1. O Zé Ferreira, ex-fur mil op esp, "ranger", CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), passou pelos melhores "resorts" turísticos da Guiné do seu tempo, e não regateou à Pátria o pagamento do imposto de sangue, suor e lágrimas.
Integra a nossa Tabanca Grande desde 8/7/2010.
Tem mais de 170 referências no nosso blogue, onde é autor de três memoráveis séries, que elevaram o brejeiro, o pícaro, o anedótico, o trivial, o caricato, o ridículo, o trágico-cómico... ao altar da arte de contar histórias (estão também publicadas em livro):
- Memórias Boas da Minha Guerra
- Outras Memórias da Minha Guerra
- Boas Memórias da Minha Paz
Das "Memórias Boas da Minha Guerra", e para matar saudades (já que ele, por razões de saúde, não tem podido ou querido parecido por aqui) fomos repescar um excert0 que é uma pequena obra-prima, que merece figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...
São ínfímas histórias da nossa guerra com as quais nenhum historiador académico daqui a 50 anos irá gastar um minuto a ler, e sobre as quais muito menos irá escrever uma linha... De qualquer modo, são histórias que não queremos descartar da nossa memória de antigos combatentes.
Depois de inquietantes operações como a Inquietar II, voltávamos ao quartel mais próximo e, depois de um banho retemperador, entre uma bazuca ou uma garrafa de uísque, gostávamos de recapitular estes episódios burlescos,uns, dramáticos, outros, como forma de exorcizar os fantasmas dos nossos humanos medos e das nossas bravatas de semideuses... Aos 20 anos todos éramos imortais!
Humor de caserna > O “Xelorico”
por José Ferreira da Silva
O soldado José Ribeiro, minhoto de Celorico de Basto, foi mobilizado para a Guiné, integrado na nossa CART 1689 (1967/69). Para mim, que o seguia de perto, era um indivíduo inteligente, de comportamento exemplar e com características muito próprias, para além da pronúncia do nome da sua terra natal e de outras palavras idênticas.
Logo de início ficou marcado pelo nome de Xelorico. Quem o batizou (e martirizava) foi o Silveira, de Matosinhos. O Ribeiro esforçou-se tanto para corrigir o seu falar, que já não aceitava essa “provocação” e passou a gabar-se de falar melhor que os gajos do Porto.
Quando fizemos a Operação Inquietar II, estivemos sob uma emboscada do IN durante mais de três horas. Durante esse tempo foram-se esgotando as munições sem que víssemos saída para a situação. O ambiente era de péssima expetativa e as esperanças de solução iam diminuindo à medida que o tempo passava.
Logo de início ficou marcado pelo nome de Xelorico. Quem o batizou (e martirizava) foi o Silveira, de Matosinhos. O Ribeiro esforçou-se tanto para corrigir o seu falar, que já não aceitava essa “provocação” e passou a gabar-se de falar melhor que os gajos do Porto.
Quando fizemos a Operação Inquietar II, estivemos sob uma emboscada do IN durante mais de três horas. Durante esse tempo foram-se esgotando as munições sem que víssemos saída para a situação. O ambiente era de péssima expetativa e as esperanças de solução iam diminuindo à medida que o tempo passava.
Quando tentávamos avançar, logo obtínhamos resposta imediata e forte do IN, que nos obrigava a manter a mesma posição. Deitados pelo chão, cochichávamos com os mais próximos frases próprias de quem quer disfarçar o estado de espírito. O Silveira, acossado pelo remorso, diz para o Xelorico:
– Ó Ribeiro, desculpa lá por ter gozado com a coisa do Xelorico.
E, num tom mais comovido, adiantou:
– Se escaparmos desta, nunca mais te vou chatear com isso... Tás a oubir, morcom?
O Celorico, encolhendo os ombros:
– Afinal, não tens razão nenhuma, porque eu não falo assim.
Uns minutos depois, numa das reações do IN, veio uma granada de LGFog, um “rocket”, embater contra uma árvore grande, que estava perto. Os estilhaços incandescentes espalharam-se em várias direções e um deles rasgou a bochecha do Ribeiro, do lado esquerdo e entrou-lhe na boca
– Afinal, não tens razão nenhuma, porque eu não falo assim.
Uns minutos depois, numa das reações do IN, veio uma granada de LGFog, um “rocket”, embater contra uma árvore grande, que estava perto. Os estilhaços incandescentes espalharam-se em várias direções e um deles rasgou a bochecha do Ribeiro, do lado esquerdo e entrou-lhe na boca
O Ribeiro, com a sua habitual serenidade, abriu a boca e apanhou um estilhaço, ainda quente, com dois dedos da mão direita. Virando-se para o Silveira, mostrou o achado e disse, com o ar e a voz a fugir-lhe pelo buraco ensanguentado:
– Flholda-lhe, Slilbeila, flholalam-me cum stilhalho. Estlhou flholhilho.
O Silveira, que ficou bastante preocupado ao ver o ferimento e a sangrar, ia repetindo para o encorajar:
– Tem calma, Xelorico. Tem calma qu’ isso tapa-se. Bais ficar bom. Olha qu’ inda bais ficar a falar à moda de Lisbaua.
– Flholda-lhe, Slilbeila, flholalam-me cum stilhalho. Estlhou flholhilho.
O Silveira, que ficou bastante preocupado ao ver o ferimento e a sangrar, ia repetindo para o encorajar:
– Tem calma, Xelorico. Tem calma qu’ isso tapa-se. Bais ficar bom. Olha qu’ inda bais ficar a falar à moda de Lisbaua.
Fonte: Excerto de "Xelorico, um rapaz sui generus". In: José Ferreira da Silva - Memórias Boas da Minha Guerra, vol I, Lisboa, Chiado Editora, 2016, pp. 67/69.
(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos : LG)
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Notas do editor:
(*) Poste de 28 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8179: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Xelorico, um rapaz sui generis
(**) Último poste da série > 22 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25866: Humor de caserna (70): um "tuga"... (de)composto, ou uma estória pícara num almoço fula (Alberto Branquinho, autor de "Cambança final", 2013)