1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro,
1971/74), com data de 25 de Junho de 2017:
Ser português não é fácil, e penso que nunca foi fácil para a grande maioria do povo. Lançados à conquista de um império, que nunca resultou numa maior distribuição das riquezas, modernidade nem bem estar, fica-nos o orgulho de que os nossos antepassados fizeram o impensável para um país tão pequeno como o nosso, tanto na expansão como na defesa da nossa nação. Não foi pois por falta de coragem que não chegamos ao tão almejado estádio em que seria equiparada a nossa grandeza exterior, com a riqueza e bem estar interno e que nos elevaria a estatuto entre as nações mais avançadas na arquitectura, na medicina, nas ciências, na educação e, por conseguinte, no progresso que dita o bem estar da sua população.
Os nossos antepassados regaram com o seu sangue terras longínquas, repeliram invasões, guerras civis, revoluções e, por fim, acabamos a construir as cidades para os outros.
Assim chegou a vez da nossa geração e fomos quase um milhão.
Durante 13 anos fomos actores principais numa guerra que nos sangrou, apartou das nossas famílias e, pior, tornou o futuro irremediavelmente perdido para muitos.
Aqui chegados, constato que continuamos a ser usados na nossa boa vontade e orgulho patriótico.
No 20 de Maio fui receber a minha Medalha Comemorativa de Campanha. No momento senti um misto de orgulho e algumas dúvidas.
Orgulho por ir receber a medalha que foi finalmente imposta, quarenta e tal anos depois do meu regresso. Independentemente das razões, entendo que é meu direito reivindicar a mesma, como uma coisa que me é devida.
Dúvidas. Qual real valor que esta condecoração tem. Na mesma cerimónia vi militares no activo receberem também distinções por serviços prestados. Terá sido na Bósnia? No Iraque, em África, onde se fazem hoje comissões de 6 meses como voluntários, mais bem armados, equipados, treinados e remunerados? No caso, as ditas Medalhas por Serviços Distintos tinham a categoria de ouro, prata e bronze. É aqui que começa a minha incompreensão.
Será que no meio de vinte e tal ex-combatentes que foram receber a Medalha Comemorativa das Campanhas, não estariam homens, que no seu tempo praticaram actos de bravura em combate durante as suas comissões, em especial em Angola, Guiné e Moçambique?
Vinte e tal meses em zonas 100% operacionais que até a água se ia buscar com risco de vida. Isto é comparável a quê nos dias de hoje?
O nosso exército é hoje profissional e voluntário, os seus membros relativamente bem remunerados, direi mais, excelentemente remunerados, quando prestam serviço em qualquer zona de conflito, normalmente em missões de policiamento ou de interposição.
Note-se que não estou contra a nossa participação nessas acções, uma vez que a integridade nacional se defende hoje a milhares de quilómetros das nossas fronteiras. Talvez se deva pôr em causa as razões que provocaram a instabilidade neste Mundo e que levaram ao actual estado de coisas, mas isso é outra questão.
Será possível que aqueles jovens soldados (todos graduados alguns com o peito carregado de medalhas), que no sábado foram condecorados por serviços prestados, tenham feito alguma coisa que transcendesse os actos de bravura de alguns de nós há 45 ou mais anos.
Estavam lá veteranos das três frentes, Comandos, tropa normal e paraquedistas, que naquela guerra sofreram o que só nós sabemos. Perfilámo-nos, emocionámo-nos com a homenagem aos mortos (cada um se lembrou dos seus) recebemos as honras dos militares em parada, seguidamente almoçámos no quartel no meio das fardas de gala e camuflados, mas será que nem um de nós merecia uma daquelas medalhas, de bronze ou prata, para já não falar na de ouro?
Quantos ex-combatentes receberam alguma? Soldados anónimos que contribuíram com a sua coragem para salvarem outros. Quem não conheceu um pelo menos? Algumas provas disso foram ignoradas e apagadas, para assim não serem prova viva da gravidade dos ataques. Chegou-se ao cúmulo de mencionar as munições gastas para repelir o ataque como sendo gastas em exercícios.
As provas de heroísmo foram apagadas como apagaram os buracos feitos pelas armas do inimigo e, quanto muito, foram as companhias ou batalhões galardoados no final das comissões pelo cômputo geral do serviço, beneficiado destes louvores os comandantes que viram assim averbadas estas às suas folhas de serviços.
Quanto à medalha, vou guardar a minha como memória daquele tempo, mas lamento que ela cheire a prémio de consolação e que, ao nos serem entregues hoje, se queiram justificar perante nós de alguma coisa, em vez de praticarem a mais elementar justiça para quem deu tanto si.
Dentro de alguns anos haverá milhares de veteranos a viver sozinhos, sem rendimentos para irem para um lar, com valores hoje a rondar os 1000 € (que muitos casais de reformados hoje não aufere), mais medicamentos, fraldas e cuidados de saúde complementares.
Nessa altura para que servirão as medalhas?
Que nos irão fazer?
A Pátria sempre teve filhos e enteados, mas une-nos, apesar das nossas diferenças sociais e até politicas, um sentimento que nos enche o peito. Podemos não estar de acordo com governos e governantes mas a Pátria somos nós, ama-se, não se discute, não se vende e não se renega, por muito que em nome dela nos maltratem.
Dela espera-se só o reconhecimento, pelo amor que lhe damos, na maioria das vezes sem retribuição alguma.
Um abraço
Juvenal Amado
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2. Comentário do editor:
Não é meu hábito "deitar faladura" a seguir aos textos dos camaradas, mas o tema que o Juvenal traz à liça, sugere-me alguns comentários.
Quanto à atribuição da Medalha Comemorativa das Campanhas, logo no fim da nossa comissão ficou registada na Caderneta Militar de cada um. Vejam a página 12.
Conclusão, a Medalha devia ter sido distribuída na altura. Como não foi, e todos nós mudámos de residência inúmeras vezes depois de passarmos à disponibilidade, digamos que as autoridades militares perderam o nosso rasto, não sabendo sequer se somos vivos. Restava fazer o que agora vem a ser feito, requerer a Medalha, dando sinal de que ainda estamos vivos. "Estes" nunca a negaram e estão a distribuí-las às centenas, anualmente.
Já agora, a culpa disto tudo foi da "outra senhora", a quem poucos afrontavam então.
Quanto às Medalhas de Serviços Distintos, a coisa é mais complicada, pois a sua atribuição dependeria de proposta dos respectivos Comandantes.
Já se sabe que conforme a hierarquia ia descendo, mais difícil era o acesso às mesmas. E nós, caro Juvenal só tínhamos direito à de cobre, à de folheta, melhor dizendo.
Voltamos à mesma, não vale a pena pensarmos nisso agora.
E o mais sensível para nós, as actuais missões no estrangeiro.
Não há comparação possível com o nosso tempo. Quantas localidades tinham telefone na Guiné?
Os militares de hoje têm ao seu dispor toda uma panóplia de meios de comunicação que há cinquenta anos eram impensáveis.
Os vencimentos são tão diferentes que é pecaminoso fazer qualquer comparação.
Os actuais militares ganham muito? Não, nós é que ganhávamos pouco. O problema foi nosso, que vivemos noutros tempos de míngua.
O tempo de missão foi consideravelmente reduzido porque os efectivos são suficientes para a rotação dos mesmos.
Os militares de hoje são considerados e reconhecidos? Ainda bem, pena que não tenha sucedido isso connosco.
Não te esqueças Juvenal, que pela esquerda radical, a seguir ao 25 de Abril, fomos considerados fascistas, colonialistas e outras coisas terminadas em istas, sorte tivemos em não sermos presos. Talvez porque éramos muitos. Já nem falo na entronização daqueles que se negaram a ir para a guerra, transformados em verdadeiros patriotas.
Finalmente, o nosso fim de vida, para uns em carência, para outros mais desafogado.
A falta de condições básicas terá a ver com a condição de ex-combatente? Em alguns casos sim, mas não podemos generalizar. Cada caso tem de ser analisado, e arranjar-se a solução adequada. A nossa condição de ex-combatente não se pode sobrepor à daqueles que por serem mulheres ou homens mais afortunados, não foram à guerra.
Que queremos afinal? Respeito, reconhecimento pelo nosso esforço e apoio aos estropiados e afectados física e psicologicamente pela guerra.
CV
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Nota do editor
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Guiné 61/74 - P17491: Blogoterapia (286): Uma memória daquele espaço em Casal dos Matos, Pedrógão Grande (Mário Beja Santos)