Se quisermos ir às raízes do modelo salutogénico, teremos que ir muito provavelmente até à origem da própria cultura europeia ocidental, o mesmo é dizer, a uma das suas fontes, a mitologia grega e a cultura helénica.
Já no tempo da antiga Grécia, por volta do Século V a.C., havia santuários - como o grande templo de Epidauro - dedicados a Asclépio (o Esculápio dos romanos). Para os gregos, Asclépio, herói homérico, fruto lendário dos amores de Apolo com uma pobre mortal, tornara-se então o semideus da medicina (Grimal, 1992; Hacquard, 1996). O seu culto prolongar-se-ia até ao princípio da cristianização do império romano e às primeiras invasões dos bárbaros no Séc. IV (Charitonidou, 1978; Graça, 1996).
O seu poder de atracção mágico-religiosa de doentes e peregrinos foi enorme como também, ao que parece, a sua eficácia simbólica e terapêutica, a avaliar pela popularidade e permanência, ao longo de séculos, do culto de Asclépio na civilização helénica e greco-romana.
Estes e outros aspectos da história da medicina estão bem ilustrados nas pinturas de Veloso Salgado na Sala dos Actos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (Dória e Silva, 1999)
Sabemos que, do ponto de vista antropológico, o poder médico começa por ser um poder mágico-religioso, independentemente daquele que o exerce (curandeiro, feiticeiro, sacerdote, físico ou cirurgião), tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades complexas.
Esse poder baseia-se sobretudo na crença de que a cura da doença, embora operada por forças divinas, exige a intervenção de um medium dotado de um dom ou carisma. Não é por acaso que o termo terapeuta (do grego therapeutés) significava originalmente "o que cuida, servidor ou adorador de um deus".
Os templos de Asclépio (asclepeions), a avaliar pela reconstituição arqueológica do maior e mais importante de todos, o de Epidauro, eram constituídos basicamente por:
- Uma nave principal (o templo propriamente dito ou cella, onde se erguia uma imponente estátua da divindade, em ouro e marfim: sentado sobre o trono, Asclépio segurava com uma mão o ceptro enquanto a outra pousava na cabeça da serpente, para os gregos uma animal sagrado e símbolo da própria arte de curar);
- A fonte sagrada, em frente do templo, cujas águas serviam para os rituais de purificação, bem como os altares, também exteriores, onde os doentes faziam os seus sacrifícios, pedindo a intervenção do deus;
- O tholos (uma construção circular, de desenho labiríntico, cuja função é ainda hoje enigmática: muito provavelmente, destinava-se a abrigar o túmulo do próprio Asclépio);
- O abaton, ou seja, o local do templo onde os doentes deviam passar a noite, já que a cura dos seus males decorria durante o sono (incubatio) (Charitonidou, 1978; Lyons e Petrucelli, 1984).
O arqueólogo grego Charitonidou (1978. 13-15) descreve-nos com mais pormenor os rituais e o método terapêutico que então eram usados:
- O santuário estava sob a jurisdição da cidade de Epidauro, cidade da Argólida, a nordeste do Peloponeso, a qual nomeava anualmente o dignitário supremo, o sacerdote de Asclépio, para o desempenho de funções simultaneamente religiosas e administrativas;
- Ao sumo sacerdote competia, no essencial, fazer respeitar os preceitos do culto, tomar conta dos ex-voto, das oferendas e das esmolas, e administrar as finanças;
- Era ajudado por um corpo de sacerdotes (os asclepíades), cada um dos quais desempenhava funções específicas (o serviço do templo, a guarda dos arquivos sagrados, o transporte do fogo, etc.);
- Os preceitos de culto, muito antigos, deviam ser fielmente observados pelos doentes que procuravam o templo para cura dos seus males, reais ou imaginários: por exemplo, às mulheres era proibido dar à luz no interior do templo, enquanto os moribundos deviam ser afastados para longe, curiosamente dois interditos que vemos encontrar mais tarde nos hospitais franceses do Antigo Regime;
- Após os rituais das orações, das purificações e da oferta de sacrifícios (um boi ou um galo, para os mais ricos; frutas ou doces, para os mais pobres), o doente era sujeito a uma série de cerimónias que supostamente iriam pôr à prova a sua fé;
- Ao que parece, a auto-sugestão era estimulada pelos sacerdotes que guiavam os doentes, de modo a criar as condições propícias ao acontecimento milagroso que se iria seguir durante o sono, com a aparição da própria divindade em pessoa; tudo isto se passava num ambiente de grande recolhimento, acentuado pelos hinos cantados, em coro, pelos peanistes;
- Conduzido finalmente ao abaton (ou adyton, ou enkoimeterion, "o pórtico da incubação"), o doente devia lá passar a noite: “Nos aposentos sagrados, o doente, em estado de recolhimento, a imaginação febril, cheio de angústia pelo resultado da cura, entregava o corpo ao sono. Os sacerdotes retiravam-se, deixando as salas na obscuridade. O deus paraceia em sonhos e operava o milagre. De manhã o doente acordava, curado."(Charitonidou, 1978. 14, tr. de LG, Itálicos meus);
- Como agradecimento pela cura milagrosa operada, os fiéis deviam presentear o deus com oferendas; havia-as de todo o tipo, para além do dinheiro: vasos de barro, utensílios em bronze, utensílios votivos, estelas, estatuetas, etc.
As estelas (ou inscrições votivas) que foram descobertas pelos arqueólogos constituem hoje uma fonte de informação preciosas sobre o Templo de Epidauro e o culto de Asclépio, os peregrinos que ali ocorriam, a sua origem social, a sua proveniência geográfica, os males de que sofriam e as curas que obtiveram: o paralítico, a criança muda, o homem de Tessália com manchas no rosto, a mulher de Messina que queria ter um filho e que, depois de dormir com a serpente, deu à luz duas crianças, etc.
Até agora não foi encontrado nenhum documento escrito que faça alusão à intervenção médica directa dos sacerdotes ao longo dos primeiros séculos de vida do templo. Eles continuavam a ser terapeutas, no sentido etimológico do termo, servidores do deus Asclépio que esse, sim, é que operava a cura (milagrosa) da doença durante o sono.
Mas, ao que parece, com o desenrolar do tempo, o santuário de Epidauro terá começado a sentir a concorrência dos médicos, na sequência do desenvolvimento da medicina grega, a partir de Hipócrates (460-377 a.C.).
Terá havido então um processo de adaptação aos novos tempos, provavelmente a partir do Séc. II a.C., em seja, em pleno período helenístico. Para manter vivo o culto de Asclépio e conservar a sua clientela, os sacerdotes passaram a inteirar-se dos males de que sofriam os fiéis e ao mesmo tempo a dar-lhes alguns conselhos, antes de os encaminharem para o abaton:
"O paciente evocava em sonho os conselhos dos sacerdotes, considerando-os como prescrições do deus. Pela manhã relatava o seu sonho e os sacerdotes, valendo-se dos seus conhecimentos médicos, interpretavaam os conselhos do deus quanto ao tratamento a seguir enquantoiam pedindo ao paciente que permanecesse no santuário” (Charitonidou, 1978: 15. tr. de LG.).
Tudo indica, a começar pelos achados arqueológicos que se encontram hoje expostos no Museu de Epidauro (incluindo alguns instrumentos ligados à arte médico-cirúrgica), que a partir de certa altura os sacerdotes do templo passaram, também eles, a prestar directamente alguns cuidados de saúde.
Há uma estela, embora já datada do Século II d.C., cujo conteúdo é bem revelador das mudanças que entretanto se tinham operado no templo de Epidauro (e provavelmente dos demais templos de Asclépio):
- Este já não é apenas um lugar sagrado, um local de fé e de peregrinação religiosa;
- É também um estabelecimento sanitário;
- A par de um centro de lazer, cada vez mais mundano, com os seus banhos de águas quentes e frias, as suas pousadas, os seus ginásios, as suas corridas e os seus jogos, para além do seu famoso teatro, construído no Século IV a.C. e considerado o melhor, o mais belo e o mais fascinante da Antiguidade.
Vale a pena citar essa inscrição votiva que nos conta a história de um tal Apellas que "sofria de hipocondria e de terríveis indigestões" (sic), dois males de que se curou seguramente depois de uma agradável estadia nas instalações hoteleiras do santuário e dos sábios conselhos médicos dos asclepíades sugerindo-lhe que mudasse de vida, de acordo com os ensinamentos da medicina hipocrática.
Esses conselhos são espantosamente tão actuais que bem poderiam ter sido dados pelo nosso médico de família:
- Nada de stresse, nada de te irritares;
- Cuidado com as mudanças de temperatura;
- Faz uma alimentação saudável, variada e equilibrada (come frutas, cereais, lacticínios, legumes, etc.);
- Come e bebe, mas sempre com muita moderação;
- Procura ser autónomo, dispensando os cuidados de terceiros;
- Não te esqueças de dar o teu passeio diário e de fazer exercício físico regular;
- E, por favor, corta-me com esse tabaquinho!...
Tratava-se, em suma, de um verdadeiro programa de promoção de estilos de vida saudáveis. De facto, está lá tudo (excepto... o tabaco, que só será conhecido no Velho Mundo a partir da descoberta da América, em 1492):
"Enquanto eu me dirigia para o Santuário, ao chegar a Egina, apareceu-me o deus Asclépio e ordenou-me que não me irritasse em demasia. Uma vez chegado ao Templo, mandou-me que passasse a cobrir a cabeça quando chovesse, a comer pão e queijo, aipo e alface, que tomasse tomar banho sem ajuda de nenhum escravo, que fizesse exercício no ginásio, que bebebesse sumo de cidra, que desse uns passeios a pé... Enfim, o deus mandou-me gravar tudo isto numa estela em pedra. Deixei o santuário em boa saúde e reconhecido a Asclépio" (cit. por Charitonidou, 1978: 15, tr. de LG).
A invasão da Grécia pelos Godos levou à devastação, em 395, do santuário, que depois seria definitivamente encerrado por ordem do imperador bizantino Teodósio II (em 426), em nome do proselitismo cristão e da luta contra o paganismo. Mas Asclépio, o deus-médico, o seu culto e os seus templos (a começar pelo de Epidauro, o mais belo e o mais célebre de todos) continuam, ainda hoje, a exercer um grande fascínio sobre nós, sendo uma referência obrigatória para a compreensão da história da medicina, das profissões, das instituições, das representações e das práticas de saúde no Ocidente.
Há que fazer, em todo o caso, uma distinção entre as práticas médicas laicas e as práticas médicas religiosas na Grécia Antiga. É justamente com a medicina racional hipocrática que se fará a ruptura em relação à medicina mágico-religiosa, associada ao culto de Asclépio.
Em todo caso, o termo asclepíades (originalmente, um sacerdote do asclepeion) vai popularizar-se em Roma como sinónimo de médico, como apelido de médicos e até como nome próprio.
Antes de Galeno, é Asclepíades (muito provavelmente um pseudónimo) o primeiro médico grego a conhecer a glória e o sucesso em Roma, onde chega em 91 a. C. (Sournia, 1995, p. 58). Recorde-se que os romanos consideravam indigno de um cidadão a prática da arte de curar, razão por que esta estava na mãos dos escravos (a cirurgia) ou dos gregos (a medicina).
Em termos escultóricos, a figura mitológica de Ascéplio era simbolizada por um homem jovem, só ou em família, de pé, apoiado num cajado no qual está enroscada a serpente. Tinha, pelo menos, dois filhos, que também eram médicos, e duas filhas, Higia e Panaceia.
Para os gregos, estas duas figuras personificavam a saúde e a terapêutica, respectivamente, ou sejam, duas artes bem distintas: a de curar a doença (Panaceia) e a de proteger e promover a saúde (Higia).
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Nota do editor:
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