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sábado, 16 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23174: Os nossos seres, saberes e lazeres (501): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (46): Trancoso é muito mais do que o seu núcleo histórico (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2022

Queridos amigos,
É hora da despedida, deambula-se à volta das muralhas, espreitam-se portas e postigos, entra-se no núcleo histórico, revê-se património já conhecido, insatisfeito fico com a incursão, na verdade Trancoso merece visita mais cuidada e tem nos arrabaldes motivos para itinerância maior, basta pensar no Campo Militar da Batalha de Trancoso e Moreira de Rei. Só nos fica a consolação do que o que não se vê no inverno aguçar o apetite para vir no verão. Oxalá tal aconteça.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (46):
Trancoso é muito mais do que o seu núcleo histórico


Mário Beja Santos

Convém advertir o leitor que o programa das Aldeias Históricas de Portugal fala de Trancoso com o seu núcleo dentro das muralhas, releva esse belo espaço chamado o Campo da Feira (foi ali que se fez a apresentação do livro que aqui me trouxe, um belo espaço conventual recuperado, ali perto faz-se a feira, surpreendeu-me ver no chão uma quantidade impressionante de pilhas abandonadas a envenenar os solos, que negligência ambiental tão violenta); destaca também o campo militar da batalha de Trancoso, tem a ver com os acontecimentos de 29 de maio de 1395, castelhanos rechaçados, há o riquíssimo património de Moreira de Rei e as paisagens envolventes de Trancoso. Itinerância para outro dia, ou mais dias. Vamos completar o festim, temos pela frente a Casa do Bandarra, é um espaço que recorda alguém de nome Gonçalo Anes, o sapateiro, talvez visionário e talvez profeta, de quem pouco se sabe e muito se especula, deixou premonições e trovas onde alude à vinda do Messias, ao sebastianismo e ao Quinto Império, daí a sua importância na cultura portuguesa. Esta casa abriu portas recentemente, em 2017. E segundo a brochura oferecida ao visitante, “pretende ser um espaço capaz de transmitir ao visitante alguns dados biográficos relevantes, caracterizado por Fernando Pessoa como sendo não português, mas Portugal. Neste Centro Interpretativo será possível encontrar várias aplicações multimédia e surpresas, uma curta-metragem sobre a vida e a obra de Bandarra e, ainda, um documentário acerca das reminiscências antropológicas e sociais recolhidas a partir da sabedoria popular”. Visita-se com imenso agrado.
Bem perto da casa do Bandarra dei com algumas inscrições atribuídas a judeus convertidos, os cristãos-novos, principais vítimas da Inquisição, estão ali bem perto do Centro de Interpretação Isaac Cardoso, para quem gosta de estudar o judaísmo em Portugal tem aqui provavelmente uma esclarecedora viagem guiada de um mundo de sofrimento e esperança, de crença inabalável gravada nas pedras, mesmo com o risco de ser assado nas fogueiras.
Pormenor do Centro Interpretativo Isaac Cardoso, projeto do atelier de Gonçalo Byrne
Estas muralhas de Trancoso dão muito que falar. Já se fez referência aos sucessivos restauros e aditamentos, as últimas e bastantes importantes benfeitorias concluíram-se em 1940, há fotografias da época que mostram os casebres que entram os séculos XVIII e XIX se tinham construído, foram então demolidas e há também notícia que em 1933 se tinham colocado a meias na fortaleza. Porque castelo e muralhas são o prato substância do centro histórico, com 15 torres e cubelos, 4 portas e 3 postigos. Ao longo do tempo fizeram-se uns retalhos nas muralhas, que é o que se procura aqui mostrar, hoje seria impensável, não parariam as manifestações, ninguém aceitaria esfaquear aquelas que são talvez as mais impressionantes muralhas de castelo em Portugal.
Outro pormenor da muralha, destaca a sua monumentalidade
O Boeirinho é um postigo aberto nas muralhas, perto das Portas do Prado, tem cerca de 1,5 m de altura. Como as portas da vila fechavam ao anoitecer, este postigo servia para os retardatários. Em 1916, a autarquia pretendeu prolongar a rua do Boeirinho, rasgando a muralha naquele sítio, e pediu autorização ao Ministério da Guerra. O povo não aceitou, o escritor Antero de Figueiredo veio em defesa do curioso e pequeno postigo, enfatizou que esta porta era um documento único na defesa da vila. Enfim, a ideia de o taparem não foi por diante. Há também o Olhinho do Sol e outras portas, são aberturas nas muralhas exteriores de forma a proporcionarem o acesso dos moradores aos terrenos agrícolas.
Outra perspetiva do Boeirinho
Esta é a fachada do chamado Palácio Ducal, trata-se de um palacete que pertenceu, por casamento à Duquesa de Pozen, filha do herdeiro do trono da Polónia. Sobre a varanda central ostenta o bração da família, cujo titular mais importante foi o fidalgo D. António da Costa Coutinho Lopes Tavares e Ornelas. Prevê-se para breve a construção do Museu de Trancoso neste espaço.
É pena, está na hora de partir, vou amesendar-me em Rio de Mel, daqui seguirei para a região da Lourinhã, despeço-me com mágoa, bem gostaria de ter ido a necrópole de Moreira de Rei, ver com mais cuidado as Portas do Prado e da Traição e tanta coisa mais. Fica-me a quase segurança de qualquer dia regresso e que Trancoso me dará o seu xi coração. Sem reservas, até à próxima.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23155: Os nossos seres, saberes e lazeres (500): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (45): Trancoso castelo e muralhas, uma manhã de neblina, a presença judaica (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23155: Os nossos seres, saberes e lazeres (500): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (45): Trancoso castelo e muralhas, uma manhã de neblina, a presença judaica (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2022

Queridos amigos,
Prossegue a vagabundagem por Trancoso, as muralhas são admiráveis e não menos admiráveis os panoramas que ali se desfrutam, não basta olhar é preciso ver e conhecer para ter em conta as refregas aqui havidas, os muçulmanos deram bom trabalho para daqui sair; e houve a neblina matinal, rompeu o sol e deu gosto voltar a percorrer o casco histórico com alguma minúcia, já se chegou à presença judaica, ainda vamos continuar, mas com algum amargo de boca pois Trancoso merece mais tempo, merece enamoramento, tem muitíssimo para oferecer, e já não falo do Trancoso corográfico e etnográfico, e convém não esquecer para quem gosta de itinerâncias por outras aldeias históricas que há passeios bem perto que nos podem deslumbrar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (45):
Trancoso castelo e muralhas, uma manhã de neblina, a presença judaica


Mário Beja Santos

Impressionante e esplendoroso, é o que se impõe dizer desta fortaleza que é anterior à nacionalidade, que D. Dinis mandou reforçar com sete torres amuralhadas, restauros que começaram no século XII e que chegaram a 1940, era o ano dos centenários, e reconhecia-se que Trancoso era ponto paradigmático da reconquista cristã, da afirmação da identidade nacional, inclusivamente marcara presença nas invasões francesas e na guerra entre liberais e miguelistas. Já se disse que a torre de menagem é uma peça rara, tem forma de pirâmide truncada, uma janela árabe com arco de volta de ferradura. Terá sido, quando por ali andaram árabes, a torre albarrã, presume-se que ali se guardava o tesouro do califado. Atenda-se ainda que este castelo foi entregue aos templários por doação. Leio no texto que acompanha o mapa do centro histórico que o castelo possui restos de uma torre, que foi capela da cidadela sob a evocação de Santa Maria Madalena. Por aqui cirando, não me cansa a magnitude desta pedra e o panorama que é envolvente do castelo oferece, por 360º, é o desafogo total, foi mesmo o local privilegiado, a melhor atalaia que se podia ter encontrado.

Acabou-se a luz do dia, amanhã aqui se regressa, sai-se do local da pernoita, bem perto do teatro e do cinema, com o enorme espaço da feira pela frente, confio ter muito sol por minha conta, puro engano, mal sabia o que me esperava quando me despunha a peregrinar, bem dormido e aconchegado com uns bons ovos mexidos, pão fresco e café a preceito. Atónito, encaminhei-me para a neblina, e palavra que me entusiasmei diante daquele cruzeiro que não é o Cruzeiro do Senhor da Boa Morte, mas está perto até me recordei daquele cinema do sobrenatural e de conversas com almas de outro mundo. Encantado com tanta beleza, era só questão de agarrar aquela imagem, para nunca mais esquecer como pode ser fascinante esta neblina trancosense.

Regressa-se ao núcleo histórico a meditar em papéis lidos na véspera, até chegar o João Pestana: conquistas e reconquistas, árabes, o senhor de Leão e Castela, a chegada de D. Afonso Henriques que de tão agradecido prometeu construir um mosteiro em Tarouca, em todos os papéis lidos diz-se com ufania é que se depois desta vitória de Trancoso é que ele usou pela primeira vez o título de Rei de Portugal; por aqui também se batalhou depois da morte de D. Fernando I em prol do mestre de Avis, dá-se como inequivocamente comprovado a batalha de Trancoso em 29 de maio de 1395, Trancoso também tem a ver com o Magriço, um dos 12 de Inglaterra, Camões concedeu-lhe espaço no Canto VI d’Os Lusíadas, e temos os judeus, Bandarra, Trancosenses ilustres como o Padre António Soares ou a pintora Eduarda Lapa, isto em notas soltas, entro novamente pelas Portas D’El Rei, impossível não admirar a harmonia daquelas torres ameadas, a neblina favorece esta ilusão que toda a pedra vai levitar, e por aqui prossigo, pela Corredoura, até ao edifício da Câmara Municipal, quero ir conversar com o Bandarra, tem escultura em frente do edifício camarário, espero mais adiante visitar a sua casa, isto é um espaço dedicado à memória deste sapateiro e profeta.

Primeiro, a estátua. É bem recente, data de 2001, um bronze de Manuel Lopes Cardoso, em tamanho natural, parece desafiar quem tem pela frente. Tem por detrás os Paços do Concelho, estamos no antigo Terreiro de São João. Li algures que antes desta imponente construção existiam no local as casas da Abadia de Santa Maria. Em 1814, as casas estavam em ruínas, foram reconstruídas, umas décadas depois foram reparadas, não devem ter sido grande coisa, foram vendidas à Câmara que aqui edificou a sua sede, concluída em 1919. Consta que ainda nos anos 40 do século passado existia um muro que pertencia ao quintal do edifício ao lado, hoje existe uma rua, e ainda bem, de frente do Bandarra e olhando e esta bela construção há graciosidade por estar desapertada de quaisquer cercas, muros ou taludes.

Não há livro sobre a iniciação a Trancoso que não nos fale do judaísmo, são uma presença na região na Idade Média, depois veio aquela decisão catastrófica de D. Manuel I em expulsar os judeus ou obriga-los à conversão, era o preço para poder casar com a filha dos Reis Católicos. Escreve-se que o monarca não queria que os judeus saíssem de Portugal e que terá impulsionado a sua conversão, fez promessas de tentar proteger os cristãos novos, acontece que a seguir veio a Inquisição que implantou terror. O centro histórico de Trancoso contém o maior número de marcas mágico-religiosas, 117, distribuídas essencialmente na parte Este do aglomerado urbano – é uma das heranças deixadas pelos judeus e cristãos novos, marcas de simbologias e abreviaturas religiosas. Há esculturas como as que encontramos na fachada da Casa do Gato Preto. Sem certezas, aponta-se que o antigo Bairro Judeu estaria localizado na zona mais rica da cidade, junto às Portas d’El Rei, na Corredoura.

Casa do Gato Preto, é visita obrigatória na peregrinação ao judaísmo em Trancoso, trata-se do Leão de Judá

Pode não ser, mas quem por aqui deambula encara esta escada como resquício medievo, é evidente que temos as muralhas, alcáçova, talvez o passo episcopal, as moradias de gente abastada, as igrejas e capelas, pode tudo ser ilusão de quem tira a imagem mas é um mundo antigo quem aqui venero, mesmo com todos os sinais à volta de acrescentos e adaptações, no mínimo é sinal de que estou numa aldeia histórica, e isso me satisfaz.

Aqui é o Centro de Interpretação da Cultura Judaica, tem o nome de Isaac Cardoso, pretende informar acerca da presença judaica e cristã-nova em Portugal, fornecendo conteúdos acerca do património material e imaterial do concelho. Na sala dedicada à diáspora é dado o destaque a Fernando Cardoso, foi médico na corte espanhola, andou por Veneza e fixou-se em Verona, mudou o nome para Isaac Cardoso, nome ilustre e que nos faz recordar o flagelo da Inquisição. O edifício é uma réplica de sinagoga sefardita, está construída numa perspetiva ecuménica. O passeio está prestes acabar, digo-o com pena, na posse da literatura que tão amavelmente a autarquia me cedeu descubro um bom número de edifícios que eu devia ter visitado, caso do Quartel-General de Beresford, a Igreja de Nossa Senhora da Fresta, um importante exemplar da arquitetura taro-romântica, a Igreja da Misericórdia, paciência, talvez muito em breve este meu amigo dileto tenha outro livro para apresentar e me convoque, virei prestes, sem hesitar.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23134: Os nossos seres, saberes e lazeres (499): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44): Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23134: Os nossos seres, saberes e lazeres (499): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44): Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Era o convite irrecusável de apresentar um livro de amigo dileto, acresce que é uso e costume de mandar esta belíssima região todos os anos, o hospedeiro encarrega-se de propor passeios, o último levou-nos a S. João de Tarouca e ao Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. O tempo era instável, pouca luz no primeiro dia, a manhã seguinte desabrochou em neblina, mas com agrado de quem em itinerância fez-se uma cobertura razoável do chamado Centro Histórico de Trancoso, ficou o pesar de não tirar imagens da Casa Quartel General Beresford, dos jardins, fontes e capelas. Mas há mais marés que marinheiros, e com saúde aqui se regressa, com o entusiasmo de sempre, dentro destes pedregulhos e oceanos de granito se fundou um país, aqui se guarda a lembrança do maior número de castelos que assinalam a Reconquista e as lutas pela independência.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44):
Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável


Mário Beja Santos

O pretexto era vir apresentar o novo livro de um querido amigo trancosense, uma obra de literatura memorial com muita infância e algo mais, uma exultação da natureza, da paisagem, do arvoredo que logo me embeveceu na primeira leitura; aqui cheguei com todo o agrado para lhe cantar hossanas, ele que continue na escrita e no gosto pela vida rústica. E atirei-me ao trabalho para estar itinerâncias, seguindo os ensinamentos de José Saramago, o que se vê no inverno não é o que se vê no verão, o que se vê com céu claro não é o que fixamos em dias ou horas de neblina, como algumas imagens pelo adiante comprovarão. Saí da apresentação do livro no Convento dos Frades Franciscanos, hoje Teatro Municipal de Trancoso, ciente da escassez da luz, era uma luta contra o tempo. E dirigi-me logo para um monumento que me fascina, o Cruzeiro do Senhor da Boa Morte.
Este cruzeiro é manuelino, coberto com abóbada assente sobre quatro colunas, que em 1729 um padre mandou cobrir, não sei se fez bem. Gosto de por aqui cirandar a volta deste crucifixo em granito, nele avulta a gravidade, a expressão dolorosa, como se tivesse a dizer, “vê se entendes por que te encaro de braços abertos”.
Chama-se Capela de São Bartolomeu, será templo reconstruído sobre um já existente. A reconstrução é de 1778 e foi feita em memória dos esponsais de D. Dinis com Isabel de Aragão. Sobrepujado por uma cruz e com seis pináculos nos recortes dos cunhais, com base hexagonal. Numa das paredes, há uma lápide azulejada, e vocativa do casamento real.
Chamam-se Portas d’El Rei, ao que consta era mesmo porta régia, Trancoso está emuralhada, esta é a porta a sul, tem uma abertura entre duas torres ameadas. Por cima da entrada temos o escudo da cidade. Exteriormente formam um arco abatido e interiormente um arco em ogiva. Vejo escrito que em recuadas épocas fechavam com grades de pau ou de ferro e porta em madeira. Vejamos agora o outro lado das portas.
Aqui está o arco em ogiva, gosto muito deste prédio à direita como se estivesse a embeber-se no pano da muralha, daquela luz que parece escoar-se para o infinito, daquele primor das escadas floridas e do musgo a tomar conta da pedra. É assim a vida numa vila medieval, classificada como uma aldeia histórica.
Na continuação, entramos na rua do forte comércio, procura-se mais adiante o largo do município, esta corredoura guarda as marcas do tempo, neste exato momento não se anda à procura de vestígios romanos ou muçulmanos, românicos ou góticos, ou manuelinos ou barrocos, não haja ilusões que a vila medieval teve que corresponder aos desafios impostos pelo correr do tempo, e daí o muito antigo enfrentar estas montras modernas, este lugar habitado precisa de progredir, não é propriamente um museu. Este espaço é conhecido como casa dos arcos, esta construção será dos finais do século XVII e início do século XVIII, pertencia a um solar, deu muitas voltas, tem hoje proprietários diferentes.
Foi de propósito que enviesei o ângulo, queria mostrar-vos o pelourinho de Trancoso com vista folgada para aquela rua à esquerda, novamente uma casa dos arcos mostrando a Igreja de S. Pedro, na sua largueza. O pelourinho é manuelino, tem fuste facetado sobre quatro degraus e remata como colunelos que formam uma gaiola, em número cinco. É monumento nacional desde 1910. A casa dos arcos é um belo palacete do século XVII, sofreu alterações, por aqui funcionou o Grémio da Lavoura e até um armazém de móveis. A Câmara de Trancoso adquiriu-a e adaptou-a para um residência de estudantes.
Será mesmo necessário comentar que estamos num mundo medieval devidamente requalificado?
O Castelo e as Muralhas são o monumento mais importante da cidade, estão classificados como monumento nacional, tudo começou bem antes da nacionalidade, há uma primeira menção do castelo com data de 960, vem mencionado no testamento de D. Chamôa, onde o castelo é doado ao Castelo de Guimarães. Tem sete torres, a mais imponente é a Torre de Menagem, com uma configuração em forma de pirâmide truncada. Uma dessas sete torres foi adaptada para capela. As muralhas, como soe hoje dizer-se, são o ex-libris de Trancoso. Constituídas, em todo o seu comprimento, por quinze torres, só é possível ver quatro das quinze. A muralha que hoje podemos ver tem sete aberturas, quatro portas e três postigos.
As portas e os postigos são mais do que uma curiosidade, tinham funções específicas, caso de o Boeirinho, o Olho do Sol e as Portas da Traição. Estas muralhas conheceram sucessivos restauros desde o século XII até 1939, aqui a pensar nas comemorações dos 800 anos de nacionalidade. Neste restauro foram destruídos no exterior das muralhas vários casebres que se tinham implantado ali nos séculos XVIII e XIX.
Aproxima-se o fim do dia, com o meu caótico sentido de orientação, intuo que lá ao fundo está a Serra da Estrela, mas não excluo que esteja a ver Riba Côa, mas também não vou perguntar a ninguém, estou esmagado pela beleza desta vista espaçosa, este desafogo que é tão peculiar na Beira Alta. Sem luz não se pode trabalhar, o que se não se pode fazer hoje faz-se amanhã, há igrejas, há casarios, há o espaço do concelho, importa falar do judaísmo e das suas representações na cidade. Então até amanhã.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23114: Os nossos seres, saberes e lazeres (498): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (43): Uma visita ao Museu de Setúbal/Convento de Jesus (Mário Beja Santos)

sábado, 26 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21693: Os nossos seres, saberes e lazeres (430): Os primeiros Cistercienses de Vale Varosa: S. João de Tarouca (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se reporta o primeiro itinerário cultural que alguém desenhou em Rio de Mel, concelho de Trancoso, era a primeira surpresa do dia, tudo se passaria em Vale Varosa, acontece que aqui se estivera uns bons anos antes, regressava-se para comparar.
É com manifesta alegria que se pode dizer que este país anda para a frente no respeito pelo seu património histórico, já vi este Mosteiro em pior estado, que não se duvide que é muitíssimo importante a sua visita, há vestígios da sua ligação à fundação da nacionalidade, a Ordem de Cister recebeu inúmeras doações e nos séculos XVII e XVIII aqui se construiu com pompa e não menos circunstância.
Deus permita que aqui se possa voltar dentro de alguns anos, para outra comparação ainda mais benfazeja.

Um abraço do
Mário


Os primeiros cistercienses de Vale Varosa: S. João de Tarouca

Mário Beja Santos

Toda esta digressão a Vale Varosa inicia-se em Rio de Mel, concelho de Trancoso, aqui vive um amigo dileto, um companheiro de trabalho durante décadas, instituiu-se o rito da visita anual, sempre surpreendente, abarca a cultura megalítica, paisagens frondosas, castelos que vêm da fundação da nacionalidade, aldeias históricas, templos religiosos classificados como monumentos nacionais, só em Rio de Mel é que conhecemos o itinerário, sempre surpreendente. E pomo-nos a caminho, estrada fora somos informados que vamos para Vale Varosa, primeiro o Mosteiro de S. João de Tarouca, depois amesendamos, de seguida segue-se para a ponte fortificada Ucanha, não há tempo para ir ao Convento de Santo António de Ferreirim, seguir-se-á o mosteiro de Santa Maria de Salzedas, regresso a Rio de Mel, a inevitável merenda, presunto, bacalhau e queijo, bons vinhos e doçaria. E regressaremos a Manteigas.
Muitos comentários no decurso da viagem, o que definha, o que floresce, o que estagna. E assim se chega a S. João de Tarouca, o primeiro Mosteiro Cisterciense implantado em Vale Varosa, data de 1140, é a nacionalidade na sombra tutelar de D. Afonso Henriques. Desse século XII há vestígios, a Ordem era rica e houve bons patronos ao longo dos séculos, daí as ampliações dos séculos XVII e XVIII, passou a ter dimensões colossais, com a extinção das ordens religiosas deu-se a pilhagem da pedra e é um verdadeiro mistério não se ter assaltado e desviado riqueza que vamos contemplar. Houve escavações arqueológicas entre 1998 e 2007, que abrangeu a igreja e as ruínas de dependências monásticas, é a empreitada que demorará muito tempo e que custará fortunas. Só que este monumento nacional justifica. Como vamos ver.
Começa a visita pela visualização de um belo vídeo e uma exposição de achados arqueológicos. A fachada da igreja comprova as profundas alterações dos séculos XVII e XVIII, à vista desarmada não se vê nada do século XII, as surpresas vêm no interior do templo.
Aqui sim, temos a sobriedade cisterciense recamada de azulejaria esplendorosa, belas madeiras, imagens valiosas, um Altar-Mor impressionante, gosta-se de toda esta harmonia, os corredores laterais abonam essa impressão, os ângulos das colunas são de cortar o fôlego. Ora vejam.
As Salas Capitulares, regra geral, dispõem de estadão, em contraste chocante com os princípios fundadores destas ordens mendicantes, que o foram enriquecendo ao longo dos séculos. É preciso contemplar longamente este tipo de luxo ostensivo para perceber como provocaram invejas brutais e animosidade das populações. Não se chegou por mero acaso à extinção das ordens religiosas em 1834, a despeito dos inenarráveis crimes culturais perpetrados.
Este quadro icónico de S. Pedro que viajou até à Europália de 1991 é de Gaspar Vaz e será também de Grão Vasco, há um outro aparentado em Viseu, é deste que eu mais gosto, não só pelo conjunto dentro da moldura, os aspetos aparentemente colaterais que deixam avantajar este padre da Igreja o primeiro Pontífice, assim imaginado séculos depois, com indumentárias daquela contemporaneidade, impressiona a força do olhar, a postura que marca a dignidade da função, a conjugação harmoniosa das explorações. É impressionante, só por ele vale a pena vir a S. João de Tarouca.
Quem aprecia escultura tem aqui espécimenes raros, releva destas composições barrocas o vigor da fé, espelhado na Mater Dolorosa, neste caso.
A azulejaria de S. João de Tarouca é de uma enorme riqueza. Surpreendente é este túmulo, dá-se a informação de que tem mais de 15 toneladas, grandiosidade não lhe falta, trata-se de D. Pedro Afonso, filho bastardo de D. Dinis, Conde de Barcelos, os pormenores escultóricos da caçada patentes na caixa tumular possuem uma dinâmica que nos deixa de boca aberta.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21661: Os nossos seres, saberes e lazeres (429): Recordações da casa dos espetros (Mário Beja Santos)