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terça-feira, 7 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27293: Notas de leitura (1848): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte IV: "Até 1966 eram todos voluntários" (Luís Graça)

 

A legenda e a foto são do padre Bártolo Paiva Pereira... Vêm na página 23 do livro que estamos a recensear. Podem surpreender o leitor, se tivermos em conta que o autor é capelão major reformado, serviu nas Forças Armadas durante 30 anos e tem pelo menos duas condecorações (ele, por modéstia, não o diz). 

Além disso, "não se trata da despedida de um Batalhão, mas de um contingente da PSP; o fardamento (nomeadamente os capacetes com a estrela de seis pontas do respetivo crachá) e a presença do Ministro do Interior, Santos Júnior na ponta direita da foto assim o indiciam"
 (A explicação é dada pelo nosso  camarada Eurico Dias, ex-alf mil, CCaç 4142/72, "Os Herdeiros de Gampará", Gampará, 1972/74).

Fonte: "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira (ed. de autor, Vila do Conde, 2025, pag. 23).


1. Não é seguramente o padre Bártolo Paiva Pereira que aparece na foto a benzer (com o hissope ou o asperge) o guião de mais um  batalhão que partia para Angola, ou melhor, de um contingente da PSP (Polícia de Segurança Pública). 

Não lhe façam essa maldade, a  ele que passou pelos 3 TO (Angola, 4 anos, Guiné, 2 anos, Moçambique, 4 anos), que foi capelão do Copcon e do Regimento de Comandos da Amadora, em 1975,  que demonstra grande estima, afeto e admiração pelo seus militares, e em especial pelos seus "comandos", enfim, alguém que, voluntariamente (!), passou a 1/3 da sua vida ao serviço da sua "família militar"...  Enfim, um homem e sacerdote que diz: "A minha Pátria é o Hélder" (o 1º cabo que ia à sua frente, e que morreu numa emboscada, em Cabinda, em 1962, na floresta do  Maiombe, e que terá salvo a vido seu "capelão") (*)

Não se consegue identificar a unidade que parte para Angola. Mas sabemos que não é do Exército, e um contingente da PSP. Pela legenda, terá sido  nos anos de 1961/62, portanto ainda no princípio da guerra. 

Ampliando a imagem, vê-se que o capelão da foto é já graduado em capitão. O Bártolo ainda era nessa data um alferes, com 26/27 anos (será graduado em tenente em 1963, capitão em 1965 e em major já em 1973; além disso, a sua experiência como capelão militar é no Exército.

A fotografia que encima o capº 2 ("Assistência Religiosa às Forças Armadas: Orgânica e Pressupostos" (pp. 23-44) merece uma legenda crítica por parte do autor do livro, o padre Bártolo Paiva Pereira, hoje major na situação de reforma:

  "A fotografia que abre este capítulo, é uma provocação " (sic) (pág. 23).

Uma "provocação" ?  Não, na época, mas à luz dos dias de hoje... O "aggiormanento" da Igreja Católica, mal começara. (O Concílio Vaticano II, vai de 11/10/1962, 1ª sessão, até 8/12/1965, 4ª e última sessão)... 

O que o autor pretende dizer é que os capelães não serviam (nem podiam servir) para "turiferar a guerra e as máquinas de guerra" (pág. 39)...  "Turiferar", diz o dicionário é  "queimar incenso em honra de; incensar" (em sentido figurado,  adular; lisonjear).

Este é um velho debate, entre a "corporação" e os historiadores, que ultrapassa o âmbito desta simples recensão. Segundo o autor, esta "cerimónia de despedida", esta encenação, centrada na figura do capelão, benzendo guiões e flâmulas, terá sido de "curtíssima duração" (sic) (pág. 23).

Não nos parece: visionámos vídeos antigos da RTP Arquivos (um de 1961 e outro de 1971): em ambos ainda vamos encontrar o capelão perfeitamente integrado na cerimónia de despedida, munido da sua "caldeirinha de água benta" e do "hissope" (ou asperge):
(vídeo 2' 17'')  (sem som)

"Vila Nova de Gaia, Serra do Pilar, contingente militar do Regimento de Artilharia Pesada Nº 2 (RAP 2) recebe a bênção e guião durante a cerimónia de despedida, a propósito da sua partida em missão de serviço para o Ultramar".
(vídeo 2' 44'') (sem som)

"Vila Nova de Gaia, Serra do Pilar, contingente militar do Regimento de Artilharia Pesada Nº 2 (RAP 2) recebe a bênção, guiões e flâmulas durante a cerimónia de despedida, a propósito da sua partida em missão de soberania para o Ultramar".

No espaço de 10 anos a cerimónia não mudou, pelo menos na Serra do Pilar, no RAP2: os militares já não usam é capacetes de aço... mas o capelão não dispensa a caldeirinha da água benta e o hissope...

Fica-se com a ideia de que o autor, enquanto capelão, perdeu um pouco o contacto com o "terreno", ao  passar, na Guiné, em 1965/67,  a chefiar o serviço religioso, a trabalhar no QG/CTIG ou a viver  no  "Vaticano" (o edifício ou moradia onde estava instalado o capelão-chefe, em Bissau), longe dos quartéis do mato). (Curiosamente, ainda não descobrimos a localização do "Vaticano", na Bissau Velha.)

Neste 2º capítulo faz-se também o "historial" da capelania militar, desde a I Grande Guerra. Dispensamo-nos de entrar aqui em grandes detalhes. Mas recomendamos a sua leitura a quem quiser saber mais sobre o tema.



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > 1941 > O primeiro Natal passado na ilha. Foto: arquivo de Luís Henriques (1920-2012) / Luís Graça (202o)


Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Também houve (e muitos, algumas dezenas de milhares de) expedicionários na II Guerra Mundial. Alguns dos nossos pais estiveram em Cabo Verde, outros nos Açores, ou na Madeira, quiçá em Angola e Moçambique.

Estranhas-se,  por isso, que, no auge da "glória" do Estado Novo, no princípio dos anos 40, não houvesse capelões militares,  ou pelo menos um embrião de serviço de assistência religiosa aos nossos militares, destacados em missão de soberania para as ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo Verde) bem  para outras partes do império (nomeadamente Angola e Moçambique). Diz o autor:

"Portual não entrou na 2ª guerra mundial (1939-145). Por isso, não houve capelães destacados para esse conflito mundial" (pág. 24)...

Não é bem assim, estimado padre Bártolo, está a esquecer-se do caso de Timor onde, numa lista dos cerca de uma centena de portugueses mortos durante a ocupação japonesa (1942-1945),  há pelo menos quatro padres católicos:
  • Padre António Manuel Pires, missionário (assassinado em Ainaro, a 2 de outubro de 1942);
  • Padre Norberto de Oliveira Barros, missionário (idem);
  • Padre Abílio Caldas. missionário, natural de Timor (assassinado em Barique, em data ignorada):
  • Padre Francisco Madeira, issionário (foragido, morto no mato, na região de Lacluta, em data ignorada).
E de entre os mais de 40 mil timorenses que se estima terem morrido (ou sido mortos), durante a ocupação japonesa, muitos seguramente seriam católicos ou cristãos.

Ficamos a saber, isso sim, é que "só em 29 de maio de 1966 foi erigida canonicamente a Diocese Castrense", por acordo entre a Santa Sé  e o Governo de Portugal (pág. 24), sendo essa data a da "oficialização" do serviço  de assistência religiosa nas Forças Armadas, cinco anos e tal depois do início da guerra em Angola. 

O primeiro bispo castrensne seria o próprio Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira. E só no ano seguinte, 1967, se realizou o 1º curso  de capelães.

Isto quer dizer que até então todos os capelães militares eram voluntários, foi o caso do padre Bártolo.

(...) "De início os capelães eram mobilizados na base do voluntariado. Aconteceu comigo e com muitos outros. 

As Forças Armadas pediam à Igreja um sacerdote para enquadrar os seus batalhões. E a Igreja arquitetou um plano militarmente bizarro, pastoralmente muito acertado. (...) 

A Igreja nunca concedeu padres ao Estado, apenas os emprestava por um período de vinte anos, ou até se alcançar o poste de major. Findo esse tempo, voltavam à diocese. A imposição aparece com o primeiro Curso Oficial de Capelães, em 1967 (...) (pág. 52, negritos do autor).

E parece que essa medida eclesiástica não foi de todo pacífica:

(...) "Começa a obrigatoriedade  da mobilização. Começa o conflito eclesiástico. Começa o sarilho  da relação de muitos padres com os seus superiores religiosos, Começa o choro da  consciência  de alguns reverendos que não desejavam  exercer a pastoral castrense  em clima de guerra" (pág, 52)...

Temos no nosso blogue várias histórias desse conflito, que começa por ser um conflito de consciência... 

O padre Bártolo também refere e analisa o caso de vários antigos capelães, três dos quais mais polémicos, o meu  primo Horácio Fernandes, o Padre Mário de Oliveira (ou Mário da Lixa) e o Arsénio Puim... Todos eles membros da nossa Tabanca Grande. O Mário da Lixa, já falecido, infelizmente. Os outros dois acabaram por pedir a "redução ao estado laical", um tabu antes do Concílio Vaticano II. (**)

 (Continua)
___________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes anteriores da série:




(**) Poste anterior da série > 29 de setembro de 2025 > 7 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27291: Notas de leitura (1847): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte II: "Ó Beatle, queres mesmo ir para a Guiné ?", perguntou-lhe o antigo patrão, o sr. António Muchaxo... (Luís Graça)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27253. Timor-Leste: passado e presente (33): tenente Manuel de Jesus Pires (Porto, 1895 - Díli, 1944): os timorenses não o esqueceram, Portugal levou muito tempo a reabilitar a sua memória




Homenagem de Timor- Monumento erigido em Dili: "Ao adminsitrador Ten. Manuel de Jesus Pires (1895-1944)". Foto: Ludwig Müller. Cortesia: Wikimedia Commons


O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires, na série "Abandonados" (realização de Francisco Manso, produção RTP, 2022). 
A série, em sete episódios, pode ser vista iu revistra na RTP Play.

Imagem: cortesia de RTP e
 

1. Oitenta anos depois da rendição do Japão aos Aliados e da retirada das suas tropas do território de Timor-Leste, a patir de 6 de setembro de 1945 (*), há uma história que não pode ser esquecida, a do tenente e administrador colonial Manuel de Jesus Pires (Porto, 1895 - Dili, 1944). Os timorenses não o esqueceram. Portugal levou muitos anos a reabilitar a sua memória. Tem oito referências no nosso blogue.

(...) "É uma história de filme, um drama épico. A história de um oficial português que ajudou a evacuar de Timor, invadido pelos japoneses, centenas de portugueses, em três operações heróicas. Morreu às mãos do invasor".

In: Tenente Pires | São José Almeida | Público, 10 de Fevereiro de 2008, 0:00


Deste artigo, de 10/2/2008, permitimo-nos fazer uma condensação, a partir de alguns excertos. Este homem, este militar, este português, merece ser melhor conhecido. Morreu, há 81 anos, às mãos dos carrascos, sem ver a terra, Timor, que ele tanto amava, liberta dos seus invasores e ocupantes nipónicos.

Maria de Lourdes Cal Brandão, viúva de Carlos Cal Brandão (1906-1973) tinha 93 anos quando deu esta entrevista ao "Público", em 2008. Ficamos a saber, por este valioso  trabalho de pesquisa da jornalista São José Almeida, que:

  • em 1943 tinha 27 anos;
  • era a esposa de um deportado político (em Timor desde 1931), o dr. Carlos Cal Brandão, jovem advogado do Porto;
  • nesse ano conheceu Elisa Pires, a filha do tenente Manuel de Jesus Pires, e de uma timorense, Domingas Boavida, que tinha apenas 8 meses;
  • tornou-se amiga da Elisa e da mãe num campo de refugiados na Austrália.


Maria de Lourdes havido fugido de Díli com mais 80 pessoas. O grupo havia atravessado a ilha pelo Monte Ramelau ( "Foho Ramelau", em tétum, a mais alta montanha da ilha, que se eleva a quase  3 mil metros). A fuga fora organizada pelo marido e pelo tenente Pires.

(...) Quando chegou ao sul, embarcou num dos navios australianos que transportaram 700 pessoas, todas brancas, a partir da praia de Betano.(...)

A Elisa e a mãe, timorense, embarcariam a 10 de janeiro de 1943, na praia de Aliambata, com mais 54 pessoas, num navio holandês. O embarque foi organizado pelo tenente Pires. Foi o primeiro, com destino à Austrália, em que foram evacuados timorenses.

(...) Este é o resultado (...) de uma bem sucedida pressão do tenente Pires e de Cal Brandão junto dos australianos para que a evacuação inclua também timorenses. (...).

A jornalista cita o investigador António Monteiro Cardoso em "Timor na 2ª Guerra Mundial - O Diário do Tenente Pires" (editado pelo ISCTE). (O historiador morreu, entretanto, aos 65 anos, em 2016.)

A partir da Austrália, e com apoio dos australianos, os dois resistentes portugueses, o Cal Brandão e o tenente Pires, empenham-se em salvar mais gente, e nomeadamente mulheres e crianças.

(...) Um mês depois, a 10 de fevereiro de 1943, a partir da praia de Barique, o tenente Pires aceita ser evacuado com um grupo de timorenses e portugueses num submarino americano, porque acredita que fazer contactos diretos na Austrália será mais eficaz para salvar os que ficaram para trás. (...)

E até junho desse ano, de facto, o tenente:
  • desdobra-se em contactos com as autoridades australianas;
  • escreve a diversas personalidades (Salazar e Getúlio Vargas, presidente do Brasil, entre outros outros);
  • o seu apelo ("libertem Timor e salvem os portugueses e timorenses escondidos nas montanhas") não é atendido;
  • tem, contra si, um conjuntura geopolítica e militar desfavorável.

Timor, de facto,  era um mero peão no "tabuleiro de xadrez" da guerra do Pacífico. Os Aliados (a começar pelos EUA) tinham outras prioridades.

Salazar, por outro lado,  sempre se manifestara contra toda e qualquer evacuação: os portugueses residentes em Timor tinham o dever de ficar, mesmo à custa da vida de alguns (ou até da maior parte), sendo essa a única forma de garantir a recuperação, a reafirmação e o reconhecimento da soberania portuguesa no final do conflito.

Era, além disso, contra toda e qualquer manifestação de hostilidade em relação aos japoneses (com medo, nomeadamente, de perder Macau). Cautelosamente devia esperar que o peso das armas começasse a pender para o lado dos aliados.

Estima-se que terão morridos mais de 10 por cento 
(c. 40 mil) da população da ilha 

(...) "É então que o tenente Pires, persistente, consegue que os australianos o levem de novo para Timor com um pequeno grupo de operacionais portugueses - Patrício Luz, Casimiro Paiva e Alexandre Silva. (...)

No início de julho de 1943, ele e os seus companheiros juntam-se ao grupo de Cal Brandão. Fiel à sua palavra, a 3 de agosto faz evacuar para a Austrália, a partir de Barique, mais 87 civis, portugueses e timorenses.

Fica em Timor, à espera de boas novas dos Aliados e do Estado Português. Um mês e tal depois, já em setembro, o tenente Pires tem a infelicidade de ser ferido numa anca. Num terreno extremamente acidentado como o Timor, isso era fatal. É feito prisioneiro pelos japoneses, ele e os companheiros. Já não chegará a conhecer a alegria da vitória, morre mais de um ano antes. No cativeiro, em Dili, em circunstâncias que nunca foram esclarecidas.

Nessa altura, a pequena Elisa Pires, f vivia há nove meses no campo de refugiados de Armidale, com a jovem mãe, timorense, assim como Maria de Lourdes Cal Brandão.

Restabelecida a paz, regressam todos a Timor, em setembro de 1945. Carlos Cal Brandão e a mulher não 
são autorizados a desembarcar pelas autoridades portugueses da ilha.

Num gesto que só podia ser de grande amor maternal, Domingas Boavida, entrega a pequena Elisa, com 3 anos, a Maria de Lourdes e Carlos Cal Brandão, para que a possam educar no Porto. Os Cal Brandão passaram a ser os seus padrinhos.

A viagem de regresso a Portugal é penosa, o navio pára em todas as colónias, até que aporta em Lisboa em fevereiro de 1946. Os três chegam, finalmente, ao Porto onde Cal Brandão, advogado, tem os pais e o irmão Mário (que virá a ser governador civil do Porto a seguir ao 25 de Abril de 1974),

Em 2008, com 65 anos, quando dá esta entrevista ao jornal "Público", "a imagem que Elisa tem do pai biológico é construída":

(...) Uma espécie de memória dos outros que lhe foi transmitida. Elisa Pires nunca conheceu o pai, Manuel de Jesus Pires, oficial português que ficou para a história como o tenente Pires e viveu mais de 20 anos em Timor.(...).

Cal Brandão e a mulher, os padrinhos de Elisa, ensinaram-lhe a preservar a memória do pai. Fala dele, à jornalista, com orgulho:

(...) "Penso que, como militar republicano respeitava a pátria e a honra e que pôs isso em prática. Depois, a responsabilidade do povo que governava, fê-lo realmente lutar por aquilo que achava melhor para os timorenses. Foi uma pessoa de bastante coragem. Que se sujeitou a tudo para levar as ideias dele para a frente". (...)

Elisa nasceu a 22 de abril de 1942, em Baucau, distrito timorense de que o tenente Pires foi administrador. A mãe tinha então 16 anos.

(...) A minha mãe nunca me escreveu, apesar de educada numa missão católica. Conheci-a, quando [já adulta] regressei a Timor. Veio ver-me a Díli. Foi uma visita e um encontro não como mãe e filha, porque éramos desconhecidas. Gostei de a conhecer, mas éramos desconhecidas. Nessa altura já tinha outros filhos, já tinha refeito a sua vida. Ainda hoje vive perto de Baucau (...).

Elisa manteve o contacto com Timor, a mãe e os seus meios-irmãos, de acordo com o desejo expresso pelo casal Cal Brandão.

(...) "Os meus padrinhos, principalmente o meu padrinho, tiveram sempre a preocupação de não me deixar esquecer o meu pai. Levou-me aos meus avós paternos que viviam no Porto, fui várias vezes fazer visitas" (...)

Ao fim de quatro anos no Porto, Elisa entra, como interna, no Colégio da Liga dos Combatentes. Por outro lado, sendo filha de oficial, era pressuposto poder ingressar no Instituto de Odivelas. Mas em 1952 a sua entrada foi recusada.

(...) "A explicação que me deram foi que o meu pai não era casado com a minha mãe, isto quando um oficial português era proibido de casar com gentios. Não sei se foi por isso, se foi pela atitude do meu pai durante a guerra." (...)

Elisa fez então a escola comercial e, em 1967, volta a Timor, onde trabalhou durante dois anos na Repartição Provincial dos Serviços de Administração Central.

Em 1969, com o irmão Jaime destacado em Angola, na Força Aérea, Elisa vai para Luanda. Fica lá até à descolonização, altura em que veio para Lisboa como funcionária da empresa na qual trabalhava, a Celcat. Estava reformada quando deu a entrevista.

Quando regressou a Timor, Elisa Pires é confrontada com a força da memória do pai e o seu prestígio entre os timorenses.

(..) "Toda a gente me falava dele e depois, mais tarde, construíram-lhe um monumento [em 1973], mas antes já havia a Ponte Tenente Pires, em Viqueque. Era uma pessoa conceituada, até pelos próprios indígenas, porque lutava por Timor e por eles. Sempre foi muito igualitário, contribuiu para que houvesse evacuação de timorenses durante a guerra." (...)

Essa memória não se perdeu também em grande parte por mérito dos Cal Brandão que trouxeram, além de Elisa, os cadernos com o diário do tenente Pires.

A partir do Natal de 1942, em plena fuga pelo interior de Timor, o tenente Pires começara a escrever um diário. Que continuou na Austrália.  O último registo é anterior á sua entrada  no submarino no qual regressou a Timor para morrer.


2. O diário fora entregue ao Carlos Cal Brandão por um amigo comum. Chegou a Portugal escondido na bagagem de uma amiga de Maria de Lourdes.

(...) Para António Monteiro Cardoso, este diário é "o brado de um homem isolado e abandonado pelo seu país e pelos Aliados e que, não obstante não desiste, movido pelo cumprimento da palavra dada. O relato de um drama humano de alguém a quem ninguém dá ouvidos. A sua honestidade leva-o para a missão que sabe que não tem saída".(...)

Manuel de Jesus Pires nasceu no Porto, a 6 de março de 1895 Estudou na Faculdade de Ciências do Porto. Na Escola de Guerra, acabou o curso de Infantaria em 1917. No verão desse ano, foi para França, integrado no Corpo Expedicionário Português. Regressado a Portugal, ajudou a combater a Monarquia do Norte e a depor Paiva Couceiro no ano seguinte.

(...) Em junho de 1919 é requisitado pelo ministro das Colónias, João Soares, pai do ex-Presidente Mário Soares, para ir para Timor. O então alferes Pires chega a Timor a 25 de setembro de 1919, com 24 anos. É aí que passará o resto da sua vida até morrer, em 1943, aos 48 anos, como prisioneiro de guerra dos japoneses.(...)

(...) Logo em novembro de 1919 foi nomeado comandante militar de Viqueque, cargo que exerceu até 1928. Foi também chefe dos serviços de Fomento Agrícola, ajudante de campo do governador, comandante militar do enclave de Oecussi, administrador civil de Manatuto, governador de Fronteira e, a partir de 1937, governador de Baucau. (...)

(Recensão, condensação, fixação / revisão de texto: LG)


3. Recorde-se que, de entre alguns dos heróis (portugueses e timorenses) que resistiram à ocupação nipónica, estão sem sombra de dúvida (**):

  •  o chefe de posto de Laga, Augusto Leal de Matos e Silva, 
  • o chefe de posto de José Plínio dos Santos Tinoco 
  • e o tenente Manuel de Jesus Pires, administrador de Baucau. 

Os três morreram na prisão, às mãos dos japoneses, em 1944. Foram esquecidos na hora de honrar os mortos. Tinham cometido o erro de se  "aliarem" aos australianos, o que era imperdoável aos olhos de Salazar...

Todos deveriam ter sido louvados por atos heróicos... Recorde-se que  em 3 de agosto de 1943 ajudaram a embarcar, em duas vedetas australianas, perto da "alfândega" de Barique, um grupo de foragidos portugueses e timorenses (com destaque para mulheres e crianças). Mas em Timor ficou um grupo de voluntários, em missão, de observação, de que faziam parte os seguintes portugueses:

  • Tenente Manuel de Jesus Pires (Porto, 1895-Díli,1944);
  • Chefe de posto Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944);
  • Chefe de posto José [Plínio dos Santos] Tinoco;
  • Enfermeiro Serafim [Joaquim] Pinto;
  • Radiotelegrafista Patrício Luz;
  • Cabo de infantaria João Vieira. 

Todos eles morreram na prisão japonesa de Díli [em 1944] , com exceção do Patrício Luz que logrou  esconder-se entre timorenses, amigos da sua família.
_________________

Notas do editor LG:

(*)  Último poste da série > 19 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27230: Timor-Leste: passado e presente (32): a rendição dos japoneses foi há oitenta anos, foram-se embora, sem castigo, lá deixando mais de 40 mil cadáveres de timorenses, portugueses, australianos, holandeses...


(**) Vd. postes de:



sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27230: Timor-Leste: passado e presente (32): a rendição dos japoneses foi há oitenta anos, foram-se embora, sem castigo, lá deixando mais de 40 mil cadáveres de timorenses, portugueses, australianos, holandeses...




Bandeira do Império do Sol Nascente: símbolo de terror no Pacífico, durante a II Guerra Mundial , e mais exatamente entre 7 de dezembro de 1941 e 2 de setembro de 1945 (data da rendição oficial e incondicional do Japão).  

Em Timor-Leste, invadido e ocupado desde 19 de fevereiro de 1942,  completamente isolados do mundo desde julho de 1943, sem telecomunicações, os habitantes  só souberam da notícia do fim da II Grande Guerra e do armistício em 1 de setembro de 1945 (!)... As tropas ocupantes só começaram a retirar da ilha a 6 de setembro (*).

Portugal recuperou a soberania da Timor, ao fim de três anos e meio de ocupação do território pelas tropas japonesas. Morreram perto de uma centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a Portugal), em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato, sem falar das muitas dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos (no mínimo, 40 mil).

O Governador, cap inf Ferreira Carvalho, rapidamente decidiu a reocupação da ilha, e o restabelecimento da autoridade portuguesa, o que foi feito em tempo tempo-recorde de 14 dias.


1. A ocupação japonesa de Timor-Leste, então colónia portuguesa, durante a II Guerra Mundial,  decorreu entre fevereiro de 1942 e setembro de 1945. Foi marcada por violência extrema, genocídio,  guerrilha, colaboração e imenso sofrimento para a população local (incluindo a pequena comunidade portuguesa, constituida por desterrados, missionários católicos, funcionários civis e escassos militares).

Apesar da neutralidade de Portugal durante a II Guerra Mundial, Timor-Leste tornou-se um campo de batalha estratégico no teatro do Pacífico, principalmente devido à sua proximidade com a Austrália (Dili ficava a c. 700 km de Darwin).

Passam, este mês, 80 anos desde o fim da guerra do Pacifico (7 de dezembro de 1941 - 2 de setembro de 1945). Os japoneses tiveram a infelicidade de ter um governo militarista e  totalitário e os timorenses o azar de ficarem na rota das suas loucas ambições imperiais de subjugar toda a Ásia e a Oceania...


 Ocupação de Timor-Leste na II Guerra Mundial (1942-1945)> Principais factos e datas


A invasão japonesa ocorreu na noite de 19 para 20 de fevereiro de 1942, com desembarque de cerca de 1500 soldados; ao mesmo tempo, a marinha e a força aérea nipónicas atacavam a parte ocidental da ilha, sob administração holandesa (a capital Kupang e outros pontos).

Logo a seguir, em 24 de fevereiro de 1942, foi introduzida a moeda militar japonesa como única com circulação legal em Timor. A administração civil portuguesa não foi formalmente deposta: era preciso salvar as aparências.  

O governador português e o seu escasso corpo de funcionários ficarm circunscritos à residência oficial em Díli após maio de 1942. Mas era uma administração fantoche. 

A resistência aliada, composta por australianos (Sparrow Force), holandeses, meia dúzia de ingleses, e civis, portugueses e timorenses,  continuou sob a forma de guerrilha nas montanhas. O apoio da população local está bem documentado, apesar dos focos de rebelião contra os portugueses (as  famigeradas "colunas negras", armadas ou toleradas pelo ocupante).

O interesse estratégico aliado pelo território irá, entretanto, diminuir e, a partir de fevereiro de 1943, a maioria dos comandos australianos foi evacuada.

 A ocupação terminou apenas após a rendição do Japão, em 2 de  setembro de 1945, e o regresso da administração portuguesa efetiva

A ocupação resultou em intenso sofrimento: houve peloo menos 40 mil mortos  entre timorenses e portugueses (cerca de 10% da população da época), devido a massacres, fome, doenças e trabalhos forçados.

Houve repressão violenta contra qualquer suspeita de apoio aos aliados, envolvendo represálias, torturas, fuzilamentos públicos e deportação em massa da população de Díli para o interior.


NBa resistência ao oocupante, destacou-se, de entre muitos outros,  a figura do régulo Aleixo Corte-Real (Dom Aleixo), fuzilado pelos japoneses em 1943 por ter colaborado com as forças aliadas e apoiado a população local. 

Envolveu-se também a comunidade portuguesa local, ora na resistência armada, ora tentando proteger a população timorense, apesar das ordens de estrita neutralidade vindas da metrópole. 

De entre os portugueses, resistentes, destaque-se  o tenente (e antigo administrador de Baucau) Manuel de Jesus Pires (durante anos e anos totalmente esquecido) (Foto à esquerda, com dedicatória manuscrita à "amiga Maria", e data de 6/3/1943, um ano antes de morrer, às mãos dos japoneses, no cativeiro; fonte: blogue Uma Lulik  > 10 de fevereiro de 2008 > Tenente Pires). (Julgamos que a Maria da dedicatória fosse a jovem esposa de Carlos Cal Brandão, o advogado, seu conterrâneo, do Porto, ali desterrado desde 1931.)

A maior parte das infraestruturas urbanas e povoados de Timor Leste foi destruída pelos combates e bombardeamentos aéreos: Díli sofreu mais de 90 ataques aéreos ao longo da ocupação, a maior parte da aviação aliada.

(i) Contexto e invasão aliada (1941)

17 de dezembro de 1941:

  • antecipando uma mais que provável invasão japonesa, e  para prevenir a instalação de bases japonesas, uma força de 400 comandos australianos e holandeses (e alguns ingleses) desembarca em Díli, contra a vontade e os protestos do governador português, Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho;
  • o objetivo era criar uma linha de defesa avançada e impedir que o Japão usasse a ilha como base para atacar a Austrália;
  • Lisboa protestou em vão, mas veementemente, contra esta violação da sua neutralidade (com mais veemência do que dois meses depois).

(ii) A invasão japonesa e o início da resistência  (1942)


19-20 de Fevereiro de 1942:

  • o Império do Sol Nascente, usando a presença aliada como pretexto para a invasão, lança um ataque massivo, de cerca de 1500 soldados em Díli, ocupando rapidamente a cidade;
  • o pequeno contingente aliado e as forças portuguesas (não mais do que  600 homens, no total, incluindo uma companhia de timorenses, mal armados, e enquadrados por meia dúzia de graduados metropolitanos) são rapidamente subjugados na capital.
  •  a marinha e aviação japonesas  bombardeiam  Kupang (Timor holandês) e noutros pontos estratégicos da ilha;


finais de fevereiro de 1942:

  • os soldados aliados sobreviventes, principalmente australianos da "Sparrow Force", recuam para as montanhas do interior da ilha;
  • com o apoio crucial da população timorense, que lhes fornecia comida, abrigo e informações,  iniciam uma mais que improvável campanha de guerrilha contra as forças nipónicas.

(iii) A guerra de guerrilha e o apoio timorense (1942)



março - dezembro de 1942:

  • os comandos australianos, conhecidos como os "fantasmas de Timor", infligem pesadas baixas às tropas japonesas, sabotando as suas operações e linhas de comunicação;
  •  estima-se que mais de 1500 soldados japoneses foram mortos nesta fase, ao custo de apenas cerca de 40 baixas australianas;
  • a resistência não teria sido possível sem o apoio ativo dos timorenses: muitos serviram como guias, informantes, e carregadores (chamados "criados" pelos australianos); esta colaboração, no entanto, teve um custo terrível, pois os japoneses retaliaram brutalmente contra as aldeias que ajudavam os aliados.

agosto de 1942: 

  • os nipónicos lançam uma grande contraofensiva para esmagar a guerrilha, intensificando a violência contra os civis (e fazendo recurso às famigeradas "colunas negras", timorenses de um lado e do outro, arregimentados para espalhar o terror),

(iv) a  retirada aliada e o isolamento total (1942-1943)

dezembro de 1942 - fevereiro de 1943: 

  • face à insustentabilidade da situação, a marinha australiana realiza uma série de operações secretas para evacuar os seus soldados; a grande maioria dos comandos é resgatada, deixando a população timorense à mercê da brutalidade das forças de ocupação japonesas e dos seus colaboracionistas; 
  • as autoridades e cidadãos portugueses que não tinham sido evacuados foram, na sua maioria, internados em campos de concentração;

(v) O auge da ocupação japonesa e a fome (1943-1945)

  •  com a saída dos aliados, os japoneses consolidaram o seu controlo, impondo um regime de terror; civis timorenses foram executados, torturados e forçados a trabalhos pesados;
  • as forças japonesas confiscaram colheitas e gado para sustentar o seu esforço de guerra; o colapso da agricultura e da pecuária, combinada com os bombardeamentos aéreos aliados que visavam as posições japonesas nos anos seguintes, levou a uma fome generalizada que devastou a população.

(vi) O fim da guerra  (1945)

  • 6 e 9 de agosto de 1945:  bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaãqui;
  • 15 de agosto:  o  Imperador Hirohito anuncia a rendição incondicional do Japão, terminando a II Guerra Mundial.
  • 5 de setembro: o comandante das forças japonesas em Timor-Leste,  coronel Kaida Tatsuichi, encontra-se com o governador português interino para comunicar a rendição;
  • 6 de setembro;: os japoneses começam a retirar do território;
  • 11 de setembro: as forças japonesas em Timor rendem-se formalmente aos australianos em Kupang (capital da parte holandesa).
  •  a 27, chegam a Díli os avisos "Bartolomeu Dias" e "Gonçalves Zarco", e, dois dias depois, a 29, o aviso "Afonso de Albuquerque" e o T/T "Angola", vindos de Lourenço Marques, e ainda, a 9 de outubro, o vapor "Sofala", com tropas expedicionárias, novos funcionários e mantimentos.

Em resumo: 

  • a invasão de Timor demonstrou os limites da neutralidade  portuguesa e as ambiguidades ou fragilidades da diplomacia do Estado Novo durante o conflito;
  • a experiência da ocupação e resistência marcou profundamente a identidade timorense, sendo memória central da história do país e das relações com Portugal e a Austrália;
  • estes factos e datas  são unanimemente reconhecidos nas fontes académicas, relatos de sobreviventes e historiografia portuguesa, australiana e timorense, confirmando que ocupação japonesa foi uma das maiores catástrofes da história de Timor-Leste (infelizmente seguida, 30 anos depois, pela ocupação dos indonésios); 
  • embora os números exatos sejam difíceis de apurar, as estimativas indicam que entre 40 mil  e 70 mil timorenses (Ramos Horta fala em 40 mil)  terão morrido,  em resultado direto da ocupação e da violência, ou seja indireto, através da fome e das doenças (uma perda que representava entre 10% a 15% da população da época, um a proporção mais ou menos equiparável ao do genocídio praticado pelos indonésios, entre 1975 e 1999).

Vd. RTP Ensina > A ocupação  de Timor pelos japoneses (vídeo, 6' 01'')


(Pesquisa: LG / Blogue  + Assistente de IA (Gemini, ChatGPT, Perplexity)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
 

______________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 

(**) Vd. poste de:


14 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25941: Timor: passado e presente (21): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XII: O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27141: A nossa guerra em números (36): Auxiliares da administração colonial: régulos, sobas e liurais...


Guiné >  Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, zona leste, região de Bafatá,  tenente de 2ª linha, comandante da companhia de milícia do Cuor (nos anos 60/70), vogal do conselho legislativo da Província, craiado em 1964  [ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira]; intitulando-se Fula, era considerado pelos Mandingas e Biafadas como Biafada, em virtude da ascendência materna;  foi fuzilado pelo regime de Luís Cabral, em 1975, em Bambadinca.

Segundo informação de um dos  filhos, o engº Cherno Sanhá, formado em Cuba  (e falecido em 2016), esta foto deve ser de finais de 1960 ou princípios de 1970, quando o tenente Mamadu Sanhá foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos (pelo que terá nascido na segunda metade da década de 1930).

Foto: © Cherno Sanhá (2012). Todos os direitos reservados, [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



Timor Leste > s/d (c. 1936/40) > O "liurai" Dom Aleixo Corte-Real (1886-1943), régulo de Ainaro e Suro, um dos heróis luso-timorenses  da resistência contra os ocupantes japoneses na II Guerra Mundial.

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público.
 

1. Os auxiliares do poder colonial  nos territórios sob administração portuguesa em África (Cabo Verde; Guiné-Bissau; São Tomé e Príncipe; Angola; Moçambique) e na Ásia (Goa, Dão e Diu; Macau; Timor) tiveram diversas designações: por exemplo, régulos na Guiné, sobas em Angola, liurais em Timor. 

Vamos fazer um apanhado dessas figuras, destacando também as suas funções e o seu significado socioantropológico no âmbito da história da administração colonial portuguesa (*)


Para além dos conhecidos régulos na Guiné, dos sobas em Angola e dos liurais em Timor, a administração colonial portuguesa recorreu a uma diversidade de intermediários locais para consolidar o seu domínio nos restantes territórios. 

As designações destes auxiliares do poder variavam, refletindo as estruturas sociais e políticas preexistentes em cada colónia.

Em Moçambique, a figura central da administração local indígena era também o régulo.

 Tal como na Guiné, os régulos eram chefes tradicionais que, uma vez submetidos ao poder colonial, eram instrumentalizados como o elo de ligação entre a administração portuguesa e as populações locais. 

Os régulos eram responsáveis por:
  • cobrança de impostos; 
  • recrutamento de mão de obra;
  • e manutenção da ordem nas suas áreas de jurisdição (incluindo a aplicação dos usos e costumes jurídicos dos seus povos)

Já em São Tomé e Príncipe, a estrutura de poder local era distinta, em grande parte devido à ausência de população nativa à chegada dos portugueses  (as ilhas eram desabitadas) e à posterior organização da sociedade em torno das roças. 

A administração era mais direta, encabeçada por um Governador e chefes dos serviços públicos. Não existia uma figura de chefe tradicional indígena com a mesma relevância ou designação específica que se encontrava noutras colónias africanas.

O poder nas roças era exercido pelos seus proprietários ou administradores, sendo a mão-de-obra, em grande parte, contratada sob o regime de "serviçais".

Em Cabo Verde,  a situação era igualmente particular. Foi uma sociedade escravocrata. Devido à não aplicação do "Estatuto do Indigenato" (1929) da mesma forma que nas outras colónias africanas, a estrutura administrativa local assumiu contornos diferentes. (***)

No período inicial da colonização, existiram os capitães-mores, que detinham poderes militares e administrativos. Posteriormente, a administração local foi exercida pelos administradores de concelho, nomeados pelo governo central. 

Não se consolidou, portanto, uma figura de chefe local tradicional que atuasse como auxiliar do poder colonial com uma designação específica e generalizada como a de "régulo" (Guiné e Moçambique) ou "soba" (Angola) ou "liurai" (Timor).

Finalmente, em Macau, o contexto era único em todo o império. A administração da população chinesa, maioritária, era feita através de uma estrutura específica. 

A figura-chave era o Procurador dos Negócios Sínicos (ou simplesmente Procurador dos Chins). Este era um funcionário português, muitas vezes um vereador do Leal Senado, que tinha a responsabilidade de:

  • mediar as relações com a comunidade chinesa:
  • tratar dos seus assuntos;
  • e garantir a aplicação das leis portuguesas. 

Embora não fosse um chefe tradicional chinês, o Procurador dos Negócios Sínicos funcionava como o principal intermediário entre a administração colonial portuguesa e a vasta população chinesa residente no território, desempenhando um papel crucial na governação de Macau.


2.  Auxiliares da administração portuguesa: designaçõesfunções e significado socioantropológico.

África

Cabo Verde

  • Designações: chefes locais eram menos marcados pela figura do régulo (mais típica de Angola, Guiné  e Moçambique), já que as ilhas, sendo desabitadas, não tinham populações indígenas.

  • Surgiram “capitães-mores” e outros oficiais nomeados diretamente pela Coroa;

  • Função: administrar terras, recrutar mão de obra e controlar populações escravizadas.

  • Significado: Cabo Verde foi um espaço de “crioulagem” rápida; não havias chefias tradicionais (a não ser eventualmente informais, entre comunidades de escravos trazidos para as ilhas).


Guiné-Bissau

  • Designaçõesrégulos (chefes de tabanca ou etnia, reconhecidos pelos portugueses); cabos de terramanjuandadis (chefes de linhagem); muitos deles eram também, durante a guerra colonial, comandantes de companhias de milícias, sendo graduados em alferes, tenentes ou capitães de 2ª linha (caso, por exemplo, do tenente Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, e comandante da companhia de milícias do Cuor) (**);

  • Função: mediação entre colonos e populações locais, cobrança de impostos, mobilização de trabalho forçado (portagem, cultura obrigatória como a mancarra);

  • Significado: incorporação do poder indígena no aparelho colonial, mas com tensões: a legitimidade tradicional nem sempre coincidia com a legitimidade colonial.


São Tomé e Príncipe

  • Nas ilhas, tal como em Cabo Verde, a estrutura de chefaturas africanas foi mais fraca;

  • Havia figuras de “capitão-mor do mato” (encarregado de controlar quilombos e escravizados fugidos);

  • Função: assegurar disciplina entre trabalhadores e escravizados;

  • Significado: aqui, o poder colonial teve caráter mais direto, sem forte mediação de “autoridades tradicionais”.


Angola

  • Designaçõesrégulossobas (chefes locais, herdeiros de autoridade política pré-colonial).

  • Funções:

    • Garantir fidelidade ao governo colonial;

    • Recrutar trabalho forçado (contratados);

    • Organizar contingentes militares auxiliares;

    • Cobrar impostos (imposto de cubata).

  • Significado: o “sobado” era incorporado ao sistema colonial, mas mantendo raízes culturais próprias; o “régulo” era, muitas vezes, uma invenção colonial para transformar chefes tradicionais em agentes administrativos.


Moçambique

  • Designaçõesrégulos (chefes tradicionais reconhecidos pela administração), sipaios (força militar local auxiliar), mambos (na tradição local).

  • Funções: semelhantes a Angola: mediação, cobrança de imposto de palhota, mobilização de mão de obra, polícia.

  • Significado: figura emblemática do “indigenato” português; o régulo representava simultaneamente a continuidade da chefia africana e sua subordinação à soberania portuguesa.


Ásia

Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu)

  • Designaçõescomunidades (gaunkaris), com chefias locais chamadas patels ou desais (já existentes antes da chegada portuguesa).

  • Funções:

    • Cobrança de rendas e tributos;

    • Administração da comunidade agrícola (gaunkaria).

  • Significado: coexistência de instituições coloniais e estruturas hindu/muçulmanas pré-existentes. O colonialismo português adaptou-se às hierarquias locais.


Macau

  • Designações: chefias chinesas tradicionais (tchonsihopus), não régulos.

  • Função: mediação com autoridades imperiais chinesas, controle da população chinesa residente.

  • Significado: Macau sempre foi um entreposto dependente da boa vontade da China; os “auxiliares” eram mais negociadores sino-portugueses do que régulos no sentido africano.


Timor

  • Designaçõesliurai (chefe de suco ou reino local); datomoro.

  • Funções:

    • Subordinar-se ao governador português.

    • Garantir tropas auxiliares e cobrança de tributos.

  • Significado: a dualidade de poder entre liurais tradicionais e poder colonial foi fundamental para a resistência e colaboração em Timor.


Síntese Antropológica e Histórica


Régulo / Soba / Liurai = tradução colonial da chefia tradicional para os mecanismos de administração indireta.

Função geral: mediadores entre colonizador e colonizado; asseguravam trabalho, impostos e ordem.
Significado:

(i) criaram uma elite intermediária (chefes africanos/asiáticos legitimados pelo colonialismo):

(ii) reconfiguraram sistemas de autoridade locais (ex.: um “régulo” podia ser inventado pelos portugueses, sem linhagem ou sem tradição anterior);

(iii) reforçaram a dominação colonial pela indireta, reduzindo custos de ocupação;

(iv) no pós-independência, muitos desses chefes foram contestados ou reintegrados em novas lógicas nacionais.

 Apresenta-se a seguir uma tabela comparativa organizada por colónia, com as principais designações, funções e significado socioantropológico:


Auxiliares do poder colonial português

Região / ColóniaDesignações principaisFunções no sistema colonialSignificado socioantropológico
Cabo VerdeCapitães-mores, oficiais régiosAdministração direta; disciplina da mão de obra; defesa
Estruturas tradicionais pouco preservadas; crioulagem rápida; poder local absorvido pelo colonial
Guiné-BissauRégulos, cabos de terra, chefes de tabanca
Cobrança de impostos; recrutamento de trabalho forçado; mediação com etnias
Poder indígena cooptado; choque entre legitimidade tradicional e colonial
São Tomé e PríncipeCapitão-mor do mato, feitores
Controle de escravizados; repressão a quilombos; disciplina laboral
Autoridade tradicional quase inexistente; poder colonial direto
AngolaRégulos, sobas
Cobrança do imposto de cubata; mobilização de contratados; tropas auxiliares; polícia local
Incorporação dos “sobados” ao aparelho colonial; reforço da dominação indireta
MoçambiqueRégulos, mambos, sipaios (força auxiliar)
Cobrança de imposto de palhota; recrutamento de mão de obra; policiamento
Figura central do indigenato; fusão de chefia africana e imposição colonial
Goa, Damão
e Diu
Patels, desais, líderes de comunidades (gaunkaris)Gestão agrícola e fiscal; mediação entre comunidades e colonosContinuidade de estruturas hindus/muçulmanas pré-existentes; integração ao sistema colonial
MacauChefes chineses locais (tchonsi, hopus), mediadores luso-chineses
Negociação com autoridades imperiais; regulação da população chinesa
Autoridades locais mantidas; poder português dependente da China
TimorLiurais, datos, moros
Cobrança de tributos; fornecimento de tropas auxiliares; mediação política
Dualidade entre poder tradicional timorense e soberania colonial portuguesa

Fonte: Adapt de IA/ChatGPT  (2025)


Essa tabela mostra bem como:

  • Em África continental (Angola, Moçambique, Guiné), a figura do régulo/soba tornou-se símbolo da administração indireta.

  • Nas ilhas atlânticas (Cabo Verde, São Tomé), a chefia local foi menos relevante, substituída por cargos coloniais diretos.

  • Na Ásia, os portugueses adaptaram-se mais às hierarquias locais já estruturadas (Goa, Macau, Timor).


O papel dos auxiliares do poder colonial mudou muito ao longo dos séculos, acompanhando a forma de dominação portuguesa (do comércio fortificado → colonização agrícola → administração indireta → Estado Novo). Aqui vai a linha temporal simplificada:


Linha Temporal dos Auxiliares Coloniais

PeríodoContexto colonialPapel dos auxiliares

Séculos XV–XVIExpansão inicial; feitorias; alianças políticas (África e Ásia).Chefes locais reconhecidos como parceiros comerciais ou aliados militares. Função de mediação diplomática (ex.: sobas em Angola, liurais em Timor, líderes indianos nas comunidades de Goa).
Século XVIIConsolidação do domínio nas ilhas (Cabo Verde, São Tomé) e em partes de Angola/Moçambique.
Em ilhas: substituição por cargos coloniais diretos (capitães-mores, feitores). No continente africano: chefes locais começam a ser “nomeados” como régulos para garantir tributos.
Século XVIIIExpansão agrícola (plantations, escravatura) e militar (guerras de ocupação).
Auxiliares tornam-se cobradores de impostos e recrutadores de mão de obra escrava ou forçada. Muitos chefes locais perdem autonomia; outros fortalecem-se como intermediários.
Século XIXCrise do tráfico atlântico; abolição da escravatura; Conferência de Berlim (1884–85) exige ocupação efetiva.
Colonialismo indireto intensifica-se: régulos e sobas tornam-se parte formal da administração portuguesa (com salários simbólicos, insígnias). Funções: cobrança de imposto de cubata/palhota, policiamento, mobilização de trabalhadores contratados.
Séc XX (até 1926)Primeira República; resistência armada em Angola, Moçambique e Guiné.
Auxiliares ainda essenciais para “pacificação”; alguns chefes tradicionais resistem, outros são cooptados. Em Goa/Macau, líderes locais já eram mais administrativos do que militares.
Estado Novo (1926–1974)Sistema do indigenato em
 África; exploração máxima da mão de obra africana.

Régulos institucionalizados como “autoridades gentílicas”: recrutam trabalho, cobram imposto, controlam populações. Criam-se forças auxiliares (sipaios). Ao mesmo tempo, surgem resistências internas (régulos pró-movimentos nacionalistas).
Pós-1961Guerra colonial (Angola,
Guiné, Moçambique)


Régulos tornam-se ambíguos: uns fiéis a Lisboa (usados como propaganda de “tradição africana”), outros aderem aos movimentos nacionalistas. Papel perde legitimidade após independências.

Fonte: Adapt de IA/ChatGPT (2025)


Síntese

  • Séculos XV–XVIII → auxiliares = mediadores entre mundos (aliança, comércio, diplomacia).

  • Século XIX → passam a ser peças-chave da administração indireta.

  • Estado Novo → tornam-se instrumentos de exploração sistemática (imposto, trabalho forçado, polícia).

  • Guerra Colonial → a sua autoridade fragmenta-se; muitos deixam de ser aceites pelas populações.


(Pesquisa: LG + assistente de IA / Gemini / ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)
___________________

Notas do editor LG:


Último poste da série > 20 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27137: A nossa guerra em números (35): Qual a probabilidade de o nosso saudoso Valdemar Queiroz (1945-2025) encontrar, em Nova Lamego, Gabu, em 1970, um libanesa, de olhos verdes, fatais ?


(***) O "Estatuto do Indigenato", criado formalmente em 1929 pelo regime colonial português, nunca foi formalmente aplicado em Cabo Verde. 

A partir de 1945, com a revisão da Carta Orgânica do Império Colonial Português, ficou explicitamente estabelecido que as populações de Cabo Verde, Macau e Índia não estavam sujeitas ao regime do indigenato e tinham estatuto de cidadãos portugueses

Na prática, muitas das medidas discriminatórias e restritivas do indigenato foram aplicadas de forma indireta aos cabo-verdianos durante o período colonial, especialmente em termos de trabalho e mobilidade, mas sem o enquadramento jurídico do Estatuto do Indigenato propriamente dito.

Portanto, o Estatuto do Indigenato nunca esteve formalmente em vigor em Cabo Verde, sendo esta exceção juridicamente clarificada já em 1945
.