Capa do livro do nosso camarada Arsénio Chaves Puim, "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada, Santa Maria, Câmara Municipal de Vila do Porto, 2021, 286 pp. Capa: Ilha de Santa Maria, do cartógrafo Luís Teixeira, 1587, Biblioteca Nacional de Florença.
1. Em 20/12/2021, por altura do Natal, o Arsénio Puim mandou-nos uma mensagem por email em que, para além dos votos natalícios, nos dizia, entre outras coisas:
(...) "Talvez estranhamente depois da minha vivência como capelão militar na Guiné, em vez de publicar um livro sobre este território e a sua guerra e a minha experiência nesse meio, optei por escrever sobre aspectos etnográficos e históricos relativos à minha pacata ilha de Santa Maria, nomeadamente, a linguagem tradicional do seu povo.
Na verdade, sempre gostei e tive curiosidade por esta temática dos falares populares. Já na Guiné, como referes, interessei-me um bocado pelo estudo do crioulo, uma língua que sempre achei muito bonita, muito expressiva e muito sonante. E sobre isso escrevi mesmo alguns trabalhos, baseados no contacto com a população local.
Isto não que dizer que, depois de regressar aos Açores, não tenha publicado, nos jornais, diversos trabalhos de natureza social e política - sobre a guerra colonial, as guerras internacionais e , sobretudo, sobre a guerra, como realidade histórica, sem causa justa, fruto da loucura e estupidez dos homens. Nestes escritos jornalísticos também abordei criticamente a passividade e conluio escandaloso da Igreja com o monstro da guerra". (...)
Estamos a falar de Arsénio Chaves Puim que, além de nosso camarada, é apresentado na Wikipédia, na entrada sobre a Ilha de Santa Maria. como um dos nove marienses ilustres: "historiador, etnógrafo, co-fundador e primeiro diretor de 'O Baluarte de Santa Maria' (segunda série), opositor ao Estado Novo, presidente da Câmara de Vila do Porto e pároco de São Pedro e Santa Bárbara".
2. Vê-se que o seu último livro, agora em 2ª edição, "revista e acrescentada", e cuja capa voltamos a reproduzir acima (*), foi escrito com muito carinho, amor e até paixão... Sem pretender ser enciclopédico, nem se arrogar o estatuto de investigador académico, Arsénio Puim não quis que a geração dos seus pais desaparecesse de todo sem que a memória da suas marcas identitárias, e nomeadamente, o seu "falar", ficassem registadas para a posteridade...
Para além do desaparecimento físico dos seus progenitores, dos seus vizinhos e dos seus conterrâneos dos seus pais, o autor está, de certo modo, a tentar prevenir, ou amortecer, de algum modo, os efeitos, avassaladores, da passagem do cilindro compressor da globalização... e a perda da identidade açoriana, em geral, e mariense, em particular.
Pequenas comunidades como as ilhas do arquipélago dos Açores estão de há muito sujeitas à influência de multiplos factores de "aculturação" externa... A periferia geográfica, a colonização do território, a pesca da baleia, a emigração para a América do Norte, a presença militar norte-americana, os contatos com o exterior,e, mais recentememte, os meios de comunicação, as novas tecnologias de informação e comunicação, a integração europeia, o desenvolvimento económico, o turismo, etc., tudo isso, teve e tem influência na cultura do povo da ilha, a sua maneira de ser, de estar e de falar.
Santa Maria, é bom recordar, é a ilha mais oriental e mais meridional do arquipélago, a mais antiga do ponto de vista geológico (mais de 8 milhões de anos) e a primeira a de ser descoberta (em 1427).
O autor dedica um subcapítulo aos "americanismos" no léxico mariense (pp. 97-110). Distingue-se três períodos que terão sido marcantes na formação desses "americanismos" ou "calafonismos" (de "calafona", termo de origem obscura, que designa, nos Açores, na linguagem informal, o emigrado que retorna aos Açores, em especial o que vem da América):
(i) a emigração para os EUA no últmo quartel do séc. XIX e primeiro do séc. XX;
(ii) a instalação, na ilha, de uma base militar de apoio às Forças Aliadas já no final da II Guerra Mundial (fins de 1944);
(iii) a emigração para os EUA e para o Canadá a partir da década de 50 do século passado, e que levou à redução da população, em menos de três décadas, em cerca de metade (, tendo a ilha hoje cerca 5,5 mil habitantes, segundo o censo de 2001).
"Embarcados, às vezes clandestinamente, em barcos baleeiros ou navios cargueiros, tiveram de enfrentar dias ou meses, e mesmo, anos muito difíciais no mar antes de desembarcarem nas costas do novo mundo (...). Uma vez na América, trabalhavam duramente, a troco de um salário módico, e viviam em condições bastante precárias (pág. 97).
Parte desta vaga de gente migrante voltou para a ilha, com algum pé de meia, logo no virar do século XIX. Um número mais significativo de famílias de Massachusetts tiveram de regressar na sequência da Grande Depressão de 1929-1933. Analfabetos na sua maior parte, estes emigrantes que retornam à ilha natal, vêm "acalafonados" e vão "enriquecer" o léxico popular local com vocábulos e expressões do inglês falado na América.
Uma segunda influência é a dos militares norte-americanos estacionados na ilha a partir de finais de 1944, em número da ordem de algumas boas centenas.
"Desde os primeiros tempos, o nosso emigrante, que, na quase totalidade, não possuía qualqier conhecimento da língua inglesa, foi apreendendo uma série de vocábulos deste idioma, sobretudo chavões, que exibia insistentemente nas suas visitas à iha" (pág. 100).
Feito este pequeno enquadramento, o autor elenca mais de uma centena de "americanismos" ou "calofonismos" que, no entanto, têm tendência para irem desaparecendo lentamente do falar quotidiano, nomeadamente entre as camadas mais jovens, escolarizadas.
3. Aqui vão, a título exemplificativo (e não exaustivo, a lista do autor são 121 entradas), e com a devida vénia, alguns vocábulos e expressões, que também ilustram bem a capacidade de adaptação e o espírito prático e expedito do mariense que passou por terras do tio Sam e que "aportuguesou" o inglês do dia a dia... Há termos "deliciosos", corruptelas do inglês, e que têm de ser ouvidas com o sotaque mariense. Entre parênteses, a origem em inglês.
Aisiulieira ("I'll see you later"): até logo, vemo-nos mais tarde...
Alvarozes ("overall"): fato-macaco que se veste por cima de outra roupa;
Àpestéres ("upstairs"); o andar de cima;
Beibicêra ("babysitter): aquela que toma conta de crianças;
Bisi ("busy"): ocupado, atarefado;
Biznas ("business"): negócios, assuntos;
Camâne ("come on"). vamos lá embora;
Chança ("chance"): oportunidade;
Chape ("shop"): fábrica, oficina;
Côrte ("court"); tribunal;
Dampo ("dump"); lixeira;
Drinque ("drink"): bebida;
Esquiusemi ("excuse me): peço desculpa;
Estôa ("store): loja, armazém;
Faite ("fight"): luta, briga;
Frijueira ("refrigerator"): frigorífico;
Friza ("freezer"): congelador;
Garbitche ("garbage"): lixo:
Jampar ("to jump"): saltar;
Landre ("laundry"); lavandaria;
Lóia ("lawyer"): advogado;
Màquêta ("market"): mercaddo;
Mechim ("machine"); máquina;
Maneija ("manager"): gerente, gestor;
Naice ("nice): bonito;
Naife ("knife"): naavalha;
Ófas ("office"): escritório, oficina;
Pari ("party"): festa;
Perigôde ("very good"): muito bom;
Pinche ("pension"): pensão de reforma;
Pinotes ("peanuts"): amendoim;
Pinhos ("pins"): alfinetes de pendurar roupa;
Raivar ("to drive"): guiar, conduzir um carro;
Râladeis ("holidays"): férias (, mais usado pelos emigrantes canadianos);
Ritaia ("retired"): reforma, reformado;
Sanababicha ("son of a bitch"): filho da mãe;
Sinó ("snow"): neve;
Spicar ("to speak"): falar;
Tanquiú ("thank you"); obrigado;
Teicarizi ("take it easy"): calma, devagar!;
Tèlaveija ("television"): televisão;
Trablas ("troubles): problemas, chatices;
Ueiramanète ("wait a minute"): espera um minuto;
Vaqueichas ("vacations"): férias...
(Continua) (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. postes anteriores :
18 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22819: Notas de leitura (1399): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte I: "Muitos parabéns, muitos parabéns, muitos parabéns!"
(**) Último poste da série > 7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22975: Notas de leitura (1417): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)