Capa do livro do nosso camarada Arsénio Chaves Puim, "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada, Santa Maria, Câmara Municipal de Vila do Porto, 2021, 286 pp. Capa: Ilha de Santa Maria, do cartógrafo Luís Teixeira, 1587, Biblioteca Nacional de Florença.
1. Não se trata de um trabalho académico, previne o autor, não sem alguma modéstia. Em "palavras prévias", da 1ª edição (2008), diz-nos que o seu livro não pretende "ser obra de carácter científico", podendo todavia "interessar a estudiosos e ao grande público".
Mais importante é o seu objetivo expresso de "contribuir para o estudo e salvaguarda do patrmónio cultural mariense, preservar a memória daquilo que se fazia no passado e do modo como se dizia,e não se perder o elo de ligação entre as gerações novas e as antigas" (pág. 10).
Eu diria que é uma obra de amor e de reconciliação do autor com o seu passado, a sua infância, a sua terra, as suas gentes. É, por outro lado, uma obra singular: "Tudo o que escrevi neste livro foi o que eu vivi, particularmete numa prineira fase da minha vida, entre meados da década de trinta e meados da década de cinquenta" (pág. 12).
E não é por acaso que o livro é dedicado aos seus Pais, António Carvalho Puim e Maria da Encarnação Chaves (, a querida mãe que perdeu num naufrágio em 19 de Setembro de 1958), e ao Povo da ilha de Santa Maria, mostrando-se o autor "grato pela herança moral, cultural e linguística que me legaram".
É um trabalho de investigação etnolinguística (, área da linguística que estuda as relações de uma língua com a cultura de um dado grupo étnico) , devendo remontar, pelo menos a meados dos anos 70. Em 1979, visitou a ilha de Santa Maria o grupo do "Atlas Linguístico- Etnográfico de Portugal e Galiza (ALEPG)", e na altura o bom do Puim cedeu "todo o material que recolhera". E acrescenta:
"Algum tempo depois, reiniciei o meu trabalho de investigação, agora mais sistematizado e tendencialmemte orientado numa linha de relação entre a linguagem e a vida". Publicaria a seguir uma séria de artigos, a partir de 1985, sob o título "O Povo de Santa Maria e o seu Falar", artigos esses que vieram a lume no jornal "O Baluarte de Santa Maria", II série (, de que foi cofundador e primeiro diretor, em 1977).
Lamentavelmente o Arsénio Puim foi vítima de apropriação indevida de parte do seu trabalho: alguns dos seus textos apareceram a público, noutro contexto, sem qualquer referência ao nome do autor e às fontes originais... Houve até um caso que veio a público em 2006.
Já reproduzidos, em nota de leitura anterior, o índice do livro. Deliberadamente o autor optou por não apresentar um "glossário" de termos e expressões do falar mariense, mas antes "enquadrar, tanto quanto possível. os elementos selecionados em pequenos recortes explicativos ou resenhas de cariz social e histórico" (pág. 16).
É aqui que o livro ganha em vivacidade, originalidade e autenticidade, tornando-se a sua leitura uma fonte de saber e prazer. É impossível sermos exaustivos na análise do seu conteúdo, mas vamos ilustrar algumas das centenas de vocábulos do léxico popular mariense, bem como locuções e expressões, americanismos, terminologia anatómica e sexual popular a par das expressões linguísticas das actividades tradicionais (como a lavoura, o linho, a pesca da baleia, o artesanato, a arquitetura, a gastronomia, etc.).
Há vocábulos e expressões que ainda, infelizmente, não estarão grafados pelos nossos lexicógrafos (ou pelo menos pelos dicionários mais correntes, disponíveis "on line"), e que não podem deixar de contribuir para a diversidade e riqueza da nossa língua.
Por exemplo, o termo "achadas" que, na ilha de Santa Maria, usa-se para designar "os objetos diversos arrastados pelo mar e achados na costa" (pág. 20). Também se diz "achadas do mar" ou "cacaréus", por se tratar de coisas habitualmente sem grande valor material. Mas noutros tempos, uma simples garrafa de rum, vazia, deitada fora ao mar pela tripulação dos navios, era um bem valioso. E com a II Guerra Mundial e a batalha do Atlântico começaram a dar à costa as coisas mais diversas, e alguns de maior volume, como bidões de gasolina, pacotes de géneros alimentícios, madeira, borracha, etc.
Ainda hoje, diz o Arsénio Puim, as "achadas do mar" teriam "um fascínio especial para as pessoas, como se fossem um dádiva maravilhosa dum mundo ignoto e longínquo" (pág. 21).
Uma palavra que seria "exclusiva e bem típica de Santa Maria é a interjeição "bei" (mais raramente, "buei"). Trata-se de "uma exclamação de admiração, a qual aspessoas reforçam alongando o som 'ei' em ondas sonoras de intensidae decrescente" (pág. 27), sendo equivalente a expressões como "parece impossível!" ou "quem haveria de dizer?!".
Diz-se que a palavra provém de um nome próprio, "Bei", um chefe mouro, do tempo das incursões dos piratas do Norte de África ao longo dos séc. XVI e XVII. (Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuesa, "bei" é um nome masculino: (i) Governador de província muçulmana; e (ii) título do soberano da Tunísia.)
Também o termo "facho", substantivo masculino, parece estar relacionado com os tempos da pirataria. Facho ou o pico do pacho designa "determinados montes existentes em diversas localidades da ilha onde (...) se vigiavam os piratas (...) e se costumava acender um facho sempre que se avistava a sua aproximação ou desembarque" (pág. 38). Vem do latim: fasculu(m) > fasclu > facho.
Curioso é o verbo transitivo "guerrear" (fazer guerra, andar à bulha) que também já ouvimos, há muitos anos, em finais dos anos 70, princípios de 80, a um velho pescador do Alvor, no Algarve, a quem alugámos uma parte de casa na altura das férias... Levávamos miúdos, e ele perguntou-nos: "Atão, os moços na guerreiam?!"...
Curioso é o verbo transitivo "guerrear" (fazer guerra, andar à bulha) que também já ouvimos, há muitos anos, em finais dos anos 70, princípios de 80, a um velho pescador do Alvor, no Algarve, a quem alugámos uma parte de casa na altura das férias... Levávamos miúdos, e ele perguntou-nos: "Atão, os moços na guerreiam?!"...
Na pronúncia de Santa Maria, há a tendência para "mudar o primeiro 'e' em 'a' fechado": "garrear", garreiam"...
Uma expressão que ainda se usa, na ilha, é "Olha os Moiros!", sinal de que não se apagaram de todo, da memória coletiva mariense, "as marcas trágicas e dolorosas das incursões dos piratas do Norte de África " (pág. 77). A expressão era usada, no passado, para incutir temor à crianças e prevenir alguma percalço ou perigo.
Costume antigo também era o das crianças, e até dos adultos, atirarem para cima das telhas do forno um dente caído ou partido, dizendo: "Moirão, moirão / toma lá o teu dente podre / e dá cá o meu são|"... No imaginário popular e infantil surgia então " um homem barbudo e desgrenhado, de dentes estragados e aspecto horrível" (pág. 77).
A palavra "moirama", por sua vez, também ainda hoje é usada para significar o carácter rude e o feitio violento de alguém, pessoa, grupo ou comunidade. (**)
(Continua)
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Notas do editor:
(**) Último poste da série > 17 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22915: Notas de leitura (1410): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (1) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Costume antigo também era o das crianças, e até dos adultos, atirarem para cima das telhas do forno um doente caído ou partido (...)
Coitado do doente! Já não lhe bastava estar doente e ainda por cima era atirado para cima das telhas! :-D
É claro que onde está escrito doente devia estar dente.
Obrigado, Fernando, pela tua chamada de atenção.... Já corrigi... Dente/doente... é mesmo um "lapsus linguae"... LG
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