Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > O cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães, primeiro comandante da CART 1690 (Geba, 1967), então com 29 anos. Morreu, em combate, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C. Foi um dos 26 capitães que morreram no TO da Guiné. (55,3% do total dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar. mortos nma guerra do Ultramar.) (*)
Entrou para a Escola do Exército (hoje Academia Militar), ni último trimestre de 1954. Esteve na Índia como alferes e depois tenente, entre maio de 1959 e março de 1961. (Esteve, pois, também como prisioneiro de guerra na Índia). Tinha chegado ao CTIG em 15 de abril de 1967. Era a sua primeira comissão em África, como capitão.
Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. A foto de cima é a última do cap art Manuel Guimarães (1937-1967), tirada uns minutos ou uns instantes antes de morrer, em 21 de agosto de 1967. O nosso saudoso A. Marques Lopes fez dele (o "capitão Mendonça") uma das principais personagens do seu livro de memória, "Cabra Cega" (2015).
Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes nos deixpou escrito, nomeadamente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (**).
Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 11 de maio de 2023, às 23: 45.
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes.
No livro, na edição de 2015, o alf mil Domingos Maçarico é o Zé Pedro. O alf mil A. Marques Lopes é o Aiveca. O cap Manuel Guimarães é o Mendonça. O seu guarda-costas, o Calmeiro, é o Domingos Gomes. O guarda-costa do Lopes, o Laminé Turé, é o Carmelita.
O comandante do batalhão a quem o cap art Manuel Guimarães "queria oferecer" a mina A/C, levantada por ele, não vem identificado. A CART 1690 pertencia ao BART 1914 (que teve três comandantes: Ten cor art Artur Relva de Lima; ten cor inf Hélio Augusto Esteves Felgas: e ten cor cav António Maria Rebelo. Mas no setor de Gaba, de abril de 1967 a novembro de 1968, ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1877 e depois do BCav 1905 e ainda do BCaç 2856.
Mas em agosto de 1967 a CART 1690 dependia do BCAÇ 1877, sediado em Bafatá, e tendo como comandante o ten cor inf Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas. O Comando de Agrupamentpo era o nº 1980 (Bafatá, fev67/nov68) (cmdts: cor inf José Frederico Porto Assa Castel-Branco; e ten inf Hélio Augusto Esteves Felgas).
O A. Marques Lopes, na sua página do Facebook, transcreveu este episódio, por duas vezes, em 15 de maio de 2019, e uns meses antes de morrer (de cancro no estômago), em 21 de agosto de 2023 (56 anos depois!).
O excerto que transcrevemos corresponde, grosso modo, às pp. 434-439 (com algumas alterações e pequenos cortes: em 2015, no livro, as personagens sáo identificadas por nomes fictícios; nos excertos publicados no Facebook, a narrativa é feita na primeira pessoa do singular).
A Mina , 21 de Agosto de 1967
por A. Marques Lopes (1944-2024)
(... ) O [Domingos] Maçarico saiu com a coluna no dia seguinte, logo de manhã muito cedo. Eu e o Guimarães ficámos no bar-barraco a tomar o pequeno-almoço juntamente com dois furriéis. O do capitão era a habitual fresquíssima garrafa de vinho verde e uns cachorros. Maravilha, dizia ele, o frigorífico a petróleo até estava a funcionar. E ele, assim fresquinho, bebia-o mesmo bem. Eu estava agarrado a uma sandes de queijo que acompanhava com uns goles de café.
Eis se não quando chega um Unimog e vimos o Maçarico saltar dele todo agitado:
− Meu capitão, encontrámos uma mina − comunicou, ainda afogueado.
− Deflagrou? − perguntou o capitão.
− Não. Os picadores detctaram-na e agora está tudo lá parado.
− Então vou lá ver isso aqui com o Lopes. Vamos.
Nem me perguntou se queria ir ou não. Chamou o seu guarda-costas. Fiz o mesmo. Fomos no mesmo Unimog até para lá um bocado depois de Sare Banda, a tabanca dos milícias. Quando chegámos vimos a coluna parada. Os furriéis, alguns soldados e os milícias picadores estavam à volta da mina. Era outra TMD. O capitão ficou excitado, parecendo uma criança a quem deram um brinquedo desejado. Deu ordem para se afastarem todos para longe.
− Só eu e o alferes Lopes mais os guarda-costas é que ficamos aqui. Vamos ver isto.
Ajoelhámo-nos os quatro à volta da anticarro.
− Lopes, esta vamos levantar e vamos oferecê-la ao nosso comandante de batalhão. Além disso isto dá dinheiro.
Estava todo entusiasmado mas eu não sabia quanto é que dava e não estava nada interessado em ganhar dinheiro dessa maneira. Como estava lixado com os mandões do batalhão e do Agrupamento, porque me estavam sempre a mandar para a boca do lobo, também não estava nada virado para lhes oferecer prendas.
Mas, enfim, a prenda era dele, que se lixasse. Peguei na minha faca de mato e comecei a escavar à volta da mina. Era uma TMD, soviética.
Chegou-se, entretanto, um furriel ao pé de nós e tirou uma fotografia. O capitão enxotou-o:
− Já disse para saírem daqui!
Continuei a escavar. Quando já não havia terra nenhuma à volta da mina, achei por bem dizer:
− Não vejo nada aqui à volta, meu capitão. Mas eu não sou especialista nestas coisas e parece-me que é melhor rebentá-la com uma granada ou puxá-la de longe com uma corda. É melhor não arriscar.
− Nada disso, pá. Vai ser um ronco e quero oferecê-la ao comandante de batalhão. Vamos levantar isto.
Estava obcecado pela prenda ao comandante e devia estar arrependido de não ter feito isso com a outra. Aquilo podia estar mesmo armadilhado, até me tinham dito que, muitas vezes, só quem montou a armadilha é que sabe como está. E eu, ainda por cima, não percebia nada daquilo. Tinha de o avisar novamente.
− Ó meu capitão, não faça isso. É um grande risco que é melhor não correr. Atamos uma corda e puxamos de longe com um Unimog.
− Deixe-se disso. Vamos levantar.
− Então, não sou eu que pego nisso − disse decididamente, levantando-me.
Lamine Turé, o meu guarda-costas, já se tinha levantado também, estava agora ao pé de mim e olhava-me com aprovação.
Ficou o capitão e disse ao Domingos Gomes, guineense de Bissau e seu guarda-costas, para pegar na mina. Foi quando eu e o Lamine recuámos uns passos.
Foi outra dimensão. O trovão e a faísca rápidos que me lançaram no vazio, sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não senti dor ou sofrimento, nem tive qualquer pensamento. Era a forma rápida de sair da vida para o nada.
Não soube nem deixei de saber o que se passara, não soube se morrera ou se ficara ferido, não soube se fui para o inferno ou para o céu, não vi o velho das barbas nem o cornudo de rabo comprido. Houve momentos em que não existi.
Nem soube quanto tempo tinha sido quando deu por mim deitado no chão da mata, fora da picada.
Levantei-me e vi ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegada ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos. Mais à frente estava o Laminé, que se tinha levantado e parecia não ter nada. Perguntei-lhe como estava. Disse-me que só tinha uns estilhaçositos. Fui até ao buracão da mina, olhei para o fundo e viu lá bocados de uma granada de morteiro. Tinha sido assim, um rebentamento por simpatia. Vários elementos da coluna tinham-se aproximado. O Maçarico olhou para ele estarrecido.
− Estás a deitar sangue dos ouvidos.
Ouvi-o mal mas ainda percebi e levei lá as mãos. Vieram cheias de sangue. Vi também que o poncho que envergara tinha desaparecido, só tinha um bocado à volta do pescoço.
− E o guarda-costas do capitão? − perguntei-lhe.
− Já o procurei mas não o encontro − respondeu o Maçarico
Decidimos colocar o capitão em cima dum poncho e levá-lo para a sede do batalhão, onde havia um médico. Na nossa companhia não havia. Ainda pensámos que podia estar vivo. Por isso vimos que não havia tem po de procurar o homem que levantara a mina, o qual, concluímos, devia ter os bocados espalhados no meio da mata. Depois se veria.
Ouvia-me ao longe, mas sei que fui todo o caminho a chamá-los turras filhos da puta, cabrões, hei-de fodê-los… e montes de impropérios, misturados com várias lágrimas.
O médico do batalhão disse que o capitão estava morto. Viu o meu guarda-costas e confirmou que tinha dois pequenos estilhaços, retirou-os e tratou dele. Com dificuldade, mas ouvi-o a dizer-me que tinha dois estilhaços no peito, tirou-mos e olhou-me:
−Estes não têm importância. Mas olhe que você teve uma sorte do caraças. Há um que lhe passou na virilha direita, deixou aí um traço mas não atingiu nada de importante.
Sorriu-se mas eu não achei piada nenhuma.
− De qualquer modo tem de ser evacuado porque tem os dois ouvidos furados.
E fui. Veio um helicóptero e levou-me para o HM241, em Bissau. Fiquei lá uma semana, tratado a mais de 15 comprimidos por dia. Hão-de ter-me feito bem a alguma coisa, não duvido, mas ao fim de alguns dias o meu estômago nem a água aguentava.
No fim dessa semana fui evacuado para o HMP, para Lisboa. (...)
(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)
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