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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)




Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).

Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legenda; LG]
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1. Mais uma história de encontros e desencontros, nas margens da vida... Ninguém como o "alfero Cabral",  na nossa Tabanca Grande, sabe evocar, com delicadeza, compaixão e empatia, estas figuras de gente humilde que eram os nossos camaradas, ditos "básicos",  remetidos quase sempre para funções de auxiliar de cozinheiro, e cujos nomes se nos varreram da memória... Todas as companhias tinham um ou mais soldados básicos (sic)... Muitos deles já levavam, para o TO da Guiné, uma cruz às costas: ou "nasceram tortos", ou  a curta vida de 20 anos já lhes era madrasta... Tenho a imagem de um, que foi comigo no Niassa;  "ia a ferros", preso, por ser desertor, segundo se dizia...

Jorge Cabral  foi alf mil art,  Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo comandado destacamentos  como  Fá Mandinga e Missirá, 1969/71;  especialista em direito penal , professor do ensino superior universitário, reformado, é  autor desta série, "estórias cabralianas", aque há muito procuram a editora que ele merece... Mas é aqui, no nosso blogue,. que ele tem os seus melhores (e maiores) leitores e fãs desde pelo menos 2006 ...  Estas "estórias do outro lado da guerra" (87,  com esta última!) já há muito que mereciam ser reunidas em livro... E, quando o forem, vamos fazer um "grande ronco"!... Até lá, boa saúde, bons encontros, alfero!

PS - Com a sua proverbial modéstia, está-me sempre a dizer, quando lhe abordo o tema: "Publicar  um livro, para quê e para quem ? Está tudo no blogue... Quem vai compar e ler ? Os meus leitores estão todos a prazo e não vão pagar para me reler... Só se vive e escreve uma vez, camarada"...


2. Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o Alferes Sá de Miranda e a Borboleta

por Jorge Cabral


Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava.

Segundo ele fora um tigre que lhe comera três dedos do pé esquerdo, num circo de Antequera. Contava que a mãe fugira de Lisboa com um palhaço e o levara ainda bebé, mas que quando fizera dezoito anos regressara para procurar o pai,  o qual nunca chegara a encontrar.

Incorporado,  nem a falta dos dedos o safou... Na altura tinha uma correspondente, que se intitulava Madrinha de Paz. Escrevia bem e às vezes naqueles serões eu citava pequenos trechos das cartas. Uma noite li, que ela escrevera:

”Hoje sonhei que era Borboleta. Mas não serei eu uma Borboleta que está a sonhar que é rapariga?”

A gaja é maluca, foi a opinião unânime. A partir de então, quem ía buscar o correio, vinha logo ter comigo, satisfeito:
– Meu Alferes, carta da Borboleta!.

A comissão acabou. Voltei e nunca mais me lembrei nem do Espanhol nem da Borboleta...

Porém há muitos anos, frequentei com alguma assiduidade, uma “Casa de Pouca Permanência”,  hoje Hostel, ali para os lados da Praça do Chile. Tudo lá era discreto, quase secreto. Tocava-se à campainha, subia-se e as portas da casa e do quarto já estavam abertas. Ninguém via a dama, mas o cavalheiro tinha que dar a cara, junto da recepcionista, uma velhota que não pedia qualquer identificação. Pagava-se e escrevia-se o nome num caderno já gasto. Por mim fui Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e até Luiz Vaz de Camões...

Ora uma vez, para minha surpresa, a recepcionista fora substituída. E adivinhem, por quem? Pelo Espanhol. Eu reconhecio-o e senti que ele também me reconheceu. Mas não dissémos nada. Paguei e assinei. Desta vez... Sá de Miranda. Ainda lá voltei mas a velha senhora retomara o seu posto.

Foi há um mês, descia a Almirante Reis, quando mesmo em frente à Igreja dos Anjos, deparei com o Espanhol:
– É o Alferes Cabral, não é? Ou devo chamar-lhe Alferes Sá de Miranda?
– Malandro... vamos almoçar!

À mesa, diante de um arroz de tomate com joaquinzinhos, conversámos. Lembrava-se bem de Missirá e perguntou logo:
– Então, e a Borboleta?

Foi no entanto parco em informações sobre como lhe correra a vida. Todas as vidas têm altos e baixos, mas deu para entender que a do Espanhol, só teve baixos. Regressado da Guiné, ainda foi a Antequera, mas o palhaço morrera e a mãe emigrara para a Argentina. Durante estes mais de quarenta anos, sonhou ir visitá–la. E ainda sonha...
–Ah! Alferes Cabral se eu ganhasse o euromilhões...

Adeus, Espanhol, mas olha não há duas sem três. Vais ver que o nosso próximo encontro será em Buenos Aires. E até vou levar uma Borboleta, a fingir de rapariga, para dançar o tango.

Jorge Cabral

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Nota do editor:

Último poste da série >  17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association (Jorge Cabral)