Sobre a avó materna, a Manuela sabia ainda menos. Pouco ou nada lhe contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família. A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa  enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido na Flandres.

– Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na morte do marido. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca… A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

Explicou-te por que é que nunca falou basco. Nem ela nem a mãe. Só o avô materno é que era basco. Em Bilbau, onde vivia e trabalhava em 1997, a Manuela ainda começara  a aprender o “euskara”…

– Já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialetos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os 'defeitos de fabrico'.. Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais 'violentos' ou 'truculentos' que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer  insinuar...

– A ‘violência revolucionária’ da ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a ETA ou qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão 'terrorismo'...

– Como o meu pai… Mas eu não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem o basco, o ‘euskara’  e transmiti-lo aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados em Espanha, tal como outras minorias, os judeus, os catalães, os galegos...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos, na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, física e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem…

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar mais tarde, em Portugal,  em 1937. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto (que prosperou). Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos ‘avós’,  adotivos. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a 'baserri', que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu ‘primo’, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da família, depois da França e da Espanha.

− Neste caso, da minha tia (que foi para freira), e da minha mãe… que conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus ‘avós’,  adotivos… Na Praia da Granja, que era frequentada por uma certa elite, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado "comerciante de vinhos e espirituosas", grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro, e negócios prósperos em África (nomeadamente em Angola).

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha “uma ascendência cristã-nova”, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821. E estiveram no cerco do Porto, ao lado de Dom Pedro IV.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo, depois de ter sido um próspero esclavagista.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade judaica do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante” (sic). Tinha boas relações com o poder, ou pelo menos com o poder económico,  a burguesia financeira, industrial e comercial do Norte.  Foi o retrato que te fez a sua filha, já depois de terem chegado a Berlim.

Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes?

Tu já a conhecias de Lisboa, das “lides profissionais”. Desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia,  em 1986. Ainda não havia a União Europeia nem o euro.  

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (o ministério do trabalho, que tutelava a área, a inspeção do trabalho, as grandes empresas, os médicos do trabalho, os técnicos de higiene e segurança, a Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Deves ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sabias que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficaram em contacto. Reencontravam-se agora, em 1997, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuavam a tratar-se por você. Sentias que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estavam  os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Tu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho.

Por sorte, estavam alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que os levava ao centro de conferências onde se realizava o encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E, depois, ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para ti,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos os europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), ambos se davam  conta, em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na “nossa velha e adorada Europa”. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselini, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas. Depois do jantar, ficavam à conversa sempre que não havia “programa social”.  Já tinham feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais alguns portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe dali.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional como tradutora-intérprete: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-te ela, a ti, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que tu retomaste a  já longa conversa sobre o tio Ortiz y Ortiz (ou só Ortiz), interrompida, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, tu terias a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabias ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazias críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspiravas-lhe confiança. E nada como o bar de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhaste tu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

Da sua vida privada, nunca te falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-te que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refratário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família, que sofrera um abalo com o 25 de Abril e depois com a descolonização.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano letivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, além do inglês,  falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”).

Nunca soubeste se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez te perguntou pela tua família. Era uma mulher atraente, mas de forte personalidade, “muita senhora do seu nariz”.

Só uns dois ou três anos mais tarde, já no virar do século, é que a Manuela te contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando se voltaram a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que tu conheceras em 1981, quando a visitaras pela primeira vez.

 Afinal,  não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara, que o tio Ortiz morrera:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, construído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. 

Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. (Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar.)

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro. Mas a “cuisine française” (tal como os vinhos, o "cognac" e o "champagne") não deixava de ter  prestígio aos olhos dos nazis…

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? – perguntaste tu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau. 

− O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes... 

É o testemunho posterior de um dos sobreviventes, disse-te a Manuela.

− A imaginação, a capacidade de resistência e a abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, também somos capazes de  transcender a nossa condição animal e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói, do semi-deus, do herói grego como o Ulisses...

E concluíste o teu pensamento:

  Manuela, o seu tio Ortiz foi um herói. Um herói trágico.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo, que adorava os seus cozinhados. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento. Escolheu o pelotão de fuzilamento, honrando a sua condição de “maquisard”, de antigo combatente no “maquis”…

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua lucidez, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante os seus carrascos: ‘Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive... la France!’ [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, um pouco emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias,  Manuela, que ainda deve estar  viva,  é um nome fictício. LG]

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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22935: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXV: Berlim, Alemanha, 1969








Imagens, que julgamos do domínio público, referentes a Berlim, antes da "queda do muro" (que só aconteceria, vinte anos depois, em 9 de novembro de 1989)



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo", da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. (*)

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp);  é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já mais de 300 referências no blogue.

Texto e fotos recebidos em 26/11/2021. Sendo uma viagem realizada em 1969, pode parecer um "anacronismo" publicar este texto nesta série, que é pós-Guiné, o mesmo é dizer, pós-25 de abril de 1974...Mas já aqui publicámos um outro texto do autor, ainda mais "anacrónico", sobre Hamburgo, datado de  1967. Não era fácil, todavia,  para um português, viajar nesse tempo pelos países da então "cortina de ferro", a Europa de Leste... Dada esta explicação sobre o contexto, aqui vai o texto do nosso camarada António Graça de Abreu, que desde cedo, se tornou  o "globetrotter" que conhecemos, o viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros... As fotos não devem ser dele, sendo mais provavelmente oriundas da Net, sem referência à fonte. São imagens que, todavia,  nunca mais gostaríamos de ver na nossa Europa. Vd. também os quatro postes que o nosso editor Luís Graça publicou em 2015, na sequência de uma estadia em Berlim, em março desse ano (***)


Berlin, Alemanha, 1969

por António Graça de Abreu


Ano de 1969. Venho desde Hamburgo (**), no Ford Escort na longa viagem desde Lisboa, atravessando agora tristes fronteiras de uma mesma pátria alemã, percorrendo autoestradas antigas construídas no tempo do Hitler, caminhos então modernos que tanto facilitaram a mobilidade da poderosa máquina de guerra nazi.

Antes da chegada a Berlin, ao entrar na Alemanha de Leste, a polícia e soldados da DDR (Deutsche Demokratische Republik) vasculham tudo, levantam os bancos do carro, metem-se por baixo do veículo, inspecionam, verificam, fazem perguntas após perguntas em sucessivos controles dos passaportes e dos papéis do seguro.

Chego a Berlin Ocidental, em tempos gelados de Guerra Fria. Numa transversal da Kurfürstendamm, a principal avenida da cidade, encontramos alojamento não muito caro num hotelzinho alojado num velho prédio impiedosamente bombardeado durante a 2ª. Guerra Mundial, mas restaurado, reconstruído a preceito, com cicatrizes a disfarçar meio escondidas em quase todos os patamares, esconsos e paredes. Camas confortáveis, um pequeno almoço substancial e saudável, o descanso possível após umas tantas emoções fortes.

Berlin Ocidental, cidade sitiada pela República Democrática Alemã, tem sobrevivido com dificuldade às asfixiantes tragédias da História. Por aqui respira-se alguma liberdade, o engenho e a capacidade de cada um a fazer-se, a exercitar-se na construção de milhões de quotidianos diferentes, melhores.

No terceiro dia na cidade, ida a Berlin Oriental. Tento e consigo entrar com o meu Escort pelo Checkpoint Charlie. Outra vez infindáveis controles, verificação de documentos, suspeitas de sermos uns perigosos espiões a soldo não sei bem de quem. O que vêm cá fazer? Turistas? Sim, meine Mutter, meine Schwester, eine Freundin und ich, (a minha mãe, a minha irmã, uma amiga e eu). O que querem ver? Trazem carro e tudo, porquê a viagem à Alemanha Democrática? Respondo, preencho mais papelada, lá me vou desenrascando no meu alemão, os dois anos de liceu mais um ano de estudo e trabalho em Hamburgo fazem de mim um falante nada vesgo no que à deutsche Sprache, a língua alemã diz respeito, o que também levanta suspeitas aos polícias da DDR.

Em Berlin Oriental, a cidade tem pouco trânsito automóvel, a sensação de uma grande silêncio, não a azáfama e correrias do capitalismo do outro lado do muro. Andamos uns quilómetros por dentro de Berlin Oriental, falta cor e alegria à cidade. Paramos, passeamos num jardim. Não falamos com ninguém, ninguém fala connosco. As pessoas movem-se, vão à luta à sua maneira, trabalham, mas parecem viver numa paz, numa tranquilidade instaurada por decreto.

Há ainda dezenas, centenas de edifícios por reconstruir, bombardeados pelos aviões aliados em 1945, ou esventrados nos combates de rua quando os soldados russos, e logo depois os aliados, entraram e ocuparam Berlin. O grande edifício do Reichstag (uma espécie de Parlamento), ainda em reparações, é uma assustadora sombra do passado.

Guio o carro pela avenida Unter den Linden. Ao fundo, a porta de Brandenburgo, ex-libris da capital alemã, fica neste lado oriental. Logo depois, diante da Berlin Ocidental começa mais uma vez o muro e as barreiras de arame farpado. Mandam-me voltar para trás, a estranha sensação de conduzir um automóvel numa cidade cortada ao meio pelos homens, com obstáculos, polícia e soldados vigilantes por todo o lado.

Muros, guaritas levantadas, metralhadoras prontas a disparar, as barreiras de arame farpado a dividir as duas Berlins, uma sensação de desconforto e mal estar.

Regresso a Berlim Ocidental. Na avenida Kurfürstendamm entro na Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche, ou seja, a igreja construída em 1890 em memória do Kaizer Guilherme I, brutalmente bombardeada pelos aliados num raid aéreo em 1943. Lá dentro, no que resta da nave central retalhada pela guerra, um órgão toca Johann Sebastian Bach. A música faz estremecer as paredes do templo, levanta um hino à Alemanha, enobrece o coração dos homens.

António Graça de Abreu

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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 31 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22418: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Hamburgo, Alemanha Federal, 1967

(***) Vd. postes de

31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte I) (Luís Graça) 

domingo, 11 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18404: Blogpoesia (558): "Como desconhecido...", "Fome de paz...", e "A gente quastiona-se...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Como desconhecido…

A idade não perdoa.
O tempo transforma os corpos e os rostos da gente.
Me sinto mascarado.
Entro na minha terra como um desconhecido.
Só meu nome perdura ainda na memória dos mais velhos.
Minha aldeia está transformada.
Nada igual.
Tanta casa nova onde nenhuma havia.
Mais largos os velhos caminhos.
Todos virados para os automóveis.
Não sobra nada para os pedestres.
Só a velha ermida branca e o cruzeirinho em pedra ali estão.
Eu os olho e eles a mim.
- Olá, Quim Luís - parece ouvi-los.
Por onde tens andado?
Lhes respondo só em pensamento.
- Como estás mudado!
Eras um garoto a sério, sempre na brincadeira.
Já poucos restam da tua idade.
Vai aparecendo sempre. Fazes falta aos da velha guarda. Quando, para vós, éramos o centro de tudo…

Berlim, 4 de Fevereiro de 2018
19h34m
Jlmg

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Fome de paz…

Minha alma caminha célere para o infinito.
Sente fome de paz.
Deambula no mundo, feita migrante.
Desde o começo.
Uma chama viva a seduz.
Ora acesa ora escondida.
Farol ao longe que a conduz.
Uma voz a chama. Como sereia.
Caravela branca, alucinada.
No mar da vida. Tão agitado.
Fitando ao alto.
Estrela polar.
Transpõe desertos.
Verdes oásis.
Nuvens de sonhos.
São só quimeras.
Não perdeu a esperança.
Vai alcançar…

Berlim, 7 de Março de 2018
7h20m
Jlmg

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A gente questiona-se...

Nascemos apardalados.
Mas que vem a ser isto onde estamos mergulhados?
Onde é que eu vim parar!?
Donde se vem e para onde se vai?
O real é estático e é dinâmico?
O que é o movimento?
Real ou ilusório?
Propagação dos seres.
Tudo morre e desaparece?
Que acontece?
De que se compõem?
Hoje, acordei mergulhado nestas questões.
Tudo me parecia claro.
Vi o yin e o yan.
Claramente.
Compreendi o Buda.
Tudo em movimento tende para a quietude.
Do começo ao fim.
O verdadeiro estado é o ondulatório.
Como um farol.
Acende e apaga.
Permanece no mesmo lugar.

Bar dos Motocas, Berlim, 8 de Março de 2018
15h35m
Tarde linda de sol. 10 graus!...
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18390: Blogpoesia (557): No Dia Internacional da Mulher - "Mulher", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor do BCAÇ 3872

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14587: Efemérides (186): 8 de maio de 1945: o fim da II Guerra Mundial na Europa, com a capitulação da Alemanha nazi... O mundo não voltaria mais a ser o mesmo...


Brlim > 3 de junho de 1945 > O Reichstag em ru+inaa, um mês depois da rendição dos alemães (a 2 de maio, em Berlim, e a 8 de maio, em todos os teatros de operações). Imagem do Imperial War Museum, Londres. Domínio público. Cortesia de Wiki Commons.


Berlim > 21 de março de 2015 > O histórico edifício do Reichtag, hoje sede do parlamento federal alemão (Bundestag) (desde 1999). O edifício foi profundamente remodelado sob a direção do arquiteto inglês Sir Norman Foster.



Berlim > 21 de março de 2015 > Ediífício do Reichtag, hoje sede do parlamento federal alemão (Bundestag) (desde 1999) > A famosa cúpula de vidro e aço desenhada pelo arquiteto inglês Sir Norman Foster. A original (de 1894) foi destruída pelo incêndio de 1933 e pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial...


Berlim > 21 de março de 2015 > Edifício do Reichtag, hoje sede do parlamento federal alemão (Bundestag) (desde 1999) > Aspeto do interior da famosa cúpula de vidro e aço, desenhada pelo arquiteto inglês Sir Norman Foster, e que é um os ex-libris da cidade, "fénix renascida" do triplo pesadelo que foi o regime nazi (1933-1945), a II Guerra Mundial e a divisão da Alemanha e da cidade de Berlim durante a ocupação e o período da guerra fria... Recorde-se que o muro de Berlim caiu em 1989 e a reunificação da Alemanha é do ano seguinte.


Berlim > 21 de março de 2015 > Edifício do Reichtag, hoje sede do parlamento federal alemão (Bundestag) (desde 1999) > Aspeto, já ao pôr do sol,  do interior da famosa cúpula de vidro e aço, desenhada pelo arquiteto inglês Sir Norman Foster



Berlim > 21 de março de 2015 > Ediífício do Reichtag, hoje sede do parlamento federal alemão (Bundestag) (desde 1999) > Interior da cúpula > Exposição documental sobre a história do parlamento alemão (construído em 1894, e já um cúpula de vidro e aço. no tempo do Kaiser Guilherme I),  > Imagem das primeiras tropas soviéticas que ocuparam o edifício em 2 de maio de 1945.


Berlim > 21 de março de 2015 > A porta de Brandemburgo vista da cúpula do edífício do Reichtag.


Berlim > 22 de março de 2015 > Com a porta de Brandemburgo, um numeroso grupo de adolescentes nipónicos tira a sua "foto de família"... Recorde-se que a rendição incondicional  do Japão, na II Guerra Mundial,  só se vai verificar no dia 2 de setembro de 1945, três meses do colapso de Berlim...



Berlim > 22 de março de 2015 > As portas de Brandemburgo, Lê-se  na Infopédia, e reproduz-se aqui com a devida vénia:

"As Portas de Brandemburgo, construídas entre 1788 e 1791, são o que resta da entrada na cidade de Berlim pela Avenida Unter den Linden [, a famosa Avenida das Tílias]. A construção do monumento ficou a dever-se ao arquiteto Carl Gottard Langhans, na época em que era Diretor de Arquitetura em Berlim.Trata-se de um pórtico colunado com seis pares de colunas dóricas encimadas por entablamento como se apresentam os propileus gregos. A famosa Quadriga da Vitória, uma estátua com um coche de gala puxado por quatro cavalos, remata todo o conjunto.  É ainda ladeado por dois corpos laterais simétricos, porticados e sobrepujados com frontão triangular. A sobriedade monumental reflete a vontade que a Alemanha exprimia em ser uma continuadora da tradição arquitetónica da Grécia. A ordem dórica, embora exprimindo mais eficazmente a simplicidade e grandeza clássica, era ao mesmo tempo pouco flexível, razão pela qual não foi extensivamente usada durante o período neoclássico.

"O monumento reflete os ideais autocráticos pela sua monumentalidade, conseguida através do uso de elementos classicistas. Evocando os arcos de triunfo, apresenta uma maior frieza precisamente pelo uso da ordem dórica. A estrutura ficou bastante danificada durante a Segunda Guerra Mundial, tendo sido restaurada em 1957-58. Entre 1961 e 1989 o muro de Berlim vedava o acesso a esta entrada por alemães orientais e ocidentais. Em consequência da reunificação alemã, as portas foram reabertas em 1989."...



Berlim > 21 de março de 2015 > > Portas de Brandemburgo > A Quadriga, a escultura que reprsenta a deusa (romana) Vitória a conduzir o seu coche, é da autoria do alemão Johann Gottfried Schadow (1764-1850), tendo sido adicionada à porta em 1793/94. Em 1806, Napoleão, derrotados os prussianos em Jena, trouxe a quadriga como troféu para Paris. Derrotado Napoleão oito anos depois, a escultura é trazida  de volta. É então, que recebe a cruz de ferro (uma condecoração militar instituída pelo rei da Prússia,  Fredereco Guilherme III) com uma águia prussiana no topo. Concebida originalmente como uma "porta da paz", acabou sempre por estar associado aos valores do militarismo... Em 1933, a porta é atravessada pelo cortejo de archotes dos nazis, marcando simbolicamente o início do Reich dos mil anos...


Berlim > 22 de março de 2015 >Portas de Brandemburgo, A deusa Vitória conduzindo a Quadriga...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

1. Em todas as guerras e em todos os regimes, ninguém dispensa o poder da propaganda... Umas das fotos-ícone do séc. XX foi tirada justamente aqui, no Reichtag, em 2 de maio de 1945, pelo fotojornalista Yevgeny Khaldei (Donetsk, Ucrânia, 1917- Moscovo, Rússia, 1997)... 

Não reproduzimos aqui a foto por não estar inteiramente esclarecido se é do domínio público ou não. Mas continua, por enquanto, disponível na Wikipedia: um soldado soviético, em pose heróica, crava a bandeira vermelha, com a foice e o martelo, num dos cantos do telhado do Reichtag [, a antiga sede do parlamento da República de Weimar, proclamada em 9/11/1918], em Berlim. A capital do poderoso Reich dos mil anos tinha acabado de cair, sem honra nem glória, às mãos do exército de Staline. 

Soube-se, todavia, mais tarde que a foto sofreu sucessivos  "retoques artísticos"... por imperativos de propaganda. Uma das razões foi ditada pela necessidade de "limpar" a imagem do heróico soldado soviético... Afinal, o porta-bandeira de ocasião ostentava nos braços pelo menos dois  relógios, supostamente provenientes de um saque...

No dia 2 maio de 1945, de manhãzinha, Yevgeny Khaldei estava no edifício do Reichstag, que os soviéticos tomavam erradamente como um dos símbolos do nazismo. (O Parlamento da república de Weimar foi incendiado  em 1933, e esse cabo tenebroso acabou por dar pelnos poderes a Hitler)...

Três horas antes, o último comandante alemão que defendia a cida tinha capitulado, mas ainda havia combates esporádicos. Khaldei tinha sua câmera Leica com ele, além de uma bandeira soviética.

O fotógrafo militar, de 28 anos, tenente da marinha, de origem judia, encontrou um jovem camarada junto ao edifício do antigo parlamento, seriamente destruído pelas chamas e pelos bombardeamentos, persuadindo-o a subir ao telhado com a bandeira. Dois outros soldados do exército vermelho se juntaram a eles..

Khaldei tirou um rolo inteiro, ou seja, 36 fotografias. Uma delas tornou-se célebre, ao simbolizar a derrota da Alemanha nazi e a vitória do exército vermelho. Foi sabiamente usadas pela propaganda soviética, para quem o Reichtag tinha um valor simbólico... e não propriamente militar.

Vtima, ao que parece, do antissemitismo estalinista no pós-guerra, Khaldei caiu no esquecimento, e ele e a sua foto. Seria só em 1991, já depois da queda do muro de Berlim, e do desmoronamento da URSS, que um artista berlinense, Ernst Volland, se deparou por acaso com estas fotos de Khaldei em Moscovo, tendo decidiu publicá-las em livro.

Em 8 de maio de 2008, no aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, o museu Martin Gropius Bau, em Berlim, fez uma retrospectiva da obra de Khaldei, considerado o mais importanbe fotojornalista da era soviética. A exposição mostrou fotografias da "Grande Guerra Patriótica": a conquista, pelo exército vermelho, de Sofia, Bucareste, Budapeste e Viena, bem como a conferência de Potsdam e os julgamentos de Nuremberg. Também contava com fotografias da vida quotidiana na União Soviética, de antes e depois da guerra.

Khaldei não era, técnica, formal e esteticamente, um fotógrafo de grande estilo. Em contrapartida, teve o mérito de captar momentos historicamente importantes (e alguns únicos), ao longo de uma carreira de seis décadas. Pode-se lamentar que, do ponto de vista deontológico, o seu comportamento nem sempre tenha sido correto, como no caso da sua obra-prima fotográfica, a foto da bandeira vermelha no Reichtag. De qualquer modo, não deixa de ser um dos grandes fotojornalistas do séc. XX.

2. A história dessa falsificação, o "making off" da foto do Reichtag, foi reconstituída por Volland, o curador da exposição de Berlim.  Segundo ele, Khaldei nessa mesma noite de 2 maio seguiu de avião para  Moscovo, levando os negativos. Quando a imagem apareceu na revista Ogonjok,  em 13 de maio de 1945, já havia um detalhe modificado. Na realidade, o soldado que está apoar o seu camarada com a bandeira tinha um relógio em cada pulso, o que só podia ser produto de roubo. Khaldei admitirá mais tarde que tinha riscado o relógio no braço direito do homem num dos negativos,  usando uma agulha... Por outro lado, as  nuvens negras de fumo, dando maior carga dramática e tom épica à foto, terão sido adicionadas mais tarde.... Enfim, na versão final, há uma nova bandeira, ondulando dramaticamente no vento.

Khaldei justificou-se, alegando que manipulou a foto por uma boa causa, o seu ódio ao nazismo... O seu pai e três das suas quatro irmãs foram assassinados pelos alemães... Uns anos antes de morrer (em 1997), disse publicamente que perdoava aos alemães, mas nunca poderia esquecer... O que se entende, porque é humano. 

Conheceu grandes fotógrafos do seu tempo como Robert Capa (1913-1954), de seu nome verdadeiro, Endre Ernő Friedmann, judeu de origem húngara,  um dos fundadores da agência Magnum. Tornaram-se amigos e Capa deu a Khaldei uma câmera "Speed ​​Graphic", quando ambos faziam a cobertura dos julgamentos de crimes de guerra em  Nuremberg.

  by Michael Sontheimer, in Berlin. Spiegel on line International, 7 may 2008.

3. O fim da I Guerra Mundial foi o fim da Europa imperial, e a emergência dos EUA como grande potência... O fim da II Guerra Mundil foi o fim dos impérios coloniais, logo com a Inglaterra, em 1947, a abrir mão da "joia da coroa" que era a Índia... Foi também a divisão do mundo em dois blocos, polítco-militares, com um longo período de guerra fria, a emergência do movimento dos não-alinhados, o 3º Mundo, a descolonização...

Mas foram também os "trinta gloriosos", as três décadas de crescimento económico ininterrupto dos países europeus, sob a tutela dos EUA: o "milagre económico" alemão, francês, italiano... Um mundo (e um modelo de desenvolvimento) que entrou em crise, a partir de 1973, com o choque petrolífero, e acabou em 1989, com a queda do muro de Berlim...  No meio de tudo isto, Portugal, país milenar, viu-se reduzido, em 1975, às fronteiras do séc. XIV e aos seus modestos 89 km mil quadrados, depois de ter levado a cabo, ingloriamente, a maior guerra do séc. XX, de baixa intensidade, em três teatros de operações, a milhares de quilómetros de distância, mobilizando mais de um milhão de homens, ao longo de quase década e meia... Essa guerra calhou-nos na rifa, à geração nascida com a (ou depois da) II Guerra Mundial... Feita a paz, e as contas, verficamos que o português é hoje a língua de 250 milhões de seres humanos, da Guiné ao Brasil, de Angola a Timor...O português é, verdadeiramente, a nossa "joia da coroa" e não é mais uma língua imperial...

De facto, a partir de  1945, o mundo não mais voltaria a ser como dantes...  (LG)