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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25788: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão




Foto nº 1A > O sargento do pelotão ostentado festivamente, ao pescoço,  um colar feito de conchas



Foto nº 1 > O sargento do pelotão, posandeo em cima do obus 8.8


Foto nº 2 > Alguns elementos (a maioria guineense) do Pel Art que participou, com fogo de apoio, na Op Trident (jam-,ar 1964). Qiase todos eles ostentam colares de conchas, feitos na ocasião, no "intervalo da guerra".


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > O Pel Art / BAC obus 8.8, comandando pelo alf mil art José Álvaro Carvalho.

Fotos (e legendas): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Angola > Luanda > 1963  >  Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias, em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (estes três últimos já falecidos). No  aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG / CTIG. O primeiro grupo de Comandos do CTIG, sob o comando do alf mil Saraiva, participaria depois na Op Tridente (jan-mar de 1964) (***).   Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil,  Gr Cmds ‘Panteras’

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. O José Álvaro Carvalho é um dos nossos mais recentes "periquitos": entrou para o nosso blogue, no passado dia 26 de junho, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). É, todavia, um veterano da Guerra da Guiné:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, o alf mil art Carvalho acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

(iii)  foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG);

(iv)  irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965:

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras,  na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi)  no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado d Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra");

(vii) tornou.se  também amigo do então alferes milicianos  'comandos'  
Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos),  quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

(viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.)

Mas voltemos às memórias do José Álvaro Carvalho, agora sim, em 1964, destacado  em Catíó,  no BCAÇ 619, 1964/66, com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC).  

Este Pel At participaria em grandes operações np setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A  atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe,  em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe (*).

Foto acima, à esquerda:  os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda),  e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)


Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão


− Abra a culatra!

O carregador baixou a alavanca respetiva e a tampa da culatra baixou.


− Alça 6000 jardas!

O apontador rodou a manivela da alça e a parte superior do tubo do obus elevou-se lentamente até a marca da manivela de elevação atingir as 6000 jardas [5 486,4; 1 jarda=0,9144 metros] .

Baixou-se junto à culatra aberta até ver a totalidade do interior do tubo e com uma bússola de espelho apontada no seu centro disse:

− Vá rodando para a direita até eu dizer.

O apontador assim fez enquanto ele com a bússola acompanhou o rodar do tubo e quando ficou centrado nos 95º e 30’ que a bússola marcava, mandou-o parar e fechar de novo a culatra.

Esta era a direção obtida na carta militar (1/25000) que, depois de ter em conta o Norte Magnético, em conjunto com a distância de 6000 jardas, apontavam o obus para a referência nº 1, a primeira assinalada na sua carta assim como na carta do comandante do destacamento de fuzileiros, que ia apoiar, com quem se reunira de madrugada e assinalara as várias referências do percurso que este iria fazer, indicado pelo comando das operações.

Repetiu o mesmo procedimento no segundo obus e ficou à espera de ouvido no rádio, com todo o pessoal a postos: os apontadores sentados no seu lugar junto dos aparelhos de pontaria, os municiadores e ajudantes, junto das munições, com as granadas já fora das respetivas caixas de transporte, sem a proteção da espoleta (uma peça espessa de aço, roscada na sua extremidade) que accionava o detonador após o impacto, só o conseguindo fazer depois do disparo, quando as estrias do tubo lhe imprimissem um movimento rotativo cuja força centrífuga destravava o sistema de segurança.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obus 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.


Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Os carregadores seguravam com uma mão a alavanca da culatra e com a outra o soquete. Esta peça servia para empurrar a granada para dentro do tubo com força, a fim de que a cinta de cobre macio que a circundava sobressaindo 0.5 centímetros em toda a volta, encaixasse nas estrias em espiral do tubo, para que fosse obrigada a rodar após o disparo. 

Depois de encaixada no seu lugar e ter sido introduzida na culatra pelo municiador, o cartucho de metal com a carga, neste caso nº 2 ( duas saquetas de pano cheias de explosivo com o aspeto de macarrão ) indicadas para os alcances de 4000 a 8000 jardas, era esta fechada por ação da citada alavanca, sendo gritado o aviso de “Pronto!!!”.


Estava no 2º ano do serviço militar em África. O primeiro não tinha sido passado como artilheiro, mas como alferes duma companhia de intervenção, para onde tinha vindo em rendição individual. 

Na altura essa companhia já tinha um ano de serviço em África e, quando após mais um ano acabou a comissão e se retirou para a metrópole, ficou a aguardar funções no Quartel General (QG) oferecendo-se para o grupo de comandos, em formação nessa altura, por já conhecer as condições duras e difíceis do mato e parecendo-lhe preferível entrar em operações arriscadas mas ter a sede na capital e o consequente conforto.

Entretanto o QG requisitou um alferes artilheiro para comandar um pelotão de soldados africanos com dois obuses de 88mm, e quando menos esperava, foi parar ao Sul a comandar esse pelotão, operando como independente, junto dum batalhão de cavalaria.

Os soldados, indisciplinados, deram-lhe algumas dores de cabeça logo na 1ª operação e as coisas só começaram a funcionar normalmente com a ameaça de prisão ou mesmo fuzilamento dos mais rebeldes.

Bebiam quase todos demais e na 1ª operação só levou cerca de metade porque os outros bêbados não se tinham de pé.

No dia seguinte a esta operação mandou formar o pessoal e ordenou ao sargento e aos cabos que identificassem e mandassem avançar os mais indisciplinados, após o que os informou de que ia propor o seu fuzilamento por considerar traição a forma como se tinham comportado no dia anterior.

A partir daqui tudo começou a correr melhor, embora o comandante do batalhão onde estava estacionado [BCAÇ 619], t
endo presenciado este discurso, lhe dissesse que a sua ameaça de fuzilamento de soldados, poderia levá-lo a si próprio a tribunal de guerra.

Custou-lhe a compreender porque é que ser duro em campanha era mal visto pelas hierarquias superiores. Parecia-lhe que aquela era uma das poucas situações em que se deveria atuar com firmeza.

Não sendo talhado nem por feitio nem por educação para oficial do exército, tinha ido ali parar pelos desígnios curiosos que o destino tem.

Sempre achou que a dureza dos exércitos só seria útil em situação de guerra e ridícula nas restantes, como a pompa e circunstância das botas a brilhar em tempo de paz, para depois em guerra − a única justificação da sua existência − tudo se tornar ”frouxo como o inglês sem chá”. As guerras são a mais trágica criação do espírito humano, mas quem anda nelas deve cumprir as regras.


Seja como for, no seu pelotão, a consciência de que os erros de um podiam ser pagos por todos e o consequente espírito de equipa e amizade que se foi criando, vieram a torná-lo num dos mais eficientes estacionados em África, tendo sido elogiado em todas as operações em que participou, na sua maior parte de apoio a tropas de infantaria, fuzileiros e comandos.

Para isto contribuíram também algumas mudanças na forma de actuar por ser independente, principalmente no que se refere às pontarias iniciais ( dadas à bússola à revelia dos chefes ) que se revelaram rápidas e muito eficientes a partir de certa altura, pela prática de centenas de tiros disparados.

No que a si se refere, a experiência de que,  à distancia média de 5 kms 
[4572 jardas; 1 jarda=0,9144 metros], um desvio de 200 m [182,88 jardas], representava uma alteração de pontaria de cerca de 1º no mesmo sentido, que extrapolava rapidamente para outros alcances, permitia-lhe dar rapidamente aos apontadores as alterações de pontaria a efectuar por cada tiro a disparar, de acordo com os pedidos dos comandantes das unidades em contacto com o inimigo, a qualquer distància normal, conseguindo assim uma rápida resposta às necessidades das tropas que apoiava.

Ás vezes, em situações mais delicadas dava as pontarias a partir dum pequeno avião que lhe era fornecido pelo QG com o respetivo piloto e que aterrava e levantava facilmente numa área plana, sem mata só com erva a que se chamava pomposamente aeroporto e se situava perto do quartel 
[Catió]. Op Nestes casos quando no ar o avião estava constantemente a ser metralhado pelo inimigo. não podiam voar muito alto e, como sabia pelas tabelas de tiro com os habituais descontos +- 10 %, o tempo que as granadas levavam para atingirem o objetivo, assistia em geral ao seu rebentamento.

(Continua)

(Revisão/fixação de texto, título, negritos, parênteses retos: LG)


2. Informação adicional sobre   a Op Tridente (Mário Dias)(***)


Na Operação Tridente foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 Agrupamentos.

  • Agrupamento A: (Cmdt Major Cav Romeiras) > CCAV 487 (Cap Cidrais) | 7º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten R. Pacheco)
  • Agrupamento B: (Cmdt Cap Cav Ferreira) > CCVA 488 (Cap Arrabaça) | 8º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Alpoim Calvão)
  • Agrupamento C: (Cmdt Cap Cav Cabral) > CCAV 489 (Cap Pato Anselmo)
  • Agrupamento D: (Cmdt 1º ten fuz Faria de Carvalho) > 2º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Faria de Carvalho)
  • Agrupamento E: (Cmdt Cap Aires) > CCAÇ 557 (Nota: salvo erro, este agrupamento fazia a segurança imediata da Base Logística)

Outras Forças:

  • 1 Grupo de Combate / BCAÇ 600
  • Grupo de Comandos (20 homens) (Cmdt Alf Saraiva)
  • 1 Pelotão de Paraquedistas
  • 1 Pelotão de Caçadores Fulas
  • Pelotão de morteiros / BCAÇ 600
  • 2 Bocas de fogo de obus 8,8 do BAC (Cmdt Alf Carvalhinho)
  • Equipas de Sapadores (distribuídas pelos vários agrupamentos)
  • Elementos do Serviço de Intendência
  • 73 carregadores indígenas.Tudo somado eram aproximadamente 1000/1200 pessoas.

Estima-se que o PAIGC tivesse 300 combatentes, incluindo alguns militares da Guiné-Conacri.

Comandante das Forças Terrestres: Ten Cor Cav Fernando Cavaleiro. (Cmdt do BCAV 490)

Da Marinha:

  • Fragata Nuno Tristão.
  • 4 lanchas de fiscalização
  • 4 LDP
  • 2 LDM
Havia ainda várias embarcações civis pertencentes aos Serviços de Marinha da província que transportavam víveres, água e demais material necessário.

Da Força Aérea:

  • Aviões T6 – Aviões F86 – PV2 e PV2-5 (Apoio de combate)
  • Helicópteros Alouette (transporte e evacuações)
  • Aviões Auster e Dornier (transporte e reconhecimento)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

(**) Último poste da série > 18 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25757: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte III: Desobstruir uma ponte ao km 28 da estrada do Olossato

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Muito se tem discutido os resultados da Operação Tridente, os ensinamentos que trouxe para responder em termos de contra-guerrilha, etc. É facto que Spínola entendeu que o destacamento do Cachil para nada servia, mas observando a evolução da guerra, a região do Como tinha perdido pertinência, através da República da Guiné encontraram-se corredores e, mais tarde, o Senegal passou a autorizar a passagem de pessoas e bens por toda a fronteira norte, o PAIGC sabia de antemão que não se podia implantar nos Bijagós. Aqui se descreve o papel da FAP na Operação Tridente, os elementos indicados pelos autores comprovam que os dados historiográficos já existentes são sólidos, o que verdadeiramente permanece na penumbra é como Louro de Sousa, e depois Schulz e mais tarde Spínola entendiam o uso de grandes meios e durante um lapso apreciável de tempo. Recordo que houve uma operação que demorou 12 dias, a Lança Afiada (1969), que visava entrar nas bases criadas pelo PAIGC desde 1963 nas margens do Corubal, abaixo da Ponta do Inglês. Foi um fiasco completo, o uso de tantos meios deu tempo a que o PAIGC transferisse o seu potencial armamentista para a outra margem do rio, levaram a população e os alimentos, as nossas tropas encontraram uns velhinhos e canhangulos. Enfim, tanto barulho para nada.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Estamos exatamente num momento em que os autores abordam os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. E vamos imergir na Operação Tridente e avançar para o primeiro período da governação Schulz.

No que toca à Operação Tridente, a atividade aérea iniciou-se, tal como acordado, em 14 de janeiro, um Auster lançou folhetos sobre a ilha de Como e Caiar, mais tarde, no mesmo dia, os T-6 dispararam foguetes de 37 mm contra canoas perto de Curco, no Como, e em Poilão de Cinza, uma ilha costeira próxima, enquanto os P2V-5 bombardeavam embarcações e a aldeia de Catabão Segundo, destruindo estruturas do PAIGC. Na sequência destas atividades aéreas, iniciou-se a intervenção por grupos, tropa do BCAV n.º 490 e fuzileiros que desembarcaram em Caiar e Como, não encontraram resistência e iniciaram a sua marcha para norte, os desembarques foram progredindo, as forças portuguesas chegaram às aldeias de Caiar e Cauane, estamos já a 16 de janeiro, começou a resistência do PAIGC procurando retardar a progressão das forças portuguesas, um terreno difícil, com uma floresta quase impenetrável, pântanos e tarrafe. Para apoiar esta progressão, entraram em ação os F-86, isto já em 18 de janeiro, metralhando e bombardeando a floresta e a povoação de Cachil no norte do Como; seguiram-se ataques de P2V-5 na noite de 25 de janeiro; a FAP usou napalm pela primeira vez em 29 de janeiro durante um ataque de F-86 contra a Mara de Cassacá e a povoação de S. Nicolau, mas rapidamente se descobriu que o napalm era uma arma inapropriada contra alvos em áreas densamente florestadas, como veio a reconhecer o comandante da ZACVG, Coronel Francisco Delgado, no relatório que elaborou.

Havia uma necessidade imperiosa de continuar a progressão e usar material bélico apropriado. O governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues, ex-aviador naval, ajudou a conceber uma solução inovadora, os C-47 lançaram cargas de profundidade antissubmarinas, depois dos técnicos terem substituídos os detonadores por cargas de demolição subaquáticas. Em 1 de fevereiro, um C-47 lançou duas bombas de profundidade de 350 quilos sobre o Como e no dia 21, houve novo ataque descarregando bombas em Curco e na mata adjacente. Durante esta segunda missão, o bombardeiro improvisado foi atingido por fogo de superfície, mas regressou a Bissalanca com danos mínimos. O uso destas bombas improvisadas teria causado poucas baixas no PAIGC, mas as suas detonações massivas terão tido certamente um efeito psicológico desmoralizador no inimigo. O mesmo foi dito sobre os P2V-5, que voltaram à ação na noite de 28 de fevereiro bombardeando a Mata de Cassacá e a povoação de Catabão Segundo, seguido de uma incursão de Neptune à luz do dia no dia seguinte. Foram detonações tão fortes que tremeu o chão onde estávamos, como explicou o então comandante de fuzileiros. Apertou-se o cerco ao redor do produto da guerrilha, combinado com o assédio aéreo implacável, e daí a carta escrita por Nino a pedir reforços em termos frenéticos a outros comandantes da guerrilha. Finalmente, a resistência da guerrilha quebrou; à medida que se avançava em março, as forças portuguesas verificavam que havia menos contactos hostis. Quando a Operação Tridente terminou, em 24 de março, o PAIGC tinha retirado a sua última organização, deixando atrás as suas bases destruídas, tinham abandonado a sua estrutura de apoio militar e logístico para aquela região. Os pilotos da FAP registaram 1105 horas de voo em apoio à Operação Tridente. O ritmo das operações aéreas foi mais intenso durantes as fases iniciais da ofensiva. Durante os 71 dias da operação, houve 781 surtidas, transportaram-se cerda 1500 militares, dispararam-se 710 foguetes, lançaram-se 356 bombas e 40 mil cartuchos.

Obviamente que ocorreram importantes gastos, sobretudo nos helicópteros, registaram-se faltas de pneus e munição, a disponibilidade dos F-86 caiu para metade, dois Sabre ficaram parados por falta de peças sobressalentes. A operacionalidade dos meios aéreos foi crucial para apoiar a ofensiva terrestre, não se podiam usar viaturas no terreno e inicialmente o PAIGC tinha controlo nas vias navegáveis dos canais. O abastecimento das nossas tropas teve momentos críticos, houve mesmo aconselhamento de colher arroz nas ilhas e abater o gado local; as tropas também foram obrigadas a cavar poços para beber água, uma água salobra que levou a bastantes militares ficarem incapaz de combater, tiveram de ser evacuados quase um quinto das tropas terrestres. Na hora do balanço, as nossas tropas tiveram 47 feridos, 9 mortos, um total de 6 aeronaves foram atingidas pelo fogo do PAIGC. Embora a propaganda do PAIGC declarasse que tinha abatido 3 aviões portugueses, a única perda ocorreu no dia 23 de janeiro quando um T-6 pilotado pelo Alferes João Manuel Pité foi abatido perto de Cauane; os seus restos mortais carbonizados foram recuperados pelo mesmo pessoal que ele tinha estado a apoiar. Um outro piloto da FAP, Frederico Manuel de Machado Vidal morreu em 24 de fevereiro atingido na cabeça. O seu observador, o Sargento Pinto da Rocha – felizmente ele também aviador – teve que retirar o cadáver do piloto para operar a aeronave até aterrar em Bissalanca.

Apesar das perdas, a Operação Tridente foi inicialmente considerada um sucesso. O PAIGC teve que se retirar de uma das suas regiões onde estava mais ativo, perdeu 76 combatentes, teve 15 feridos e 9 prisioneiros; a captura de um guerrilheiro permitiu informações valiosas. No longo prazo, a Operação Tridente foi classificada a mais ingrata em toda a guerra colonial, um sacrifício inútil. Instalou-se um destacamento em Cachil, e a partir do verão de 1964, o PAIGC retomou as flagelações. O novo Governador e Comandante-Chefe, Spínola, ordenou a retirada da guarnição portuguesa, deixando aquela região abandonada, e o PAIGC propagandeou-a como zona libertada – transformou uma derrota tática em vitória estratégica.

No auge da batalha do Como, Amílcar Cabral reuniu 60 dos seus dirigentes militares e políticos para uma reunião que rapidamente se transformou em congresso, isto em território continental, em Cassacá, a poucos quilómetros do teatro de operações. Cabral e os outros dirigentes de topo estavam plenamente informados de graves irregularidades cometidas por alguns comandantes militares, havia mesmo fenómenos de tribalismo, foram denunciados crimes abomináveis e fugas de pessoas das zonas libertadas que viviam em estado de terror.

A reunião-congresso de Cassacá durou 7 dias, começou a 13 de fevereiro; foram adotadas medidas de longo alcance para procurar restaurar a unidade e a disciplina do partido; os dissidentes foram drasticamente punidos, entregues a tribunais populares, alguns deles foram executados, assim como aqueles que resistiram à prisão. Cabral impôs a primazia da política sobre as considerações militares, deu-se início à reorganização das Forças Armadas Revolucionárias do Povo – FARP, assente em três pilares, o Exército Popular, a Guerrilha Popular e a Milícia Popular. Criaram-se quadros militares especiais a pensar nas armas pesadas e nos canhões antiaéreos. Para garantir a disciplina política, Cabral fez aprovar uma estrutura de comando duplo, um oficial sénior das FARP exercia o controlo geral das operações de combate enquanto um oficial político assegurava que as atividades militares estavam em concordância com a estratégia delineada pela liderança do PAIGC.

Com a atenção concentrada nas operações do Como, naqueles primeiros três meses de 1965, o PAIGC aproveitou para se implantar no Morés, o que iria complicar as atividades operacionais portuguesas, a área controlava o tráfego rodoviário e fluvial no norte e oeste da Guiné. Não se deu pausa a esta implantação no Morés, a FAP teve presente, houve danos num Alouette II. De 22 a 26 de abril, decorreu a Operação Alvor, uma operação anfíbia na Península de Gampará, a FAP interveio, a operação foi bem-sucedida, limpou-se provisoriamente a península, fizeram-se 13 prisioneiros e estimaram-se 50 baixas. Alvor seria a última operação sob o comando do brigadeiro Louro de Sousa. No dia 21 de maio, o brigadeiro Arnaldo Schulz assumiu as funções de governador e comandante-chefe, considerado a quintessência da linha dura, chegou à Guiné proclamando que vinha vencer a guerra em seis meses, trazia a convicção de que seriam suficientes para tal tarefa mais homens e mais poder de fogo.

Um helicóptero da FAP operando num barco durante a Operação Tridente (Arquivo Histórico da Marinha)
Meios anfíbios usados na Ilha do Como (Arquivo Histórico da Marinha)
Aproximação da Ilha do Como, 15 de janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Forças portuguesas preparam assalto à tabanca de S. Nicolau (janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Uma imagem que mostra as dificuldades sentidas na Operação Tridente (Coleção Armor Pires Mota)
Uma imagem do Congresso de Cassacá, à esquerda de Amílcar Cabral está Nino Vieira, o comandante da frente Sul (Coleção Albert Grandolini)
Um destacamento das FARP, equipado com morteiros 60 mm chineses (Coleção Albert Grandolini)
Operações do PAIGC na região do Morés, janeiro-fevereiro de 1964 (Matthew M. Hurley)

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23928: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XV: Op Ebro, março de 1965, ajudando o BCAV 490 a reocupar Canjambari


Guiné > Região do OIo > Farim > Canjambari > c. 1969/71 > Foto do Carlos Silva, publicada a preto e branco no livro do Amadu Djaló, na pág. 115. O Carlos Silva foi fur mil arm pesa inf,  CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71).

Foto (e legenda): © Carlos Silva (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, terá sido o único, até agora dos nossos camaradas guineneses, que deixou em vida um livro com as suas memórias:  "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).

O Virgínio Briote (foto à direita), um histórico do nosso blogue, nosso coeditor jubilado, disponibilizou-nos o manuscrito da obra, em formato digital, no qual trabalhou, com o autor, durante cerca de um ano, com infinita paciência, generosidade, rigor e saber. Na prática, ele exerceu aquilo a que se chama nas editoras as funções de "copydesk" (editor literário). O livro nunca teria sido escrito, tal como o conhecemos em papel sem esse contributo essencial do Virgínio Briote: nascido em Cascais, frequentou a Academia Militar, foi alf mil cav em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (Jan-Mai1965);  fez o 2º curso de Comandos do CTIG; comandou o Grupo Diabólicos (Set 1965 / Set 1966); regressou em jan 1967; casado com a Maria Irene, professora do ensino secundário ref., foi quadro superior da indústria farmacêutica.



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.

A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


Amadu Djaló (1940-2015)

Recorde-se, aqui, o último poste desta série (*): O Grupo de Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola,  faz uma rápida incursão nas matas do Oio, a norte de Bissorã... Estamos agora en finais de março de 1965,  o Grupo vai participar na Op Ebro, destinada a recuperar o controlo de Canjambari, nas mãos do PAIGC,


A luta por Canjambari (pp. 115/118)

por Amadu Djaló 

Em Março [1] de 1965, saímos para o Norte, para Farim. Estavam a decorrer operações do Batalhão de Cavalaria 490, com o objectivo de ocupar a povoação de Canjambari, que até àquela altura era uma zona onde a guerrilha andava à vontade.

Saímos do aeroporto de Bissalanca num Dakota que nos levou para Farim. Daqui partimos em coluna, primeiro até Jumbembem e depois virámos à direita, até ao cruzamento de Canjambari, onde já estava uma companhia do batalhão a ocupar a povoação. Era só tropa, população não tinha nenhuma. Os únicos vizinhos que eles tinham eram os guerrilheiros do PAIGC.

Eram aproximadamente 13 ou 14h00, quando lá chegámos. A coluna não se demorou, deu logo a volta, de regresso a Farim. Entrámos na povoação fortificada e ali nos mantivemos até à hora de saída, que estava prevista para o anoitecer.

Não tínhamos que andar muito, o nosso objectivo era o acampamento de Tite Sambo, situado muito perto do quartel das nossas tropas.

Por volta das 20h00, arrancámos directos a Canjambari lojas. Eu era o primeiro homem do grupo. O alferes Saraiva mandou cortar à esquerda, para deixarmos a estrada que divide a pequena povoação ao meio. Desconfiávamos que a guerrilha tinha sentinelas na área das lojas de Canjambari.

Para a esquerda, para onde o alferes nos tinha mandado seguir, era só capim seco. Progredir num terreno assim era quase impossível manter o silêncio. Espaçámos os intervalos entre nós, sempre com a preocupação de caminharmos com o mínimo de barulho. Atrás da primeira loja, estava a travessia de um pequeno curso de água[2]. A ponte era uma prancha e no outro lado do riacho calculávamos estar o quartel-general de Samba Culo.

Quando cortámos à esquerda, redobrámos ainda mais os cuidados. A noite estava muito escura, não havia luar e o capim seco estava a dificultar-nos a marcha. Ainda não tínhamos acabado todos de entrar no capim, ouvimos uma sentinela, em crioulo, a perguntar alto:

- Quem está partir capim ali?

Parei logo e abaixei-me de vagar, até os meus joelhos tocarem no chão. Fui continuando a deslizar para o chão, até ficar de gatas. O alferes fez a mesma coisa, depois apoiou a G-3 nas minhas costas, apontando para a frente. A sentinela voltou a falar alto com alguém, que lhe perguntou o que se estava a passar. Ouvimos a resposta da sentinela. Que alguém estava a fazer barulho ali à frente, no capim. O outro, que estava na outra margem do riacho, disse para ele não fazer fogo ainda.

O alferes é que não obedeceu, disparou logo uma rajada e nós recuámos, a correr, atravessando a estrada para o outro lado.

Logo de seguida, começámos a ouvir tiros e rebentamentos na área do quartel. Estavam a atacá-lo. Mas o PAIGC não podia demorar, já sabia que havia militares fora do quartel, e poderia ter problemas no regresso. A flagelação não demorou muito, retiraram rapidamente, a correr, para irem receber os visitantes, que éramos nós e que também não os encontrámos em casa.

Passámos a noite ali. Por volta das 06h00, começámos a andar até ao local onde tinha havido o contacto com a sentinela. Atingimo-lo, havia ali vestígios de sangue, até na prancha da travessia do riacho.

A guerrilha devia estar, calculámos nós, a mais ou menos 200 metros. Ouvíamos a fala deles. O alferes disse que eles não sabiam que nós andávamos por perto e que era boa ideia ir ter com eles.

Então deu-me ordem e ao Cabo Cruz para nos mantermos ali em vigilância, no próprio local da travessia. Havia duas árvores de grande porte, a que nós na Guiné chamamos bissilão[3], uma atrás da outra.

Não sabíamos que o pessoal do PAIGC estava a observar os nossos movimentos. Eles estavam à espera que nós atravessássemos, tinham preparada uma emboscada do outro lado do ribeiro. A conversa em voz alta que eles estavam a ter, era de certeza um chamariz para nós atravessarmos e cairmos na emboscada.

A certa altura, deviam ser 07h00, fomos surpreendidos com rajadas. Um dos tiros bateu na árvore onde eu estava abrigado. Atirei-me para o chão e meti-me entre as raízes do bissilão. O fogo estava bem forte e eu interrogava-me como é que íamos agora sair dali.

Quando os tiros abrandaram, o alferes correu para junto de nós e deu-nos ordem de retirar daquele local. Corremos para junto do grupo, debaixo de fogo.

Os Comandos são treinados para não fazerem fogo à toa, cada bala é para abater um. Mas, desta vez, abrimos mesmo fogo de qualquer maneira, para tentar abrir o nosso caminho. Entretanto, o alferes pediu reforço à companhia. Não demoraram, chegaram em viaturas e o fogo abrandou, sem nós termos ido ter com eles e eles também não quiseram vir ter connosco. Abandonámos Canjambari Lojas e de seguida retirámos para o quartel.

Depois de dois dias de descanso em Canjambari, por volta das 20h00, saímos em direcção a Cunacó. Não tínhamos desistido da visita. O nosso objectivo era o mesmo. Nesta saída [4], com o Kássimo à frente, andámos a noite quase toda, mas atrasámo-nos muito. Como fomos sempre pelo caminho, a progressão teve que ser muito cautelosa por causa das minas.

Por volta das 06h00, fomos detectados mesmo à entrada da tabanca. Fugiram todos e nem tempo tiveram de soltar as cabras. Nós entrámos por um lado e saímos pelo outro, sem encontrarmos ninguém.

Trouxemos as cabras todas connosco e nesse dia tivemos ao jantar caldeirada de cabras.

Não descansámos muito. Na saída seguinte, saímos mais cedo do quartel de Canjambari, levávamos um prisioneiro cabo-verdiano, já idoso, amarrado como uma corda pela cintura. Marchava à minha frente, ligado a mim.

Fomos andando até às 02h00, mais ou menos, que foi quando atingimos o rio Canjambari. Quando parámos, o alferes deu-me instruções para eu atravessar primeiro e só depois de eu estar na outra margem, o grupo passava todo. Passei a corda do prisioneiro já não me lembro a quem e entrei na água do rio, cauteloso, a apalpar com os pés o lodo do fundo.

Quando estava quase a meio, não sei que bicho [5] foi que saltou com grande estrondo para a água. A maré que ele levantou molhou-me a cara. Passada a surpresa, comecei a movimentar-me para o lado contrário de onde eu vira a sombra do bicho a saltar para a água. Vi uma pequena clareira e só respirei fundo quando a atingi.

Ao meu sinal, o grupo entrou na água e veio ter ao local onde eu me encontrava. Nem deu tempo para sacudir a água do camuflado. Começámos logo a andar, até que por volta das 08h00, com o sol já muito alto, sem termos visto nada que nos desse uma indicação, o alferes resolveu retirar.

Foi uma saída, para deixar as nossas marcas na zona e para eles ficarem a saber que nós íamos aonde queríamos, disse o alferes. Durou uma noite inteira, muita água e um susto que apanhei com um bicho que ainda hoje não sei qual foi.

Regressados ao quartel de Canjambari, apanhámos lugar nas viaturas até Farim e daqui regressámos a Bissau, de avião.[7]


Notas do autor ou editor literário (VB)

[1] 26 Março de 1965.

[2] Rio Canjambari.

[3] A madeira do bissilão é uma espécie de mogno avermelhado.

[4] Nota do editor: 31 de Março 1965.

[5] Nota do editor: Jacaré? OU antes pequeno crocodilo, não há jacarés na Guiné [LG]

[6] Nota do editor: 11/12Abril de 1965.

[7] Nota do editor: 

A ocupação de Canjambari, operação "Ebro",  foi iniciada em 22 de Março de 1965.

“Os relatórios referem terem sido feitas várias acções no itinerário Jumbembem-Canjambari e na própria região de Canjambari. Apesar de levantadas numerosas abatizes, o referido itinerário ainda se encontra com algumas árvores de pequeno porte nas imediações da bolanha que dá acesso ao pontão danificado sobre o rio Tufili (dados obtidos através do reconhecimento aéreo de 17Mar65). Parece, este pontão, de fácil transposição desde que se utilizem pranchas adequadas.

Dos contactos com o IN a reacção deste tem-se limitado a flagelações de longe, não sendo de desprezar a possibilidade de o mesmo dispor, na região, de forças importantes e, eventualmente, colocar minas nos itinerários de acesso.

O objectivo das NT é proceder à ocupação permanente de Canjambari. Elaborado o plano para a acção, foram constituídas as forças executantes, comandadas pelo próprio Cmdt do BCav 490, Ten. Cor. Cavaleiro. Às 03H00 de 22Mar65 iniciou-se o movimento, a partir de Farim. Atingido Jumbembem às 04H20, a força executante prosseguiu, rumo a Canjambari.

À passagem por Sare Tenen, um Gr Comb da CCav 488 apeou-se, emboscando-se de seguida junto ao caminho que cruza o itinerário. A partir daqui a equipa de sapadores encarregada da detecção de minas passou a picar a estrada nos locais mais suspeitos. Apesar das precauções, às 06H15 e a cerca de 9 kms de Jumbembem, a GMC da frente da coluna calcou um engenho explosivo, ficando a parte posterior da viatura enfiada na cratera aberta pelo engenho. Os dois homens que nela se deslocavam foram projectados, não tendo sofrido ferimentos de maior.

Passados cerca de 500 metros encontrou-se a 1.ª de uma série de cerca de 30 abatizes, algumas de grande porte, que se espalhavam numa extensão de quase 4 kms, até 1 km e meio de Canjambari Morocunda, que só foi atingida já passava das 12H00. O esgotante trabalho de levantamento de abatizes durou cerca de 5 horas e meia, sob constantes flagelações do IN, que utilizou metralhadoras pesadas e morteiros. As medidas de segurança adoptadas, apesar da extensão da coluna de 30 viaturas pesadas, revelaram-se eficazes, porquanto o IN nunca conseguiu aproximar-se de modo a causar baixas às NT”.

 (…). Ultrapassada a zona das abatizes, a coluna prosseguiu deixando um GrCombate emboscado a dois quilómetros do cruzamento de Canjambari Morocunda. Atingiu-se a povoação de Canjambari, com o IN a assinalar a entrada das NT com tiros à distância, disparados da margem sul do rio Canjambari.

Tabanca revistada, os indícios apontavam para uma retirada apressada. As casas comerciais deixaram indícios de movimento recente, praticamente até momentos antes da entrada das NT. Pelas 15H00, a coluna regressou ao cruzamento de Canjambari Morocunda. Deu-se então início aos trabalhos de instalação e organização do terreno em volta do edifício do Posto de Socorros aí existente.

Informações posteriores revelaram que o IN tivera conhecimento antecipado da acção e que tivera mesmo tempo para receber reforços de Morés e de Mansodé, que se mantiveram na zona dois dias à espera das NT, regressando mais tarde às suas bases, por coincidência no mesmo dia do início da operação das NT.” (**)
___________

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23783: Fichas de unidades (28): BCAV 490 (Bissau e Farim), CCAV 487 (Farim), CCAV 488 (Jumbembem), e CCAV 489 (Cuntima), 1963/65


(Tem 117 referênias no nosso blogue)

Identificação BCav 490

Unidade Mob: RC 3 - Estremoz

Cmdt: TCor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro

2.° Cmdt: Maj Cav Alexandre António Baía Rodrigues dos Santos | Maj Cav Raul Augusto Paixão Ribeiro

OInfOp/Adj: Cap Cav Domingos Vilas Boas de Sousa Magalhães

Cmdts Comp:

CCS: Cap Cav Luís Augusto Rodrigues de éarvalho | Cap Cav Luís Alberto Paço Moura dos Santos | Cap Cav João Luís Moreira Arriscado Nunes | Cap Cav Manuel Correia Arrabaça
Cap SGE António Joaquim Marques

CCav 487: Cap Cav António Varela Romeiras Júnior | Cap Cav Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

CCav 488: Cap Cav Fernando Manuel Lopes Ferreira | Cap Cav Manuel Correia Arrabaça | Ten Cav Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás

CCav 489: Cap Cav António Ferreira Cabral Pais do Amaral | Cap Cav João do Nascimento de Jesus Pato Anselmo |  Cap Mil Cav António Tavares Martins

Divisa: "Sempre em frente"

Partida: Embarque em 17Ju163; desembarque em 22Jul63 | Regresso: Embarque em 12Ago65

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, permaneceu em Bissau em função de intervenção, com duas subunidades em reforço do BCaç 512, a partir de 2ago63, por rotação, a fim de actuarem intensivamente na região de Óio-Morés e Mansoa.

De 14jan64 a 24mar64, assumiu o comando das forças terrestres da  Op Tridente, realizada nas ilhas de Como, Caiar e Catunco, reforçado com outras subunidades, incluindo fuzileiros especiais e paraquedistas.

Em 23mai64, seguiu para Farim a fim de preparar a organização, deslocamento e instalação das forças no Sector C3, mais tarde, Sector 02, então criado e cuja área se encontrava incluída do antecedente na zona de responsabilidade 
do BCaç 512. 

Em 31mai64, assumiu a responsabilidade completa do referido sector, com a sede em Farim que abrangia os subsectores de Cuntima, Jumbembém, Bigene e Farim e a partir de 29jun64 o de Binta, então criado.

Em 25mar65, instalou forças para ocupação da povoação de Canjambari, no seu sector, tendo as suas subunidades ficado integradas no seu dispositivo e
manobra do Batalhão, a partir de 31Mai64.
 
O batalhão continuou a desenvolver assinalável actividade operacional de reconhecimentos, emboscadas, batidas, abertura e protecção dos itinerários e
acções sobre grupos inimigos.

Destacam-se, pelas baixas causadas e pela captura de bastante armamento e outro material, as operações "Jocoso", "Vouga" e "Invento", entre outras.

Dentre o armamento capturado mais significativo, destaca-se uma metralhadora
ligeira, 19 pistolas-metralhadoras, 36 espingardas, 10 minas e 9145 munições de armas ligeiras.

Em 15Jun65, foi rendido no Sector 02 pelo BArt 733 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso, tendo ainda destacado nesse período alguns efectivos das suas subunidades para segurança e protecção dos meios de travessia do rio Cacheu, em S. Vicente.

***


A CCav 487, enquanto na função de intervenção, foi empregada em diversas operações nas regiões de Encheia, Fajonquito, Bissorã e Morés, em reforço de outros batalhões e, integrada no seu batalhão, na Opperação Tridente, atrás referida.

Em 11Mar64, seguiu para Farim a fim de substituir a CArt 640 na função de subunidade de intervenção e reserva do sector, inicialmente na dependência do BCaç 512 e depois do seu batalhão. 

Em 15Ju165, após curto período na dependência do BArt 733, foi substituída em Farim pela CArt 731 e recolheu então a Bissau a fim de se integrar novamente no seu Batalhão até ao embarque de regresso.

***

A CCav 488, enquanto na função de intervenção, foi empregada em diversas operações nas regiões de Mansoa, Cutia, Bissorã e Morés, em reforço do BCaç 512 e, integrada no seu batalhão, na Op Tridente atrás referida.

Após deslocamento por Bafatá, Cambajú, Canhamina e Sitató, ocupou e instalou-se em Jumbembém em 31mai64, assumindo a responsabilidade do espectivo subsector e ficando integrada no dispositivo e manobra do seu
batalhão.

Em 06Jun65, foi rendida pela CArt 730, tendo recolhido seguidamente a Bissau com o seu batalhão e onde se manteve até ao seu embarque de regresso.

***


A
 CCav 489, enquanto na função de intervenção, foi empregada, com base emMansabá, em diversas operações efectuadas nas regiões de Mansabá, Bissorã e Morés, em reforço do BCaç 512 até 27dez63 e, integrada no seu Batalhão, na
Op Tridente,  atrás referida, tendo ainda sido atribuída temporariamente
ao BCaç 236 e depois ao BCaç 600 para colaborar na segurança e protecção das
instalações da área de Bissau, de 03Set63 a 210ut63, a fim de colmatar a saída
da CCaç 154.

Após deslocamento conjunto com a CCav 488 até Sitató, instalou-se em Cuntima em 31mai64, onde substituíu forças da CCaç 461 e da 1ª CCaç, assumindo a responsabilidade do respectivo subsector, então criado e ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 6jun65, foi rendida pela CArt 732, tendo recolhido seguidamente a Bissau com o seu batalhão e onde se manteve até ao seu embarque de regresso.

Entretanto, a partir de 13jun65, dois pelotões estiveram temporariamente deslocados em Bula, em reforço do BCav 790, por períodos de 10 a 15 dias, com
vista à realização de patrulhamentos e contactos com as populações da região de
S. Vicente.

Observações  - Tem História da Unidade (Caixa n." 127 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 253/255


Imagens: Cortesia de Coleção de Brasões, Guiões e Crachás de Carlos Coutinho (2009)
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Nota do editor:

Último poste da série > 17  de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23714: Fichas de unidades (27): 1.ª CCAÇ/CCAÇ 3 (Bissau, Nova Lamego, Farim, Barro, Guidaje, Bigene, 1961/74)

sábado, 12 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima


 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c. 1969/71 >  Edifício onde funcionou o comando e o posto de socorros, no tempo da CCav 489 /BCav 490 (1964/1965). 



 Guiné > Região do Oio > 
Cuntima > c- 1969/71 > A “avenida do Senegal”.



 Guiné > Região do Oio > Jumbembem > c- 1969/71 >  Aspecto da tabanca



 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c- 1969/71 > Farim > Edifício do comando do Batalhão de Cavalaria 490

Fotos gentilmente cedidas pro Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). Publicadas no livro a preto e branco.


Dispositivo do BCav 490: Farim (CCAV 487), Jumbembem (CCAV 488( e Cuntima (CCAV 489)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

 


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, antes de completar os 75 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição. 

Recorde-se, aqui o último poste:  o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) está em Farim, colocado na 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), no segundo semestre de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim (onde esteve cerca de um ano; em meados de 1964, pediu transferência para a CCS / QG, em Bissau).  Mantemos a ortografia original.  Chame-se  atenção para  os seguintes factos : (i) o Amadu, ainda soldado condutor autorrodas,  sofre as primeiras emboscadas e vê com humanidade o primeiro morto do PAIGC: (ii) ainda está  equipado com a velha Mauser...
  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



Com a 1ª CCAÇ, em  Farim,  em 1963/64

(pp. 71-80)

por Amadu Bailo Djaló


(i) Com o BCav 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro,  em Farim


    Ieró Codi, Régulo da tabanca de Lambam, na fronteira com o Senegal, ao verificar que o PAIGC se estava a implantar em toda aquela zona fez uma petição ao administrador solicitando a sua intervenção no sentido de abandonar a tabanca com as suas gentes e haveres. 

O administrador dirigiu-se ao comandante do BCav 490  [1], o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, a quem colocou o pedido do Régulo Ieró Codé. O tenente-coronel determinou o cumprimento da missão ao capitão [2], comandante da CCav 487 [3], e à 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Preparámos as viaturas. Como não tínhamos carros suficientes, solicitou-se aos comerciantes de Farim a cedência de alguns carros, pedido que foi aceite, solicitando eles, apenas, que os seus condutores fossem dispensados, já que alguns eram idosos e outros muito jovens e sem qualquer preparação militar. Foram substituídos por condutores militares.

No meu caso, recebi a indicação de ir à Ultramarina buscar uma viatura.

–  Olha, o carro está bom. Mas tem um problema. Quando o sol está muito forte, o diafragma cola e o motor vai-se abaixo. Assim, eu costumo levar água para molhar a bomba manual e, pouco tempo depois, o motor pega. Vai parando, de vez em quando e molhando a bomba, chegas ao destino –  disse-me o condutor da Ultramarina.

Verifiquei o óleo e levei o carro para o quartel, para o atestar e fui aguardando a chegada dos outros colegas. Preparada a coluna, arrancámos. Tinha-se sentado ao meu lado um jovem, de baixa estatura, que eu nunca tinha visto, nem tão pouco sabia quem era. Imaginava que fosse algum colega da caserna.

Iniciada a marcha, com o sol a pique e o calor a queimar, a certa altura parei, lembrando-me da recomendação do motorista do comerciante. Saí do carro, molhei a bomba e reparei que o meu companheiro sorria. Novamente pus o motor em funcionamento, retomei a marcha até nova paragem para proceder a novo refrescamento da bomba. Com todas estas interrupções, a viagem até estava a ser pouco aborrecida.

À quarta paragem já me encontrava um bocado irritado e gritei para mim:

–   Porra para isto! Nem parece um carro, isto é um caco!

 –  Vamos voltar a molhar a bomba –  disse-me o tal companheiro.

Novamente molhada a bomba, minutos depois o motor voltou a pegar e retomámos a marcha. O que valia é que o caco, depois de arrefecer uns minutos acabava mesmo por voltar a pegar. E o jovem ao meu lado, sempre calado. A partir daqui, sempre que o motor ia abaixo, era o meu colega de viagem que dizia para molharmos a bomba e ocasiões houve que era ele que saía primeiro. Esta odisseia autêntica só parou, quando finalmente chegámos à tabanca de Lambam.

Começámos a carregar a viatura com caixotes, malas, alimentos, animais e, no fim, mandámos as pessoas subir. Tudo pronto, preparámo-nos para o regresso a Farim.

Voltaram as paragens, só que agora eram mais frequentes. A linguagem que eu usava, já sem paciência nenhuma, era linguagem de tropa, enquanto o meu companheiro mantinha a mesma postura, nada dizia, a não ser "vamos molhar a bomba", quando o motor parava. À última paragem, já com Farim quase à vista, eu já não podia mais, estava desesperado. E já não tinha água.

 –  Porra para esta merda! E agora? 

E o companheiro, ao lado:

 –   Vamos molhar a bomba.

 –   Como, pá? Não temos água, porra!

  –   Olha, se alguém ainda tiver um cantil com água que traga.

Apareceu um furriel europeu que passou um cantil para as mãos do meu companheiro. Naquela altura, disse para os meus botões:

  –   Quem será este gajo que vem ao meu lado? Às tantas é para aí um furriel, colega do outro do cantil!

Molhámos a bomba e logo o carro começou outra vez a funcionar.

 –   Se calhar, é melhor deixar aqui o cantil.

Chegámos finalmente à vila e começámos logo a descarregar os materiais que trazíamos. Eu estava exausto, deixei-me ficar sentado um pouco.

Entretanto, Paté, irmão do Régulo Iero, que era cipaio da administração civil, aproximou-se e começou a conversar com o meu companheiro.

 –  Amadu  –   ouvi chamar. Era o Régulo Ieró.

 –   Que é?  – perguntei.

  –  O capitão não está por aí?

Procurei com a vista e não vi nenhum capitão.

  –  Não, não está aqui capitão nenhum   –  respondi.

Paté, ao ouvir a minha resposta, perguntou:

 –   O que é que ele quer?

 – Anda à procura do capitão!

Paté, espantado com a minha resposta:

 –  Então, o capitão não está ao teu lado?

 –  Mas este é que é o capitão? Mas este é que é o capitão?

  –  Sim, esse é o capitão.

Esta conversa estava a ser trocada em fula. Até tremi, de repente assustei-me. Senti vontade de desaparecer com a vergonha. Paté, vendo-me meio desorientado, gritou para o irmão:

 –   Olha, o capitão está aqui.

O capitão não se apercebia da conversa, porque a linguagem era fula.

 –   Como sabe, nosso capitão, ficou gente e haveres ainda na tabanca. Se dormirem lá, é certo que o PAIGC vai lá buscá-las ou até destrói a tabanca.

  –   Não, não fica lá ninguém, nós vamos lá buscar tudo o que falta  – respondeu o capitão.

Formámos novamente a coluna, tendo o capitão tomado novamente o meu carro, sentando-se ao meu lado.

Durante esta segunda viagem, como o sol já não estava tão forte, o carro só parou três vezes pelo caminho. A certa altura, o capitão começou a fazer-me perguntas:

 –   Qual é a tua tribo?

 –   Futa-Fula, meu capitão.

 –  Ah, vejo pelo sinal ao canto dos olhos!...  E de onde és?

 –  De Bafatá, meu capitão.

 –  Qual era a tua ocupação na vida civil?

 –  Comerciante, meu capitão.

 –  E quando assentaste praça?

 –   1962, meu capitão.

 –   Aprendeste a conduzir na tropa, foi?

 –  Sim, senhor, meu capitão.

  –  Estás a ver como a tropa é boa?

 –  Estou, sim, meu capitão.

Chegados à tabanca, carregámos o que faltava e as pessoas que tinham ficado e iniciámos a viagem de regresso que decorreu sem problemas. Chegados a Farim, o Capitão Cidrais, assim se chamava o meu companheiro de viagem, dispensou os condutores que estivessem livres, menos a mim. Logo pensei que ia haver uma conversa sobre a linguagem que tinha usado na primeira viagem. Terminado a descarga, o capitão voltou a sentar-se a meu lado e mandou seguir para a 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Parámos frente à porta do gabinete do capitão, comandante da 1.ª Companhia de Caçadores. Apeou-se e dirigiu-se para o gabinete, enquanto eu preenchi o boletim da viatura.

Pedi licença e entreguei o boletim ao meu comandante, que logo me perguntou:

 –   O que vais fazer agora?

 – Vou aproveitar para me deitar cedo, porque amanhã tenho que ir acarretar água muito cedo, meu capitão.

Ouvi o Capitão Cidrais dizer:

 –   Olha, gostei de andar com este condutor. Quando voltar a precisar de um, vou pedir-te que mo dispenses.

O tempo foi assim decorrendo até que iria surgir a oportunidade para pedir transferência para Bissau.

Mas antes, aconteceu novo ataque do IN, que foi mais forte e durou mais tempo que o primeiro. Nesse dia estava marcada uma sessão de cinema ambulante, era um filme de música e dança, que não era muito do meu género, eu apreciava mais filmes de acção e policiais. Vi os cartazes e não comprei bilhete. Regressei ao quartel. 

Estava já a dormir bem, quando acordei com estrondos de rebentamentos e barulho de tiros. Parecia que a vila de Farim se encontrava toda debaixo de um fogo cerrado e, quem sabe, já sob o controlo dos assaltantes. Em correria muito rápida dirigi-me para os abrigos, onde me mantive enquanto durou o ataque, que demorou cerca de duas horas.

Durante o tempo em que estive em Farim, o PAIGC efectuou três ataques à povoação, sem consequências pessoais, causando apenas alguns danos em casas da tabanca.

Terminadas as saídas para Bricama, em virtude do desaparecimento da ponte pela sabotagem pelo fogo, nunca mais patrulhámos aquela zona, só lá passávamos quando nos deslocávamos em coluna para Cuntima ou Jumbembem.

A cadeia começou a receber prisioneiros para averiguações, alguns que viemos a ter provas de serem colaboradores da guerrilha. À noite, quando saíamos, às vezes víamos pessoas a entregarem maços de cigarros para os familiares detidos. Normalmente eram raparigas, filhas, irmãs ou sobrinhas dos prisioneiros, algumas das quais andavam com alguns colegas nossos. E certamente não se iriam esquecer, quando fossem libertados de que os tratámos humanamente.

Numa ocasião dessas ocorreu uma situação que me fez sofrer. Uma manhã, no quartel, quando eu estava a encher o depósito de água, aproximou-se de mim um prisioneiro cabo-verdiano [4], jovem ainda.

– Podia levar uma carta para o meu tio?

 –  Para quem?

 –  Para meu tio.

 –  Quem é o teu tio?

 –  É Pedro Sitató.

 –  E onde está a carta?

 –  Não a tenho comigo.

 – Conforme, vamos a ver.

À hora do almoço, do mesmo dia, o rapaz cabo-verdiano entrou no refeitório, passou pelas mesas todas até chegar junto à minha.

– Está aqui a carta. 

E retirou-se, sem mais nada. O que ficou foi uma impressão nos meus colegas e no sargento de dia, que estava perto de mim, que havia qualquer coisa combinada entre mim e o prisioneiro. E ouvi colegas segredarem:

 – Para quem é a carta?

Não fiquei muito satisfeito com a ideia que ficou no ar e dirigi-me à caserna e fui ler a carta, que estava dentro de um envelope aberto. Era uma carta simples, a pedir ao tio que o tirasse da prisão, porque ia ser incorporado em janeiro próximo. Mais nada. E então dirigi-me à messe de oficiais, para a entregar ao meu capitão.

 – Meu capitão, tenho aqui uma carta que um prisioneiro me pediu para entregar ao tio.

  –  Isso é com o oficial de informações   –  respondeu-me.

O oficial de informações era o tal alferes, que me tinham dito,  meses antes, ser sobrinho do actual Governador, brigadeiro Arnaldo Schulz, e que anteriormente, não tinha revelado grande simpatia por mim.

Um pouco receoso da reacção dele, fui procurá-lo ao gabinete e, pedindo-lhe licença, disse-lhe:

– Meu alferes, é um prisioneiro que quer mandar esta carta a um tio dele.

– E quem te mandou receber a carta?

– Meu alferes, recebi a carta para alguém não a levar e poder vir aqui entregá-la.

– Põe-na aí!

No dia seguinte chamaram-me e fui ter com um furriel, que estava na parada com uma secção de soldados.

 – O teu carro ainda tem água?  – perguntou.

 – Ainda tem para aí metade.

Deu ordens à secção para retirar a água toda da minha viatura e, depois de retirados todos o bidões, mandou-nos colocar sacos de serapilheira, vazios, e ir enchê-los de areia a Morocunda, onde havia muita.

Regressámos a Farim, com a minha viatura recoberta com sacos de areia e que iriam afinal servir para abrir as colunas, como "rebenta minas".

(ii) Emboscadas entre Farim e Cuntima

Saímos do quartel da 1ª CCaç em coluna formada por quatro viaturas. A minha, cheia de sacos de areia, e as outras três para serem carregadas de géneros e militares para a necessária segurança, com destino a Jumbembem e Cuntima, mesmo na fronteira com o Senegal.

Antes de partirmos apresentámo-nos na CCav 487, que era comandada pelo capitão Cidrais, e que era o responsável pela missão de trazer o pessoal da CCav 488, do BCav 490, que estava em Cuntima e deixá-los em Jumbembem que, até à data, não tinha tropa.

Em finais de maio de 1964, em dia que já não recordo [5], arrancámos pelas 7h00 da manhã, com a minha viatura à frente. Oito ou nove quilómetros percorridos, deparei-me com uma árvore abatida para o lado oposto à estrada. Alguém a terá acarretado para ali e decidi não parar, mantendo a marcha, uma vez que podia passar. Ocorreu que podia estar ali montada uma emboscada, mas continuei em frente. Cem metros adiante, outra árvore atravessava a estrada de um lado a outro. Desta vez, tive mesmo que parar. Atrás da minha viatura seguia a viatura das transmissões, comandada por um furriel europeu, que logo me gritou:

–  Que é que se passa?

 – Árvore na estrada, meu furriel!

O capitão, depois de observar o local, mandou-me arrancar com o guincho uma árvore seca que se encontrava ali, do lado direito, para abrir uma passagem. Continuámos e cerca de uma centena de metros à frente, antes de descermos uma pequena rampa, avistámos várias árvores, quinze, contámo-las, abatidas, cortadas propositadamente para impedir a passagem.

Agora é que eu não via meio de passar. O capitão decidiu enviar as últimas viaturas a Farim, para trazerem serras mecânicas.

Esta paragem durou muito tempo. Enquanto ficámos na mata a aguardar que as viaturas chegassem com o material, fomos sobrevoados por uma Dornier, que perguntou ao capitão se havia tropa ao fim da rampa. Que não, nós estávamos ainda na parte de cima, não tínhamos ainda começado a descê-la. E avisaram:

– Então cuidado, estamos a ver movimento de pessoal perto do local onde vocês estão.

Chegadas as viaturas, procedemos ao corte das árvores. Eram enormes, as serras não davam conta do trabalho. O capitão pediu-me que tentasse abrir uma passagem através da mata, o que consegui fazer. Aberta a picada, retomámos a marcha até que chegámos a Jumbembem sem mais atrasos. Deixámos ali viaturas com géneros e um pelotão de segurança e sem perder tempo abalámos para Cuntima.

Jumbembem e Cuntima eram duas povoações ligadas entre si por uma estrada de cerca de quinze quilómetros e a paisagem era mais aberta, com poucas árvores.

Chegados a Cuntima, outra vez sem grande demora, descarregámos o que havia para descarregar. A noite era boa para as emboscadas, por isso não era conveniente demorar muito para podermos fazer o percurso de regresso, ainda durante o dia.

Embarcado o pessoal da CCav 488, que estava destacado em Cuntima, iniciámos o regresso a Jumbembem, onde deixámos os militares, que ficaram a ocupar a antiga serração, enquanto nós prosseguimos a marcha de regresso a Farim.

Entre Jumbembem e Farim, na zona da rampa, onde começava a mata cerrada, vi grande quantidade de fumo a sair de um ajuntamento de lenha.

Parei e gritei para trás:

– Fumaça!

Um pelotão saiu e foi espalhar a lenha para desfazer a fogueira. Quando entrámos na picada, começámos uma ligeira subida e, de um momento para o outro, as viaturas que me seguiam ficaram debaixo de fogo. A minha viatura, talvez por ter apenas o condutor, passou. Peguei na minha Mauser, saltei da viatura e abriguei-me. A nossa resposta foi pronta e livrámo-nos sem problemas.

Tivemos ainda mais uma flagelação até à última emboscada, esta sim, bem mais séria. Apesar de estarmos prevenidos e da nossa resposta, sofremos um ferido muito grave [6] e vários feridos. O fogo acabou da mesma forma como começou, de um momento para o outro.

Dias depois, nova saída para Cuntima, comigo e a minha viatura à frente, como “rebenta minas”. Viajámos de noite, contra o que era costume, a coberto da escuridão e com ordem para não acender as luzes. Eu ia sozinho no meu carro, tentando respeitar a ordem, o que me tornava a condução muito difícil. Ia um pouco apreensivo e a condução estava a pôr-me cansado. Nunca até então tinha conduzido em tais condições, uma situação de arrasar os nervos. Por vezes, não sabia se devia voltar para a direita se para a esquerda, conduzia à sorte, quase só com a luz dos meus olhos, ou seja, quase às cegas.

Uma vez ou outra não resisti, acendi as luzes, por breves instantes. Andámos muito devagar e chegámos a Cuntima só ao amanhecer.

Na ida, não tivemos contacto com o inimigo, mas não aconteceu o mesmo no regresso. Fomos flagelados várias vezes, ao longo do trajecto, e lá nos fomos desenrascando com mais ou menos perícia. Isto é, eu acho que foi com perícia, porque não sofremos nem mortos nem feridos, o que não aconteceu ao PAIGC que teve, pelo menos, um morto, que foi o primeiro guerrilheiro que eu vi a morrer em combate.

Era um jovem, talvez com menos de 20 anos, sem camisa, de calções e descalço, com um barrete amarrado à cabeça por uma fita de pele de carneiro. Vi-o a ser arrastado pelo soldado Paulista Solda [7], da CCAV 487. Estava morto.

Durante a minha permanência em Farim, a povoação sofreu três ataques. A abrir colunas, como “rebenta minas”, em colunas de reabastecimentos, em patrulhamento ou em simples observação, sofri várias emboscadas, algumas em que fomos apanhados em terreno aberto e sem grande possibilidade de defesa. Posso dizer que a sorte andou comigo.

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Notas do autor Amadu Djaló /ou do editor Virgínio Briote:

[1] O BCav 490, comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, tinha estado no Sul, na Op Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 70 e tal dias seguidos, abarracados na ilha do Como, a comer enlatados. Regressara de lá arrasado, cheio de hepatites, com os pelotões reduzidos a metade. Depois, o Batalhão foi colocado em Farim e dispôs-se em quadrícula com uma companhia, a CCav489, em Cuntima, na fronteira com o Senegal, a CCav488 em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim e a CCav 487 em Farim.

[2] Capitão de Cavalaria Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

[3] Chegada a Farim em 11 Março de 1964

[4] Depois de solto, foi incorporado no Exército e cumpriu comissão em Bafatá, no esquadrão de Cavalaria. É DFA e vive em Lisboa.

[5] Em 31 Maio de 1964, conforme História do BCav 490.

[6] João Félix Pereira dos Santos, Soldado Apontador de Morteiro, da CCav 487, evacuado para o HM 241 onde morreu 7 horas depois, ou seja, em 1 junho 1964. Condecorado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

[7] Participou na Op Tridente, integrado no Grupo de Comandos, tendo sido agraciado em 5 junho de 1964 com a Cruz de Guerra de 4ª Classe.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963