1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2012:
Queridos amigos,
“A Pátria ou a Vida”, de Gertrudes da Silva, não tem paralelo em tudo quanto me foi dado ler sobre a nossa guerra. é bem provável que o autor tenha sido o comandante da CCAÇ 2781, que passou uma boa parte da sua comissão em Bissum-Naga.
Não há ali farronca, exaltação dos feitos, encómios sobre a obra feita. Entrega-se, de alma e coração, a esculpir caracteres, é um autor, ele próprio à procura de compreender e justificar quem observa, praças, sargentos e oficiais. Retrata um oficial do quadro que escapa ao protótipo idealizado para os seus pares. Aliás, não tece elogios aos seus superiores, mostra-os mesmo incapazes de perceber a natureza daquela guerra.
Um abraço do
Mário
A Pátria ou a Vida (2)
Beja Santos
“A Pátria ou a Vida”, por Gertrudes da Silva (Palimage Editores, 2004), é uma obra singular em toda a literatura da guerra colonial, garanto-vos. Trata-se de uma companhia acantonada em Bissum-Naga, os relatos bélicos estão absolutamente condicionados aos comportamentos e às vivências dos militares. A narrativa começa por destacar os diferentes grupos intervenientes, o João Benvinda, o furriel Antunes, o primeiro-sargento Cebola, o aspirante Costa. O capitão parece não ter nome, talvez para camuflar o autor da prosa, há sérios indícios de que é ele o responsável pelo que aqui se lê. Sabe-se que ele leva demasiado a rigor a vida da companhia, e mais:
“Não nos larga todo o dia e mesmo no fim da tarde nunca dispensa a reunião diária para avaliação do trabalho desenvolvido e preparação do que há a fazer do dia seguinte. Às vezes, vê-se mesmo que perde a noção do tempo e quase que saímos dali – os comandantes de pelotão – diretamente para a formatura da instrução noturna, sem comer nada de jeito”.
Afinal, o capitão tem um nome completo, forjado, Júlio dos Santos Parente, cursou a Academia Militar, tem raízes marcadamente rurais, era o Juca entre familiares. Sabe-se que fez uma comissão em Angola, andou depois por Mafra.
Após a apresentação por retratos, sabe-se que a partida para a guerra está para breve, o João Benvinda foi recebido pela família a chorar, o furriel Antunes também deu consigo a chorar quando se despediu dos seus, enfim, do capitão às praças todos deixam o mundo para trás contritos, entes queridos tolhidos por tanta dor. Chegados a Bissau, escrevem às suas famílias. O João Benvinda dá a saber à sua Amélia que há problemas na companhia por causa dos corrécios de Penamacor que transformaram a viagem numa polvorosa, com cenas de porrada, cabeças partidas e até facadas, numa mistura com vigarices, copos a mais e jogos da vermelhinha. Segue-se o IAO, marcham para Bissorã, aqui se ouve falar em Queré, Choquemone e Tiligi. A primeira operação torna-se no batismo de fogo. E parte-se para Bissum-Naga, temos a crua descrição do local:
“À volta de um grande terreiro que nem é quadrado nem é circular, aparecem regularmente plantadas quatro edificações, a definir, em ângulo obtuso, os quatro cantos do aquartelamento, ficando assim, para já, com este nome. São as quatro casernas-abrigos, uma para cada grupo de combate. Da mesma traça arquitetónica (e esta?!...) destes, e logo à direita de quem entra, está o abrigo do Comando, ali no desempenho das suas mais nobres funções. Na ala da direita, que mais correto será dizer que é do Poente, a configuração do recinto vai-se aprimorando com mais um alongado abrigo onde funcionam o posto de socorros e a messe de oficiais e sargentos. E agora, se ao entrar, que é pelo Norte, nos virarmos para o lado esquerdo, temos logo ali, em tosca simetria com o abrigo do Comando, o depósito de géneros, o posto de rádio, e aqui que ninguém nos ouve, o centro cripto. E o desenho do terreiro, serve de muita coisa, e também de campo de futebol e de parada, completa-se nos intervalos com construções mais ligeiras e desenterradas, dispostas como todas as outras ao longo e do lado de dentro da dupla fiada de arame farpado: é o conjunto do forno do pão e das cozinhas, do gerador e da ferrugem. Fora deste esquema estão o paiol, do lado de fora do alinhamento, mas dentro da rede de arame farpado que ali se alargou um pouco mais e, onde deu mais jeito, os sanitários e cantina. E entre o arame e o topo sul da tabanca, ali mesmo ao pé da porta de armas, o único edifício que, se calhar merece tal nome – a escola. E, para já, é tudo. É tudo, não. Porque deixávamos passar o que no conjunto até é o mais saliente – as quatro torres de vigia, de secção quadrangular, com seus telhados de zinco a quatro águas, sobressaindo, mais ou menos a meio das quatro casernas – abrigos”.
Ali estão, fazem furtivas incursões, as operações de ronco são encargo das forças especiais. Trata-se de uma escrita sem prosápia, um documento que preza, acima de tudo, as revelações do comportamento não embotadas pela dureza da guerra.
Segue-se uma descrição do dia-a-dia, com afazeres, incumbências e estados de espírito, desbobinam-se as pequenas chatices, as idas à água e os reabastecimentos de mês a mês. Depois, a guerra é reveladora do melhor e pior da condição humana, o Moura do 1º Grupo de Combate, um dos tais que viera diretamente de Penamacor, que talvez arrombasse carros ou andasse a furtar recheios, agora deu-lhe para o sentimento, trouxe uma gatinha do Cumeré, fez-lhe uma casota que prantou entre o abrigo e o arame farpado, afaga o bicho com as duas mãos, é nisto que chamam o pelotão que está de serviço interno para ir à pista, do avião saem dois senhores, o comandante de batalhão e o oficial de operações, o assunto que os traz é Tiligi, Queré, Inquida e Choquemone, afinal vão mesmo ao Insumeté, uma península, não rodeada de água por todos os lados menos por um mas que vai dar ao mesmo, se em vez de água pusermos bolanha. Vão com o pelotão de milícias, tudo vai correr nos conformes até à emboscada, infelizmente que não chegou na hora certa o apoio aéreo, andaram por ali a penar. O regresso foi penoso, no fundo uma operação sem história.
Aqueles combatentes são seres humanos, escrevem às namoradas com juras de amor, fala-se mesmo em casamento na situação em que a rapariga ficou grávida. O quartel aprimora-se, a escola funciona, os autóctones não prescindem dos seus festejos, os trabalhos de reordenamento vão de vento em popa. Segue-se uma incursão a Inquida, novo susto. O Moura perdeu a cabeça e quis abater o nosso capitão, tudo se resolveu a bem. O autor disserta sobre os santuários e estas incursões sem proveito nem glória. Dá-se um tremendo acidente, vem de Bissau o comandante-chefe e apostrofa nosso capitão em público. Descobre-se um negócio sórdido em que o pessoal turra do Tiligi, segundo constava, punham minas, que as milícias levantavam, auferindo os prémios. A verdade é que “Os tipos do Tiligi iam levantar os engenhos aos grandes campos de minas de Bula e logo que as tinham com eles, lá arranjavam maneira de fazer chegar tão preciosa informação aos seus conhecidos e provavelmente amigos do lado de cá. Estes, no retorno levavam-lhes metade dos respetivos prémios. Assim seria o trato. Entendeu-se que não havia nada a fazer a não ser acabar com esta mina das minas”.
É uma obra que deliberadamente não anda em permanência à procura dos urros, das fúrias, das emboscadas, das enormes flagelações, de tonitruantes atos heroicos. Não é um livro de guerra condimentado de feitos ou exaltação épica, versa homens na sua condição de combatentes que têm vida própria, estão providos de memória e vivem conjuntamente o mesmo penar, a retaguarda dos combatentes assoma à primeira linha, recorrente, é um caso inédito na especificidade desta literatura. Até porque o capitão sofre com a pesada humilhação pespegada pelo comandante-chefe, sai da companhia, o resto é rememoração, o capitão foi para Bula, aqui o capitão narrador descreve a localidade e é um pouco cruel ao retratar os seus pares. E regressam, fazem o espólio e partem para as origens:
“O Paredes já ali vai. Deixem-no ir também, que está mesmo aflitinho por pegar no pimpolhozinho que ainda avistou de raspão lá fora e por dar um apertado abraço à Amélia, que ainda não chegámos ao tempo de beijos de amor no meio da rua e à frente de toda a gente. Agora vai ali o furriel Antunes; sem pressas, como sempre. Assim que chegar a Mondim, e tal como as coisas por lá estão, com a mãe muito doente e o pai envelhecido e cansado da vida, vai provavelmente começar logo uma outra sobreposição e render o pai na condução da empresa. O alferes Costa também já lá vai. Mas já não é o mesmo. Agora passou e quase que nem nos falou. Seria do ferimento no Insumeté, das operações que teve de fazer – e dizem que estas coisas das anestesias deixam sempre as suas marcas numa pessoa, de coisas que se teriam passado por lá por Tite, quem sabe”.
Uma obra inqualificável, moldada pela ternura e os fios que a amizade tece na tal dureza da guerra.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11016: Notas de leitura (453): "A Mulher Portuguesa na Guerra", coordenação do Cor Alberto Reis Soares e "A Pátria ou a Vida" por Gertrudes da Silva (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
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