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domingo, 20 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)



REFLEXÃO EXTEMPORÂNEA ENTRE DOIS COPOS

adão cruz

Todos aqueles que já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Um copinho de tintol, ou mesmo de branco fresco, nestes dias de verão, é uma bênção do céu, admitindo que existe Céu.

Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há mais de mau do que de bom, o suficiente para levar à extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que equilibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que lubrifica os nossos canais neuronais. Quem quiser que acredite, quem não quiser acreditar que beba água. Sem pretender colidir com a maravilha, com a ética e a estética da existência, penso que um copinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra, poderemos olhar o infinito e sentirmo-nos capazes de reconhecer a merda que somos.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

terça-feira, 30 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24352: (In)citações (243): "Pequena REFLEXÃO sobre a obra de Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Pequena REFLEXÃO sobre a obra de Arte

adão cruz

A obra de arte, seja qual for a forma de expressão, em nossa opinião deve procurar libertar-se, tanto quanto possível, do meramente sensorial, por mais figurativa que seja. A sua intrínseca e mágica natureza confere-lhe, fundamentalmente, um delicado papel de estímulo, mais ou menos poderoso, que pode levar a pessoa que a lê, que a ouve ou contempla, a libertar-se da escuridão e da hibernação, a desnudar-se, a revelar-se a si própria e a conhecer-se melhor. Quem vive uma obra de arte, poderosa expressão da essência humana, está constantemente a aprender uma experiência vivencial que não faz parte dos nossos padrões habituais de reflexão. E pode, se o estímulo e a sensibilidade tiverem a força necessária, permitir a sorte de nos alcandorar a instâncias onde reside um prazer único da fruição estética.

O sentimento artístico e o sentimento poético fazem parte da essência e do sumo da vida. Se ambos estes sentimentos existissem de forma construída e profunda dentro de nós, o mundo não seria tão cruel, a racionalidade não seria truncada, a verdade não seria mentida, a consciência não seria vendida e o Homem não seria caminho para a destruição.

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24348: (In)citações (243): "REFLEXÃO sobre a matéria e a vida", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 28 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24348: (In)citações (243): "REFLEXÃO sobre a matéria e a vida", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


REFLEXÃO sobre a matéria e a vida

Todo o indivíduo está envolvido em sistemas de redes culturais e sociais que têm uma profunda influência no ser e no saber dos próprios indivíduos, criando identidades, visões do mundo e das coisas, convicções culturais e sentimentos muito diversos. Na metafísica tradicional, todos os níveis “superiores” estariam para além da física e da matéria. Estes pensamentos metafísicos constituíram formas interpretativas que os homens mais sábios foram dando às suas experiências mentais, também ditas espirituais. À medida que a Ciência da Evolução se desenvolve, novos horizontes são usados para contextualizar e remodelar o saber, através dos resultados científicos das experiências modernas. Em minha opinião, todas as mentes racionais e lúcidas foram progressivamente abandonando as interpretações metafísicas, por incongruentes e desnecessárias, e por não conseguirem qualquer sustentação perante o juízo do pensamento moderno.

O conhecimento dos fantásticos mediadores de toda o nosso mundo neurobiológico, os biliões de circuitos neuronais e sinápticos, a admirável neuroplasticidade cerebral, a poderosa aceitação de um prometedor conhecimento da construção da mente e da consciência não estavam disponíveis para os antigos. É de crer que os grandes metafísicos da altura, se hoje fossem vivos, dedicariam os seus estudos à neurobiologia, à neurofisiologia e às neurociências em geral. As realidades “metafísicas” dos sábios dos nossos tempos, são, na realidade, intrafísicas. Não estão acima da matéria nem para lá da natureza, isto é, não são nem imateriais nem sobrenaturais.

As tradições culturais sempre consideraram que os estados mentais, tidos como fenómenos “superiores” à matéria (emoções, sentimentos e consciência) estavam excluídos dos sentidos exteriores. Hoje, parece inevitável a aceitação de que eles resultam de uma íntima e indissociável interacção entre o todo corporal e o cérebro, através de um admirável mundo de moléculas químicas e vias nervosas. Hoje, parece inevitável aceitar que a matéria não é o degrau inferior da existência, mas o todo da existência, contendo na sua estrutura as potencialidades evolutivas do ser humano, desde as formas mais primárias das pró-emoções e pró-sentimentos que conduziram ao que hoje denominamos de “esfera psíquica”, obviamente não exclusiva do Homem. Embora possamos imaginar precursores do comportamento das moléculas e dos átomos, é extremamente difícil, à luz do conhecimento e da razão, aceitar qualquer processo anterior comparável ao iniciar da vida.

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24331: (In)citações (242): "REFLEXÃO sobre o complexo caminho da simplicidade da Evidência", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 21 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24331: (In)citações (242): "REFLEXÃO sobre o complexo caminho da simplicidade da Evidência", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO sobre o complexo caminho da simplicidade da Evidência

adão cruz

Não é fácil percorrer o complexo caminho da simplicidade da Evidência que anda por aí, em muita coisa. O medo da Evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo em pessoas familiarizadas com a Cultura Científica da Evidência. Estas, ainda assim, as pessoas de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da Evidência que não conseguem negar. O mundo é muito claro, até onde nos permite que o seja.

O sobrenatural continua a ser um grande problema, com a maioria das pessoas a serem incapazes de o resolver, incapazes de rever a equação cujo resultado estabeleceram como certo sem conhecerem os dados que a compõem. Nunca até hoje, o sobrenatural teve qualquer Evidência Científica a comprová-lo.

Dogmas e argumentos condicionados, não sendo permeáveis à razão, só podem levar a conclusões frustrantes. O sobrenatural, tantas vezes aterrorizador, entrou na minha cabeça à força da destruição da razão e do entendimento, perpetrada por mentes ignorantes que me assaltaram a infância e adolescência. Essa parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, à luz da Evidência possível, fazer a comparação entre a falsa liberdade da enganadora felicidade do obscurantismo e a aliciante liberdade da real felicidade de uma razão, não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice. É muito difícil quebrar as grilhetas de um pensamento fortemente colonizado, mas a força projectiva da curiosidade humana que leva ao complexo caminho da simplicidade da Evidência é a única força capaz de nos libertar de todas as constritoras angústias metafísicas. Foi essa libertação que me trouxe a paz e a serenidade de uma total descrença mística, uma das melhores prendas que a vida me deu.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24313: (In)citações (241): "Reflexão (Ainda sobre a poesia)", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 14 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24313: (In)citações (241): "Reflexão (Ainda sobre a poesia)", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO (Ainda sobre a poesia)

adão cruz

Dizia Daniel Barenboim, que a música não é o som. Todos sabemos que a música se exprime através do som, mas o som, em si mesmo, não é música, é apenas o meio através do qual se pode transmitir a mensagem da música. Todos conhecemos as notas musicais, todos somos capazes de as dedilhar nas teclas de um piano, mas daí à música vai um abismo. Todos conhecemos as letras e as palavras, todos somos capazes de juntar palavras e com elas comunicar, de forma mais ou menos primária, mas daí a fazer arte literária vai um abismo.

Todos nós possuímos no nosso cérebro o mesmo esquema neural do sentimento, já que é o esquema neural da nossa espécie. Mas o padrão neural do sentimento, o padrão sentimental de cada um, que vai encaixar no nosso esquema neural, é completamente diferente em cada um de nós. Todos, de uma maneira geral, temos o mesmo esquema de vida, mas os nossos padrões de vida são diferentes, desde a camisa à profundidade do nosso íntimo.

Cada um de nós vai criando os padrões dos seus próprios sentimentos, através de uma curva de vivência e aprendizagem de uma vida inteira. Uma pessoa que tenha tido uma vida repleta de amor tem um padrão do sentimento do amor muito diferente do padrão de uma pessoa que nunca amou ou nunca foi amada. Uma pessoa que toda a vida viveu na miséria, no meio de agruras e dificuldades de toda a ordem, tem um sentimento de carência totalmente diferente do sentimento da pessoa que nunca teve dificuldades e sempre viveu na abundância.

Então, poderemos tentar dizer, cautelosamente, o que será um poeta…

Ser poeta não é ser um agente da banalização da palavra e da poesia, que é o que tantas vezes se vê, mas ser dono de um sentimento poético consolidado, muito apurado e afinado, construído através de uma vivência de amor e dedicação à poesia, vivendo a poesia de uma forma indissociável do viver da vida. No entanto, para além desta aprendizagem de uma vida inteira, é fundamental na construção do sentimento poético uma formação cultural global do ser humano, tão profunda quanto possível, a par de uma segura formação ética e estética. Obviamente que me refiro, muito especialmente, à formação na universidade da vida e não em qualquer fábrica de intelectualismos.

Só assim se entende que o sentimento poético e o sentimento artístico podem enriquecer e enobrecer todos os nossos processos de humanização, podem criar grandes afinidades com a consciência, revolucionar as inquietas questões da nossa mente, aproximar-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade e ajudar-nos na difícil procura do caminho da harmonia.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24267: (In)citações (240): O meu 25 de Abril de 2023 (Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

domingo, 23 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24243: Blogpoesia (790): Reflexão, simplista, sobre a Poesia (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


REFLEXÃO, SIMPLISTA, SOBRE A POESIA

adão Cruz

É muito difícil saber o que é a poesia. Sempre duvidei de quem diz que sabe o que é a poesia. Tenho lido e ouvido tanta coisa sobre poesia e muito pouca coisa me convence. Isto não retira a qualquer um de nós o direito que temos a expor o nosso pensamento.

Com a proximidade cada vez maior entre as Humanidades e a Ciência, muito especialmente as Neurociências, uma ampla janela se abre, como nunca se abriu, para o entendimento da natureza e do conceito de poesia.

O Ser Humano é uma estrutura muito complexa de sentimentos, uma infinidade de sentimentos, em sentido neurobiológico, obviamente. Desde os sentimentos mais comuns e mais conhecidos, como o sentimento do amor e do ódio, o sentimento da alegria e da tristeza, o sentimento da coragem e do medo, até sentimentos menos experimentados como o sentimento da beleza, o sentimento poético e o sentimento artístico. Sim, porque eu penso que beleza, a poesia e a arte, à luz das Neurociências, não são mais do que sentimentos.

Sem ter a veleidade de pretender impor conceitos de poesia, sinto a necessidade de a entender e de me entender no seu complexo e maravilhoso mundo, tão levianamente tratado por tantos devaneios pretensamente filosóficos. Embora nascendo embrionariamente connosco, os sentimentos têm de ser vivenciados, construídos, apurados e consolidados ao longo da vida, mais ou menos profundamente e de forma diferente em cada um de nós. Comparada com a assombrosa e constante neuroplasticidade cerebral do nosso dia-a-dia, a programação genética é uma componente muito menos decisiva na construção daquilo que somos e na elaboração da nossa mente.

Parece-me, desta forma, que o sentimento poético é um sentimento muito profundo e ao mesmo tempo muito subtil, uma espécie de essencialidade harmoniosa da vida, provavelmente de uma neuronalidade muito delicada. A poesia não é, a meu ver, um sentimento de cópia, mas a simbolização, a evocação e a invocação ao mais alto nível, da beleza e da nobreza da realidade. Para quem possui este sentimento bem enraizado, a expressão poética pode ser entendida não só como harmonia verbal, em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se diluem num resultado de suprema fruição estética, mas também como seiva ou brisa mágica que percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística. Daí que o chamado poema, considerado a matriz literária onde habitualmente nasce e germina a poesia, pode ser estéril ou constituir mesmo a negação do sentimento poético. A poesia pode ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida numa pintura ou numa peça musical do que em qualquer forma de expressão literária.

Apesar de demasiado simplista, atrevo-me a concluir através desta reflexão, que é um erro pretender que o sentimento poético chegue às pessoas da noite para o dia, por artes mágicas, como se de uma prenda banal se tratasse. Dito por outras palavras, penso que, não sendo negativa, pode ser enganadora e não racionalmente formadora, a pretensão de levar às pessoas a poesia ou sentimento poético através de celebrações, festividades e dias mundiais.

Dizia Schiller, que o vulgar é tudo aquilo que não desperta outro interesse que não seja o sensível. A arte e a poesia não devem descer ao puramente sensível, à mera receptividade sensorial, à fugaz captação de estímulos incapazes de serem trabalhados condignamente nas complexas oficinas neuronais da nossa mente. Mesmo que seja um lugar-comum dizê-lo, só criando na sociedade, através de verdadeiras políticas culturais, as condições que permitam entender a natureza e a profundidade da poesia e da arte, elas poderão ser sentidas como elemento essencial da vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24237: Blogpoesia (789): "Dia de enganos", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24226: (In)citações (237): "Reflexão sobre a pobreza" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A POBREZA

adão cruz

Formar e educar pressupõe que as pessoas estão em primeiro lugar e não podem ser sacrificadas em nome de uma qualquer estruturação produtiva. É por isso que as relações capitalistas são incapazes, pela sua natureza intrínseca, de promover o conjunto de direitos fundamentais dos seres humanos, a começar pelo direito à vida digna, à educação livre, aos cuidados de saúde, à habitação, ao emprego, à cultura, ao lazer e à aposentação. Não se podem criar verdadeiras escolas e seguir processos de formação de qualidade dentro de um sistema social excludente, desigual e antidemocrático.

A pobreza, ou o holocausto da pobreza como alguém lhe chamou, é a maior e mais cruel das violências, a mais descarnada evidência do fracasso social, o resultado exponencial de todas as ganâncias. Seria o flagelo da consciência dos ricos, se esta não estivesse dominada pela iniquidade económica e pela insensibilidade ao sofrimento e ao drama de cada um. Não só a pobreza do sul do planeta, do terceiro mundo, mas também a pobreza dos excluídos do primeiro mundo, onde o abismo entre pobreza e riqueza é cada vez maior por força de um sistema altamente injusto, corrupto, explorador dos fracos, que não se coíbe de matar, massacrar e praticar genocídios, para aumentar os superlucros e as mais-valias que já não sabe como utilizar. Degradam-se as condições de vida porque as necessidades humanas são geridas pela política das sobras. Destrói-se a natureza pela proliferação de indústrias que nada produzem além de lixo. Envenenam-se as relações entre pessoas e países pela luta de interesses e pela invenção das guerras. Combate-se a cultura em todas as frentes. Impõe-se uma pretensa e soberana eficácia de todas as panaceias que originam fabulosos lucros, através da intoxicação comunicacional.

Toda esta religião do mercado, todos estes rituais dos sacerdotes do poder espalhados pelos cultos reverenciais do dinheiro são consagrados em cimeiras, onde um profundo défice de moralidade define a repartição do que ainda resta para roubar. Toda esta lógica neoliberalizante, tão cara ao primarismo de tantos chefes de estado e seus correligionários, insensível à exclusão social e à generalização da pobreza, tende para a anulação do homem e para a promoção de uma cultura de gestão, cuja meta não é outra senão a mecanização de uma sociedade em que os homens não são mais do que peças.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

terça-feira, 4 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A CIÊNCIA

adão cruz

Sou um materialista convicto, no sentido filosófico-científico, sem qualquer angústia sobrenatural ou metafísica, não perfilhando qualquer dualismo corpo-espírito, a não ser em termos académicos. Desta forma, considero a Ciência como a mais segura plataforma de partida para o caminho do saber e da verdade.

A Ciência oferece-nos perspectivas francamente inovadoras, mesmo sem contribuir com respostas directas e imediatas para todas as questões. A Ciência constitui a mais segura contribuição para a descoberta do homem e do mundo. A permanente interacção da evolução dos conhecimentos científicos com a cultura deve fazer parte da vida de todos nós. A Ciência, em permanente desenvolvimento, interfere constantemente em todos os domínios do quotidiano, e cria a necessidade de critérios de excelência em qualquer dos campos da educação e do progresso, a fim de tornar mais fácil o entendimento da vida. Sem a Ciência não há educação que resista, não há educação da verdade, não há verdade que não esteja conspurcada de crendice. Todavia, nem a Ciência nem a técnica têm sentido se não forem instrumentos para a realização plena da humanidade.

Ao apresentar-me assim, como intransigente defensor da Ciência, fazendo a apologia da Ciência como o mais verdadeiro de todos os caminhos, não deixo de ter em atenção a posição dos que atribuem à Ciência um cunho elitista, considerando-a parte de uma invenção diabólica que apenas serve para a consolidação cada vez maior do poder económico dos senhores do mundo. Neste sentido, a Ciência passaria a ser um instrumento de produção, mais associada ao poder de enriquecimento do que à criação do saber. Daqui a grande contradição entre a maravilha da Ciência e a perversidade das suas aplicações. Não podemos conceber, no entanto, um desenvolvimento sem Ciência, a grande luz contra todos os obscurantismos. Podemos e devemos, isso sim, ter sobre ela uma visão crítica, reconhecendo o seu incomensurável papel no desenvolvimento da humanidade e não desprezando os seus perigosos desvios. Um campo infinito, apaixonante e imparável, que tanto pode ser usado para reforço do poder dominante, como pode estar ao serviço de uma sociedade mais justa, mais verdadeira, mais progressista e igualitária.

Podemos concluir, dizendo que o mal não está nem nunca esteve na Ciência, mas no uso negativo que o ser humano lhe dá.

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24186: (In)citações (235): "Reflexão sobre as palavras" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 2 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24186: (In)citações (235): "Reflexão sobre as palavras" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

"REFLEXÃO SOBRE AS PALAVRAS"

ADÃO CRUZ

Tenho muito respeito pelas palavras e pela verdade nuclear que as constitui. Tenho muito medo de poder esvaziá-las ou atraiçoá-las.

As palavras, elas mesmas, têm necessidade de serem ditas por inteiro, de outra forma não passam de palavras mudas, e eu tenho necessidade de as saber dizer, senão não passo de mero dizente. Por outro lado, se as palavras têm um sentido para aquele que as diz ou escreve, podem não o ter, ou ter um sentido diferente para aquele que as ouve ou as lê. O conceito de sentido é fundamental na comunicação. E o sentido está dentro de cada um de nós e resulta da forma como respondemos interiormente às nossas experiências, que não é a mesma de cada um daqueles que nos lêem ou nos ouvem. O sentido é fruto de um processo complexo em constante movimento, e ao transmiti-lo, nunca devemos esperar uma colagem pura e simples, que de nada serve, mas sim a procura de uma integração consciente nos mecanismos construtivistas do sentido dos outros.

Vem isto a propósito de um artigo em que falei das duas naturezas do ser humano, a natureza antropológica e antropocêntrica e a natureza centrífuga da sua dimensão universal, as quais, na realidade, são apenas uma.

O hipotético Big-Bang, inimaginável explosão do pequeno desequilíbrio entre a matéria e a antimatéria, fez com que o Universo entrasse em expansão arrastando com ele esta risível partícula de poeira chamada Terra e este micróbio chamado Homem. No confronto entre a resistência da condição humana e o movimento de fuga para fora dessa condição, tendente a dilatar o homem no infinito, residiria, a meu ver, a mente, ou interface onde a verdadeira vida se processa.

Não querendo abusar das palavras, mas valendo-me delas com o máximo respeito que merecem, eu diria que, sem perder a sua dimensão universal, o Homem, dentro da sua natureza terrena, pode desenvolver uma luta racional e científica que o projecte para fora da sua pequenez, guiado pelo amadurecimento de uma consciência social que o ajude a combater a indignidade e a perversão, os grandes males do mundo. Apesar de não ser o centro de nada, ele detém a força do equilíbrio ou do desequilíbrio da humanidade. E tem um enorme potencial de conhecimento acumulado, que pode permitir alcançar o equilíbrio ou aprofundar o desequilíbrio entre os homens. O Homem é um ser vivo com actividade própria em permanente interacção adaptativa com o meio. Possui uma força intelectiva e emocional, que o torna capaz de entender as realidades e transformá-las, transformando-se, ele próprio, dentro da sua sensibilidade intrínseca. Assim como o seu fenótipo e o seu saber resultam de uma interacção, de uma evolução e de um diálogo permanente entre o genótipo, o meio ambiente e a admirável neuroplasticidade cerebral, ele, ontologicamente parte integrante do Universo, não pode fugir a esta sua dimensão. Por isso o homem não é um simples quantitativo nem uma estática soma, antes se constitui por um infindável crescendo de saltos qualitativos que o levam a reconhecer que o todo é sempre muito maior do que as partes, tanto no que se refere às relações com ele próprio e com os outros, como no que diz respeito à consciência da sua relação com o infinito.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24147: (In)citações (234): A (nossa) Cédula Pessoal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23672: Mi querido blog, por qué no te callas?! (6): A todos os meus confrades, aqui deixo o registo de um punhado de reflexões sobre o futuro do nosso blogue (Mário Beja Santos)


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Esta foto, com a Zélia Neno, ex-companheira do Xico Allen, chegou-nos por mão do Albano Costa, com a seguinte legenda: “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia [Neno] a puxar o burro, mulher de armas!"... A propósito, não temos tido notícia desta nossa amiga, "veteraníssima", uma das primeiras a integrar a Tabanca Grande...

Qual entretanto a relação desta foto com o tema desta série "Mi querido blog, por qué no te callas? "... Metaforicamente falando, o nosso blogue pode ser comparado a um burro velho mas teimoso, que se recusa a envelhecer e, no fim, a ir para o matadouro... 

Dizem que os burros podem viver entre 30 e 40 anos, em média, podendo excecionalmente chegar ao meio século...  Na Guiné do nosso tempo, eram já uma raridade, mas houve quem ainda os visse a carregar pesados sacos de mancarra e até se faziam  com eles umas "burricadas"... 

Enfim,  a experança média de vida do burro depende muito dos trabalhos impostos pelo dono e pelos cuidados que lhe são prestados... No caso do nosso blogue, a sua expetativa de vida já não pode ser tão grande: não é que o "burro" seja muito velho (tem 18 anos), os "donos" é que estão a ficar velhotes... (Atenção: 18 anos na Web é quase uma eternidade!)

Mas ao nosso blogue também se aplica o provérbio da Guiné, em crioulo: "Buru tudu karga ki karga si ka sutadu i ka ta janti" (O burro, com pouca ou muita carga, se não é açoitado,  não anda)... 

Caros leitores, toca a... "tocar o burro"!... O mesmo é dizer: deem-nos dicas, façam-nos críticas, sugestões e comentários, depois de lerem este poste... que começa pro ser  um "aviso à navegação". 

Faltam-nos padrinhos e afilhados, o mesmo é dizer, "sangue novo"... A "velhice" tem que fazer a sua parte, "apadrinhar" os "periquitos"... Onde estão os "últimos soldados do império"? Qurem apanhou o 25 de Abril? Quem regressou nos últimos  aviões dos TAM e nos últimos navios T/T?

Este ano só entraram, até à data, 9 novos membros da Tabanca Grande, um por mês, e destes nove, três foram-no a título póstumo... O ano passado, que foi de pandemia (como o de 2020), tivems 31 novos membros, dos quais 13 a título póstumo...  

Amigos e camaradas da Guiné: não deixemos que sejam os nossos queridos mortos a alimentar os que ainda estão vivos...

Foto (e legenda): © Albano Costa / Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1. Texto do nosso colaborador permanente, Mário Beja Santos, com data de 3/8/2022, e que só agora é publicado, por razões de oportunidade (*):

A todos os meus confrades, aqui deixo o registo de um punhado de reflexões sobre o futuro do nosso blogue

Meu caro Luís,
 
É de elementar justiça, a todos os títulos, dirigir-me primeiramente a ti, foi graças ao nosso reencontro, em 2006, que me abriguei no blogue que tu fundaste em boa hora e que se tornou no eixo principal das memórias da guerra da Guiné, é possuidor de um acervo incomparável, merecedor da atenção dos estudiosos das novas gerações, tal o valor da informação ali acumulada, isto para já não referir aquele imbatível acervo fotográfico que fará inveja a qualquer arquivo, em qualquer ponto do globo. 

Daí de saudar calorosamente pela porta que abriste ao companheirismo, à permanente assembleia dos camaradas da Guiné e outros visitantes, só num país ingrato como o nosso é que tu não és alvo de uma distinta consideração pelo que criaste de raíz e pelo inultrapassável serviço público que o blogue presta ao país.

Acompanho diariamente o blogue, não posso escrever sem olhar para o fruto do tempo, e constato que a nossa idade introduz limitações que devemos aprender a ultrapassar. Admito que possamos crescer um pouco mais, aceito perfeitamente que ainda há muito para dizer, mas estou seguro de que há condicionalismos irrefragáveis:  a 
concorrência de redes sociais, o facto da nossa memória se ir esgotando sobre o que vivemos e partilhamos com outros,  há qualquer coisa como meio século ou mais, o que atualmente se publica espelha essa rarefação e considero que chegou a hora de conjugarmos esforços para que se faça uma reflexão séria sobre o futuro do blogue.
  • primeiro, temos um potencial invejável, podemos com ele conviver com outros parceiros, logo todos aqueles blogues de antigos combatentes que queiram entrar connosco em parceria, mais não seja no intercâmbio de informações, notícia de obras publicadas, realização de eventos, etc.; 
  • há as instâncias universitárias onde se estuda a guerra colonial, em vários pontos do país, bem podíamos procurar estabelecer protocolos; 
  • há as bibliotecas, se é facto que a Biblioteca Nacional teoricamente recebe todas as publicações, nós não temos acesso fácil a edições de autor
  • há outras bibliotecas que estão prontas a cooperar (eu próprio beneficio da delicadeza do bibliotecário da Biblioteca da Liga dos Combatentes), 
  • há nas Forças Armadas instituições e publicações com quem nós podíamos intensificar o intercâmbio.
O blogue ganharia dimensão de um espaço mais amplo, sem detrimento da manutenção dos nossos conteúdos específicos.

Mais cabeças poderiam seguramente contribuir (e de certeza com aportes mais válidos) sobre o futuro do nosso blogue. É esta dimensão de património histórico-cultural que eu venho pôr à vossa consideração, sugerindo ao fundador do blogue que organize oportunamente um encontro de gente disponível que traga na sua agenda sugestões de engrandecer o futuro do blogue, não devemos desdenhar as nossas idades e legar às novas gerações este dever de memória que diariamente acarinhamos aqui. 

É o que sumariamente me ocorreu de dizer-vos, tenho 77 anos, gozo felizmente de alguma saúde e não sinto qualquer abalo no meu entusiasmo em manter de pedra e cal a colaborar regularmente com o blogue

Que o debate nos ajude a preparar um risonho amanhã, para que todos os nossos testemunhos não fiquem gelificados num qualquer arquivo. 

Recebam a muita cordialidade do Mário


2. Já em tempos, em  21/11/2017, o Mário tinha partilhado connsoco algumas das preocupações e reflexões sobre o futuro do blogue. Como não temos a certeza de ter sido publicado, aqui fica o texto, em complemento do que acima reproduzimos:

Caríssimo Luís,
Saúde e fraternidade,
De há uns meses a esta parte que te ando para escrever. Cumpre-se a ordem natural da vida, nós e os nossos companheiros de blogue vamos envelhecendo, as inscrições de novos bloguistas chega naturalmente a conta-gotas, enfim, não podemos reinventarmo-nos, estamos insistentemente numa atmosfera de manutenção, a criatividade terá os seus dias contados.

Devemos saber prever os próximos anos, é uma pertinência e é um ato de responsabilidade: como manter vigoroso, interativo e muito útil o nosso blogue? Só a ti cabe tomar uma decisão de revigoramento.

Eu venho dar uma sugestão e nada mais. Faria uma curta reflexão sobre o futuro do nosso blogue a partir dos dados da atualidade, convidaria aí uns 20 camaradas para uma jornada de reflexão, num qualquer ponto do país, umas boas horas a partir pedra e a juntar ideias salutares para um futuro promissor.

Adianto algumas ideias da minha lavra:

  • alargar as parcerias com os três ramos das forças armadas, pedindo-lhes intercâmbio do que tem a ver com o passado e presente da Guiné – artigos, memórias, cooperação, etc;
  • estabelecer um protocolo com os demais blogues relacionados com a guerra da Guiné, sempre na perspetiva do intercâmbio, do noticiário, de uma bolsa de artigos de opinião
  • pedir entrevistas aos Pupilos do Exército, ao Colégio Militar, Academia Militar, propondo-lhes visitas de camaradas nossos para falar da Guiné e daquela guerra.

    Não me quero estender mais, exigi a mim próprio notificar-te que temos uma vida curta pela frente e gerámos um património que é inalienável e fulcral para qualquer investigaçã séria que se venha a fazer no futuro sobre a guerra da Guiné, seja a que título for. Depois dizes-me o que pensas.

    Um abraço sempre fraterno do Mário.
    __________

    Nota do editor:

    Último poste da série > 3 de março de  2021 > Guiné 61/74 - P21964: Mi querido blog, por qué no te callas?! (5): O que irá acontecer aos nossos blogues e demais sítios na Net quando, pela ordem natural das coisas, formos transferidos para o Batalhão Celestial? Considerações sobre o futuro (Rogério Freire, fundador e editor do sítio CART 1525 - Os Falcões)
  • quinta-feira, 29 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

    1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2022:

    Caros camaradas,
    Por me parecer oportuno, face ao desafio do Mário Beja Santos - que me "empurrou" - fez ele bem - para este tema, aqui vai a terceira parte. Outros andarão bem melhor nesta matéria: historiadores, antropólogos, padres...
    Fica este registo.

    Saudação camarada.
    Paulo Salgado



    Algumas (breves) notas sobre missionação – III

    Paulo Salgado

    Vejo-me compelido, por imperativo histórico, a trazer junto de vós, camaradas que me ledes neste Blogue, sério e participativo, uma reflexão que se deve ao Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa».[1] Mas, antes, não posso deixar de relembrar que «a bula Acquum Reputamos, de Paulo III, conhecida como a "magna carta" do padroado real português, para além dos conteúdos habituais das bulas precedentes concedidas a Portugal, reflecte uma realidade político-religiosa ligeiramente diferente da que se viveu em décadas anteriores».[2] Este documento papal favorecia e privilegiava a missionação portuguesa, concedendo a possibilidade de evangelização, mas igualmente a responsabilidade de zelar materialmente pela manutenção das igrejas fundadas ou a fundar. Também conferia a sede episcopal de Goa. Refira-se que o padroado português sofreu ao longos dos séculos diversos episódios, em especial os relativos ao surgimento de outras igrejas cristãs apoiadas por países não católicos e que fundaram as suas missões, algumas com relevo notável e que se mantêm hoje em actividade. Igualmente, são de mencionar os diversos acordos efectuados e reajustados ao longo do século XIX e mesmo no século XX da parte da Igreja e dos reis de Portugal.

    Na missionação utilizava-se o termos “infiéis”. Ainda que não concorde com esta designação (infiéis, porque não pertenciam ao Cristianismo… designação que surge afastada, como defende o Papa Francisco), que surge abundantemente em vários textos desde o século X (ou antes) e por aí adiante, mesmo por Francisco Xavier e outros célebres missionários, tem de fazer-se o seu registo.

    Transcrevo, pois:
    «A missionação portuguesa desenvolve-se ao longo dos séculos, em torno da obra dos prelados diocesanos e das ordens religiosas que se vão fixando nos territórios de missão: franciscanos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas, ursulinas, merecendo uma menção especial os religiosos da regra de Santo Agostinho, cuja acção foi importante na interpelação dos governantes para que agissem, e fizessem agir os súbditos, como cristãos».

    E acrescenta:
    «Com S. Francisco Xavier, o "Apóstolo das índias", abre-se uma era nova na missionação do Oriente. Para além dos 30.000 baptismos que lhe são atribuídos, de uma acção constante em Cochim, Malaca, Molucas e Cantão, deve-se-lhe uma atitude diferente em relação a povos e culturas, de forma que não se hesita em reconhecer que, com S. Francisco Xavier, começa a missionação moderna. Japão, China e Indochina recebem também missionários portugueses, e, não obstante o sucesso da presença de S. Francisco Xavier no Japão, a missionação aqui acaba por sofrer inclemências terríveis do poder político, de que é símbolo o martírio de Nagasáqui. Mas, significativa é esta exclamação de S. Francisco Xavier, em carta escrita do Ceilão: "Bendito seja Deus, porque tornou tão florescente o nome de Cristo entre esta multidão de infiéis!".
    Despedida de Xavier na corte do rei D. João III
    In: https://devocaofrancsicoxavier.blogspot.com/p/iconografia-gravuras.html

    À missionação no Brasil está imperecivelmente ligado o nome do Padre Manuel da Nóbrega, fundador da Província do Brasil e da cidade de São Paulo, o primeiro jesuíta do Brasil e da América, como o designou o Padre Serafim Leite. Nóbrega teve tal actuação, como exímio religioso e verdadeiro homem de Deus, na concertação com governantes, em defesa de autóctones, que o historiador Robert Southey não hesitou em chamar-lhe "o maior político do Brasil". Contudo, a sua figura grada brilha mais como parte dessa tríade de construtores de missão no Brasil: Nóbrega / Anchieta / Vieira».
    Padre jesuíta no Brasil Colonial

    ********************

    Notas:

    [1] - Janus 1999-2000, Missionação portuguesa. In https://www.janusonline.pt/arquivo/1999_2000/1999_2000
    [2] - David Sampaio Barbosa - Padroado Português: privilégio ou serviço (séc. XIX)?

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    Nota do editor:

    Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

    terça-feira, 27 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © Desenho de Manel Cruz


    REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

    (Uma visão pessoal)

    adão cruz

    Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?

    Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.

    A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.

    O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.

    O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.

    O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.

    O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    quinta-feira, 22 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO (complexo caminho da simplicidade da Evidência)

    adão cruz

    Não é fácil percorrer o complexo caminho da simplicidade da Evidência que anda por aí, em muita coisa. O medo da Evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo em pessoas familiarizadas com a Cultura Científica da Evidência. Estas as pessoas, ainda assim, de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da Evidência que não conseguem negar. O mundo é muito claro, até onde nos permite que o seja.

    O sobrenatural continua a ser um grande problema, com a maioria das pessoas a serem incapazes de o resolver, incapazes de rever a equação cujo resultado estabeleceram como certo sem conhecerem os dados que a compõem.

    Há muito tempo que deixei de discutir fé e religião com gente crente, gente que indiscutivelmente respeito, mesmo não respeitando as crenças. Dogmas e argumentos condicionados, não sendo permeáveis à razão, só podem levar a conclusões sempre frustrantes. Sou ateu, mas há muitos anos fui crente. O sobrenatural, tantas vezes aterrorizador, entrou na minha cabeça à força da destruição da minha razão e do meu entendimento, perpetrada por mentes ignorantes que assaltaram a minha infância e adolescência. Essa parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, à luz da Evidência possível, fazer a comparação entre a falsa liberdade da aleatória felicidade do obscurantismo e a aliciante liberdade da real felicidade de uma razão não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice. É muito difícil quebrar as grilhetas de um pensamento fortemente colonizado, mas a força projectiva da curiosidade humana que leva ao complexo caminho da simplicidade da Evidência é a única força capaz de nos libertar de todas as constritoras angústias metafísicas. Foi essa libertação que me trouxe a paz e a serenidade de uma total descrença mística, uma das melhores prendas que a vida me deu.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23630: (In)citações (221): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    terça-feira, 20 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23630: (In)citações (221): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO

    adão cruz

    Todos nós temos os nossos desertos, pequenos ou grandes, e todos nós temos os nossos labirintos, pequenos ou grandes, simples ou complexos.

    Os caminhos e os percursos entre os nossos desertos e os nossos labirintos, mais rectos ou mais sinuosos, são, ao fim e ao cabo, os caminhos da nossa vida. E esses caminhos são feitos predominantemente de silêncio.

    A grande força da nossa vida reside no silêncio. O silêncio das nossas meditações, das nossas reflexões, das nossas decisões, dos nossos segredos e intimidades, dos nossos medos e coragens, dos nossos sonhos e entusiasmos, das nossas alegrias, das nossas mágoas e frustrações.

    O silêncio é a primeira voz que um homem ouve quando está dentro de si.

    O silêncio é o respirar do nosso íntimo, a dialéctica da nossa personalidade, o único espaço onde a mentira não cabe.

    O silêncio é o relógio oculto e secreto das nossas horas.

    A mágica sensatez do silêncio é o fio-de-prumo do nosso equilíbrio.

    São imensas as verdades que podemos conhecer, só por ficarmos estendidos na cama a pensar calmamente. Porque as verdades estão em nós e só o silêncio nos permite desvendá-las.

    Nós somos a nossa própria teia e só o silêncio nos deixa ver e separar os emaranhados fios que a tecem.

    Tantas vezes o silêncio tem vontade de fugir e necessidade de gritar! De gritar as verdades que descobre. Mas como o silêncio não tem palavra de se ouvir, vai enformando os mais variados actos da nossa vida, os gestos e as artes da vida que só nele vive.

    Assim nascem, assim se criam e se desdobram todas as nossas inúmeras expressões vivenciais e que mais não são do que as vozes ampliadas dos nossos próprios silêncios.

    ____________

    Nota do editor

    Último poste da série de 19 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23627: (In)citações (220): Homenageando os bravos do Batalhão de Comandos da Guiné (Raul Folques, em 15/4/2010, na sessão de lançamento do livro do Amadu Djaló, "Comando, Guineense, Português")

    terça-feira, 13 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23614: (In)citações (219): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO

    adão cruz

    Para mim, a Ciência, nos seus mais diversos sentidos, é o único e verdadeiro caminho do conhecimento e, logicamente, o único caminho da procura da Verdade. Também na minha maneira de ver, entre os muitos caminhos da Ciência, há dois que eu considero uma espécie de amplas avenidas ou mesmo autoestradas do conhecimento. São eles a Ciência da Evolução e as Neurociências.

    Quanto ao primeiro caminho, a luz que Darwin acendeu tem vindo a tornar-se de dia para dia mais resplandecente, iluminando cada vez mais e melhor o nosso conhecimento, através de cientistas como Richard Dawkins, Yared Diamond, Jerry Coyne, Pier Vincenzo Piazza, Edward Wilson e tantos outros que nos têm conduzido à evidência de que o maravilhoso fenómeno da Evolução não é mais uma teoria, mas uma realidade, um Facto Científico incontestável. Ao reler “A Evidência da Evolução”, de Jerry Coyne, obra que considero uma das que mais me marcaram nesta minha profunda curiosidade à volta da vida e da nossa existência, eu repito aquilo que várias vezes tenho dito, a Ciência da Evolução, Facto Científico ao mais alto nível, o único caminho verdadeiro na descoberta de quem somos, de onde viemos e para onde vamos, devia ser ensinada desde o primeiro ano de escolaridade e prosseguir ininterruptamente pela vida fora, transversalmente a qualquer ciência ou curso, desde a matemática à filosofia, da genética à medicina, da antropologia à astronomia. E repito mais uma vez, convictamente, que qualquer pessoa, por mais bem formada que seja, não pode possuir uma completa formação global, se não tiver integrada nessa mesma formação uma abordagem minimamente suficiente da Ciência da Evolução.

    Quanto ao segundo caminho, o das Neurociências, tão arduamente palmilhado por homens como Jean Pierre Changeux, António Damásio, Pascual-Leone, Mattew Cobb, David Eagleman e tantos outros, ele vai-nos conduzindo de forma cada vez mais admirável e luminosa, à mais arrebatadora viagem ao interior do nosso cérebro e da nossa mente. Ao reler “O Cérebro em Ação”, de David Eagleman, fico extasiado perante a desassombrada visão e domínio que ele demonstra sobre a neuroplasticidade cerebral e a interconexão deste maravilhoso órgão encerrado na nossa caixa craniana. Este órgão, que é a estrutura mais complexa do planeta. Este órgão, que, mesmo minúsculo como o cérebro de uma formiga, é mais complexo e menos entendível do que a estrutura de uma estrela. Este órgão constituído por uma floresta de oitenta a cem mil milhões de neurónios, densamente ligados uns aos outros em redes profundamente intrincadas. Se considerarmos os neurónios as árvores da floresta com todos os seus ramos interligados, se nos lembrarmos que a floresta não é constituída só por árvores mas por toda uma densa vegetação de arbustos, ramos, raminhos e ramúsculos, chegamos à conclusão, através de cálculos científicos, que o número total de ligações entre os neurónios da nossa cabeça chega às centenas de biliões. E para que a incredulidade nos abra mais a boca, podemos dizer que um milímetro cúbico de tecido cortical contém vinte vezes mais ligações ou conexões do que seres humanos à superfície da Terra. Não sei como conseguiremos fechar a boca.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23593: (In)citações (218): Reflexão (muito básica) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    terça-feira, 6 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23593: (In)citações (218): Reflexão (muito básica) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO (muito básica)

    adão cruz

    Há dias, num café perto de minha casa, uma mulher entrou e perguntou quanto custava um rissol. Um euro, responderam do balcão. A mulher encolheu os ombros e ia a sair, quando eu disse que lhe pagava o rissol e uma bebida. Agradeceu muito, comeu o rissol e tomou um café.

    Lembrei-me então do que se havia passado numa pequena tasca do Porto, que já não existe, onde se comiam as melhores papas de sarrabulho. Deliciava-me eu com uma tigelinha das ditas, quando um dos dois homens que estavam de pé ao fundo do balcão, bebericando cada um o seu copito de vinho tinto, ao ver as minhas papas fumegantes, perguntou ao dono do restaurante quanto custava uma malga de papas. Dois euros, respondeu o patrão. Tinham ar de pobres e sem cheta e por isso ficaram-se pela pergunta. Claro que eu tinha todo o gosto em pagar-lhes a malga de papas. Ainda esbocei um gesto, mas contive-me. Tive receio de que se sentissem humilhados perante as outras pessoas. Fiquei triste e arrependido de não lhes ter oferecido a porra das papas.

    No fim da refeição, na pausa do café, peguei no jornal, e logo numa das primeiras páginas deparei com o anúncio de que estava para sair a nova bomba da Mercedes, que custava à volta de duzentos mil euros. Parei um pouco, retirei os olhos do jornal, espetei-os na porta da retrete ao fundo da sala e perguntei a mim mesmo que merda de mundo é este. E concluí que, sendo o Homem uma estrutura tão complexa e interessante, foi muito mal acabado. Eu sou um amante das Neurociências e quanto mais leio mais deslumbrado fico com as maravilhas do nosso cérebro. Mas, na prática, confesso sentir que toda a engrenagem está desconjuntada e enferrujada. Na verdade, tudo no homem deveria funcionar de maneira a que a nossa vida nunca rompesse a órbita do equilíbrio. Assim como é impossível que a chuva seja de sangue, como é impossível que o sangue seja de água, como é impossível expirar para dentro e inspirar para fora, deveria ser impossível haver quem tenha um carro de duzentos mil euros e quem não tenha dois euros para comer umas papas de sarrabulho.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23576: (In)citações (217): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    quinta-feira, 1 de setembro de 2022

    Guiné 61/74 - P23576: (In)citações (217): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO

    adão cruz

    Pela minha profissão, sempre tive na minha frente toda a espécie de pessoas, desde a mais ignorante à mais sábia. Respeito tanto os ignorantes como os sábios, os cultos e os incultos, mas não tenho o mínimo respeito pela ignorância e pela incultura. Também não sinto respeito pelo trabalho de quem quer que seja que se dedique, de uma maneira ou de outra, a cultivar a ignorância, a escamotear a verdade e a anular a razão.

    Por mais que se pregue e por mais conferências que se faça, nada anula o descrédito em que caíram os donos do mundo ao pretenderem convencer-nos de que as expectativas de paz, liberdade e justiça são possíveis com as suas corrompidas doutrinas ou com as orações a Deus, as quais, pelos vistos, só são ouvidas quando saem da boca dos afortunados e não quando tomam a forma de gemidos na boca dos milhões de espezinhados que morrem às pilhas no deserto do silêncio, da fome e do sangue.

    Quem não vive de luxos e excessos, quem considera a paz, a educação e a cultura uma prioridade, quem luta pela justiça social e deseja que o sol nasça para todos, quem considera o amor, a amizade e a solidariedade humana como os maiores valores da vida, quem luta contra a exploração e contra o abismo entre ricos e pobres, de forma autêntica e não através de hipócritas caridades, quem mede a liberdade dos outros pela sua própria liberdade, pode ser o que quiserem, mas nunca será um vencido.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23548: (In)citações (216): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    terça-feira, 23 de agosto de 2022

    Guiné 61/74 - P23548: (In)citações (216): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    Reflexão

    adão cruz

    A minha vida clínica de quase sessenta anos está a findar. Desde a pobreza da medicina rural nos confins da Serra da Gralheira, à dura e precária assistência médica na guerra colonial da Guiné, passando pela sombria urgência nos empedrados corredores do velho Hospital de Santo António até às tecnologias dos dias de hoje, tudo atravessei, com a consciência de que a minha consciência nunca me atraiçoou.

    De tudo eu vi, desde a máxima nobreza do ser humano à sua maior indignidade e degradação. Em todo o meu percurso, permanentemente irmanado com as forças e as fraquezas humanas, sempre ergui vitórias e tropecei em fracassos, como toda a gente, mas muito especialmente nesta nobre e perigosa profissão em que é possível ser herói mas também vítima da fragilidade humana. Mas os meus sonhos e todos os horizontes que esses sonhos abriram à minha frente durante uma vida inteira, há muito que tendem a ruir e a dissolver-se na angústia e na tristeza de ver o caminho sinuoso por onde está a enveredar a medicina.

    A ciência médica evoluiu espantosamente do ponto de vista da investigação e dos avanços tecnológicos, mas de forma muitas vezes anárquica e desarticulada das necessidades sociais. Além disso, o abandono e os ataques ao Serviço Nacional de Saúde pela empresarialização e a industrialização da assistência médica transformaram o exercício da medicina numa fábrica de exames e o doente na matéria prima necessária à superprioridade do lucro. Por outro lado, a alienação da verdadeira clínica como pilar fundamental da medicina e do seu carácter humano na relação com o doente, transfigurou o médico num agente técnico-industrial e o doente numa simples ficha com um número, encarrilado numa espécie de linha de montagem. Como se não bastasse, a perda social de muitos dos conceitos de valor, a par do obscurantismo como grande predador da inteligência e da cultura, constituem o caldo adequado à proliferação de toda esta disforme aberração civilizacional que estamos a viver a todos os níveis.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23529: (In)citações (215): Reflexão entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    terça-feira, 16 de agosto de 2022

    Guiné 61/74 - P23529: (In)citações (215): Reflexão entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    REFLEXÃO ENTRE DOIS COPOS

    Todos aqueles que me conhecem e já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Meio copinho de tintol ou mesmo de branco fresco nestes dias de verão, é uma bênção do céu.

    Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há muito mais de mau do que de bom, o suficiente para gerar a extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que, naturalmente, poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

    O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que calibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que ajuda um poucochinho a lubrificar as nossas sinapses neuronais. Quem quiser acreditar que acredite, quem não quiser que beba água. Sem pretender colidir com a ética e a estética da existência, o vinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra que tenha sobrevivido à mão humana, poderemos ver ao longe o infinito e poderemos sentir-nos capazes de reconhecer o grão de areia que somos.

    O ser humano é a sua mente, uma complexíssima estrutura de sentimentos e pouco mais. Tudo o resto é um aglomerado de acessórios. O sentimento é a única expressão de vida, dentro da cadeia neurobiológica. São muitos os sentimentos que conhecemos, mas estamos muito longe de conhecer a sua infinidade. Cada segundo da nossa vida é um pedacinho de um qualquer sentimento de que não nos damos conta. Penso que o sentimento é um fenómeno indispensável ao mais pequeno gesto vital. Tenho, como toda a gente, muita dificuldade em analisar os sentimentos, isto é, em definir as suas incomensuráveis formas e manifestações. Os sentimentos constituem um mundo tão vasto de diferenças que me parece estultícia pretendermos dissecá-los e dimensioná-los fora das tentativas do campo neurocientífico. E muito menos separá-los dentro do cesto da mente, como se de fruta se tratasse.

    Vem isto a propósito de uma conversa acompanhada de um branco fresco, versando aquilo para que se sente atraído quem não fala de futebol e já está enjoado de política. A Arte e a Poesia. Sentimentos nobilíssimos, todavia muito mal tratados, muito mal sentidos, tentando expressar-se, tantas vezes, através de palavras e gestos de pretensiosa alma seca, talvez sem o humilde, filantrópico e filosófico calor de um copo de vinho. Eu diria que a Arte e a Poesia, que eu considero os mais nobres sentimentos a seguir ao sentimento da Solidariedade, existem em todos nós. Contudo, muitos dos que os vivem ou aparentam vivê-los são, por vezes, os seus próprios predadores, aqueles que lhes destroem a alma, ou seja, a música e a harmonia, ignorando que as palavras e os gestos são parte integrante das cintilações do infinito.

    À nossa saúde!
    adão cruz

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    Nota do editor

    Último poste da série de 12 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23519: (In)citações (214): Reflexão escrita “à moderna”, a fim de que todos entendam - Vinte e cinco por cento de ilusão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    sexta-feira, 12 de agosto de 2022

    Guiné 61/74 - P23519: (In)citações (214): Reflexão escrita “à moderna”, a fim de que todos entendam - Vinte e cinco por cento de ilusão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

    © ADÃO CRUZ


    VINTE E CINCO POR CENTO DE ILUSÃO

    (Reflexão escrita “à moderna”, a fim de que todos entendam)

    adão cruz

    Não te zangues, porque ninguém se enamora de alguém com público carimbo na cara.
    Quem de nós sente a liberdade ou a prisão de um devaneio, com alguma elegância de formas tece as malhas de uma afeição.
    Vinte e cinco por cento de ilusão neutraliza a depressão, faz dormir que nem um justo e as coisas são o que são, nem surpresa nem desdobramentos de personalidade nem pensamentos duplos nem amargos de lágrimas.
    Como é bom conversar contigo ó ilusão, assim calado e mudo, vazio da minha posse e do meu abrigo.
    Sempre nos perdemos naquele instante que começa a dominar, mas é uma fraca ideia pensar ir longe e, sem ir, ter a sorte de voltar.
    Deste mundo à real intimidade vai um passo cerimonioso, sonhador, penetrante, mas sem cor, sem brilho, sem sentido, de fonologia perfeitamente evitável se a desconjuntada linguística não lhe chamasse poesia.
    Surpreende apenas o delírio, escondendo o vivo interesse da inconsequência que é ensejo de todos nós.
    Surpreendem as razões inquietas das pessoas equivocadas que gemem angústias no conspurcar dos seus intentos.
    Vinte e cinco por cento de ilusão impede de adormecer às três e acordar às cinco, não desonra amigos nem inimigos e não dá ares de inocência falsa.
    Vinte e cinco por cento de ilusão é sentimento que garante provas positivas e faz acreditar na ideia de que se pode entender o que não tem entendimento.
    Vinte e cinco por cento de ilusão leva-nos a crer que o regime simbólico com que pensamos e habitamos a experiência do mundo é sempre propriedade dos nossos sistemas cognitivos, bem como a garantia da circularidade simbólico-cognitiva que pode resultar numa unidade espontaneamente congruente.
    Com vinte e cinco por cento de ilusão, não acreditando em nada, acredito agora, com nobre intenção, voz clara e firme, sem mostras de arrependimento nem buscas de coerência nem condições de entender, que o idiota é crer no poder do entendimento de toda a merda que se escreve e não dá para entender.

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    Nota do editor

    Último poste da série de 9 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23508: (In)citações (213): Testamento, de Ana Luisa Amaral (1956-2022)... E homenagem a uma grande voz feminina da língua portuguesa (Luís Graça / Laura Fonseca)