Mapa de Angola. Adaptado: posição relativa de Luanda e Uige e
das províncias de Cuanza Sul e Cuando-.Cubango. Cortesia de Wikipedia
Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): servindo duas pátrias, Portugal e Angola...
por Luís Graça (*)
Luanda, julho de 2013. Levantaste-te às cinco e meia da manhã. É dia ou quase dia. Às seis, o motorista de ambulâncias do hospital já estava pronto para te levar ao aeroporto, de regresso a Lisboa. Era o teu motorista habitual, quando aqui vinhas em serviço... Era o teu motorista das partidas. Porque havia um outro, o das chegadas. Enfim, pequenas mordomias...
Já o conhecias há uns anos... Pertencia ao ministério da saúde, mas fora destacado para um dos hospitais da capital. Tu costumavas trazer-lhe uma garrafa de vinho tinto português, comprada no "freeshop" do aeroporto de Lisboa. Sabias que ele adorava o vinho da terra dos avoengos. O vinho importado era um luxo para um "caluanda". Tinha feito a tropa e a guerra no "tempo dos portugueses". E sentia-se luso-angolano, mesmo não conhecendo Portugal. " Com muita pena"...
O teu motorista "caluanda" (não o queres identificar, nem a ele nem ao hospital onde trabalhava, já que na altura não lhe pediste autorização expressa para contar a sua história de vida) "estava de férias" (sic).
Levantara-se prontamente para te conduzir, a tempo e horas, até ao aeroporto de Luanda. Tiveste a gentileza ( e o bom senso) de não lhe perguntar o que é que um motorista de ambulâncias fazia, em Luanda, quando estava de "férias"... Muito provavelmente ia para a praia dar uns chutos na bola e uns mergulhos...
Havia um outro motorista, mais jovem, mas morava "longe", a norte de Luanda, a 20 km, em Viana (onde nunca fostes, apenas conhecias os arredores, a sul, o Mussulo e a foz do Quanza).
Havia um outro motorista, mais jovem, mas morava "longe", a norte de Luanda, a 20 km, em Viana (onde nunca fostes, apenas conhecias os arredores, a sul, o Mussulo e a foz do Quanza).
20 km era uma distância enorme para quem dormia em Viana e trabalhava em Luanda. Sair de casa a essa hora era então arriscado, devido à insegurança nos musseques. E os transportes públicos eram maus e morosos.
Mesmo assim, no hospital, havia gente (incluindo médicos) que saia de casa às 4h da manhã para vir trabalhar!... Nos cursos de formação alguns, coitados, sucumbiam ao cansaço e á falta de sono.
A vida era dura para os luandenses, os "caluandas", que precisavam de trabalhar. O que era a grande maioria da população. Era dura, a jornada, para quem tinha de estudar, formar-se, especializar-se como os médicos...
"Angola tinha 26 médicos (!), no dia da dipanda", disse-te um deles, o vigésimo sexto... que continuava a acreditar que o seu país tinha futuro. ("Que te adianta viver, camarada, se não tens um ideal por que lutar?")
A maior parte dos médicos tinham ficado do lado do MPLA e eram então, em 2013, todos graduados em oficiais superiores. Todos eles haviam feito a guerra, com exceção dos que ficaram no bem- bom" do estrangeiro e que só voltaram com o fim da guerra civil. Eram ostracizado pelos que tinham ficado na luta.
Esse outro motorista, mais jovem, que costumava ir buscar-te ao aeroporto, à noite, não era não fiável: um dia, ficou à tua espera, devia estar cansado, a morrer de sono (e se calhar de fome), adormeceu na viatura, o avião atrasara-se...
Enfim, deixou-te completamente "pendurado", incontactável, á saída do aeroporto, sem transporte nem telemóvel... Quase á beira de um ataque nervos. E a situação não era para menos.
Foi uma pequena aventura, chegar, à "guest house" onde costumavas icar alojado, às 11 h da noite, com um jovem "taxista" de ocasião, de chinelos, t-shirt e calções esfarrapados, com viatura sem portas, completamente "descaracterizada" e "canibalizada", sem matricula, com o tabliê esventrado...
Àquela hora da noite não descortinaste outra alternativa (ou não tiveste a lucidez de a procurar), depois de respirares fundo e manteres o sangue frio, recusando-te a entrar em pânico... A solução foi aceitares a oferta do único "taxista" que por ali ainda restava, àquela hora da noite, provavelmente na esperança de ganhar o dia com um turista incauto, imprevidente, desastrado e enrascado, como tu.
Aceitaste o serviço, combinaste o percurso e o preço, sem discussão e sem sequer poderes ver a viatura, estrategicamente dissimulada por detrás de uma sebe, do outro lado do largo...
Foi, seguramente, a viagem de "táxi" mais fantasmagórica da tua vida: custou-te 40 euros, todo o dinheiro trocado que tinhas no bolso, nem sequer tinhas kwanzas ou dólares para pagar ao mais jovial, simpático e prestável "taxista da candonga", a quem confiaste a tua bolsa, o teu PC, a tua semana de trabalho ( textos, exercícios, "slides"...), a tua bagagem e porventura até a tua própria vida.
Ficaste na dúvida (confessas ainda hoje!) se a viatura não teria acabado de ser roubada naquela noite... E estarias metido numa grande encrenca se a polícia vos apanhasse pelo caminho... Aos dois, notoriamente cúmplices, "numa boa", na galhofa... Afinal, prevaleceu a tua confiança na boa fé e honestidade do "taxista"
Foram os dois todo o trajeto a conversar, amavelmente, atravessando a noite quente e húmida de Luanda, como se fossem "velhos conhecidos" ou até amigos, quiçá irmãos!... Falando sobre tropa, médicos, militares, música, rap, kuduro, sexo, mulheres, sida e outras doencas, enfim, o presente incerto e o futuro glorioso de Angola...
Ele fizera tropa mas já não fora à guerra, a "segunda guerra da dipanda"... Puxaste dos teus galões, fizeste-te passar por médico (o que não era verdade) e professor da faculdade de medicina de Lisboa (o que até nem era falso), e para mais militar, falaste-lhe de alguns nomes de gente da "nomenclatura" angolana que te gabavas de conhecer ( e de facto conhecias), o diretor do hospital militar, o diretor da clínica X, o reitor da universidade Agostinho Neto, sua excelência o ministro da saúde que tinha sido teu aluno, etc....
Acabou por ser uma relação cordial, até empática, e lá chegaste ao destino sem mais problemas. E o rapaz ganhou o dia ou a noite.
"Bué de cumbú, patrão!", rspondeu-te ele, ao contar as notas, frescas, de 5 e 10 euros, com visível boa disposição... (Moedas não quis aceitar, "dinheiro preto" de tuga não circulava no mercado do Roque Santeiro.)
Ainda não tinhas varrido da memória o "incidente", ocorrido logo nos primeiros anos em que começaste a ir a Angola em trabalho, duma vez em que apanhaste um pouco por tabela, a paranóia securitária da polícia local do tempo de guerra...
Gostavas, afinal, de lembrar, quando o tema Angola vinha à baila numa roda de amigos, que ainda tinhas chegado andar fugido de um polícia, armado de apito e de Kalash, que mandara parar a tua viatura... Só porque tu estavas com um pequena e discreta máquina fotográfica digital (ingenuidade a tua!), na mão, no "lugar do morto", tu, um branco, ao lado do condutor, um negro, num jipe do ministério da saúde angolano, na tremenda confusão do trânsito, a caminho do Futungo de Belas...
Desobedecendo à ordem de parar, o jipe não levou nenhuma rajada, mas tu sentiste um calafrio pela espinha acima...
Claro que o polícia era decididamente um patriota (ao pensar que um diabo branco, um bandido estrangeiro, poderia andar por ali a fazer espionagem) mas o mais provável é que ele, mal fardado, mal pago e pior formado, apenas quisesse ganhar uns trocos para a "gasosa" ou o "mata-bicho")...
Valeu-te o condutor, experiente, corajoso e afoito, o teu "anjo-da-guarda" nessa manhã, por sinal também um antigo militar: só parou na escola de enfermagem do Futungo de Belas, depois de uma condução de doidos por aquelas artérias esventradas de Luanda...
Mas voltando ao teu motorista "caluanda", em julho de 2013... Era um homem afável, mestiço, de Uíge (se a tua memória não te falha...), que ficava a nordeste, a cerca de 350 km de capital... Pelas tuas contas devia ter nascido em 1953. Teria então 60 anos na altura...
Era preciso atravessar Luanda, de um lado a outro, até chegar ao aeroporto... Nas horas de ponta, podia então ser um inferno. Daí teres que te levantar às 6 da manhã... para estar com uma certa margem de segurança, a tempo e horas, no aeroporto...
Era outra aventura, mesmo com "passaporte especial" (para os VIP da cooperação como tu...), até poderes sentar-te no teu lugar do avião da TAP e, enfim, respirar fundo... E depois de teres sido passado a pente fino e "depenado" na Alfândega: 100 dólares para a "gasosa" (mais s CD de música popular angolana que transportavas na mala da roupa, comprados na "candonga": uma mescla de estilos, a kizomba, o semba, o kuduro, a rebita, etc. )...
Além disso, levavas contigo, dez mil dólares, em maços de notas (algumas sebentas...), limite máximo legal... Num envelope com o logótipo do Ministério da Saúde, o MINSA... E o credo na boca: não era dinheiro teu, era da tua instituição, e iria servir para pagar viagens e ajudas de custo dos próximos formadores...
Enfim, uma forma expedita, um desenrascanço, à portuguesa e à angolana, para contornar a morosidade burocrática da transferência de dinheiro entre os dois países... Era ostambém um sinal da crise, que já se notavs no comércio de rua, nos agentes da autoridade (que se batiam à "gasosa"), nas "quinguilas" (cambistas do mercado negro, que traziam os maços de notas no sutiã), nas "zungueiras" (as vendedeiras de comes & bebes)...
O teu "caluanda" morava na ilha de Luanda, perto do centro aonde foste dar formação. O trabalho de motorista de ambulâncias, diga-se de passagem, não era pêra doce: uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância fora metralhada num musseque dos arredores (ele disse-te o nome, que não fixaste, talvez Sambizanga, onde viviam cerca de 250 mil almas emparedadas ), quando um "grupo de bandidos" tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)...
Os "bandidos, que não sabiam ler" (sic), confundiram o "tinonim" da ambulância com o carro da polícia... Houve feridos graves, doentes baleados dentro da ambulância; mas, mesmo com os pneus furados, e o assento do motorista "crivado de balas", o teu herói lá conseguiu safar-se, são e salvo... Foi título de caixa nos jornais. Na altura até foi louvado (pelo "nosso Mais Velho", em visita ao hospital)...
Revelou um extraordinário sangue frio e coragem, dois atributos essenciais para se poder sobreviver numa cidade como Luanda de 5 ou 6 milhões de habitantes onde só uma escassa elite, privilegiada, ia tendo vida segura, conforto e decência. (Só a Norte, no concelho vizinho de Viana, deiam viver mais de milhão e meio.)
Esse sangue frio e coragem vinham-lhe do tempo da guerra. Eta um duplo ex-combatente. fizera duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completavam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Timha muitas histórias para (e por) contar.
Esse sangue frio e coragem vinham-lhe do tempo da guerra. Eta um duplo ex-combatente. fizera duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completavam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Timha muitas histórias para (e por) contar.
Rapidamente criaste com ele um laço de cumplicidade e empatia, típicas dos ex-combatentes.
De facto, nada como dois ex-combatentes encontrarem-se, beberem um copo e começarem a desatar os nós da memória .... Não foi preciso copo nenhum, ele era um homem simples, prestável, falador e afável...
Resumindo: fizera a "guerra colonial" , do lado português, com "muita honra" (sic), por volta de 1972/74 ou até talvez 1973/75 (já não podes hoje precisar). Era furriel miliciano.
Serviu "a sua pátria de então" (sic), dizia-te com naturalidade e sem qualquer subserviência nem complexo de culpa. Sentia-se português, tinha sangue transmontano do lado paterno, o trisavô, desterrado (como muitos outros primitivos colonos), ainda conhecera e privara com o "Kimuezo", "o homem das barbas grandes", o lendário Zé do Telhado. (Falecido em 1875, estava sepultado na aldeia de Xissa, Mucari, Malange; o seu túmulo ainda era então, em 2013, venerado pela gente local.)
Quando "os sul-africanos, os zairenses e outros bandidos" (sic) invadiram Angola, "sua terra natal", as FAPLA (Forças Armadas para a Libertação de Angola) convocaram-no para as suas fileiras.
Foi então promovido ao posto de 1º tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens (se bem percebeste). Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980... Como "já não sabia fazer mais nada", aos 37 anos (com 17 anos de vida militar, sem eira nem beira!) deram-lhe uma ambulância para conduzir... Ganhava mal mas... "tinha um emprego no Estado".
Também se queixava, tal como os antigos combatentes portugueses, de o Estado angolano os ter abandonado à sua sorte, com "muitas centenas de milhares de camaradas deficientes, incapacitados"... (Curiosamente, trinhas deixado de ver, em 2013, os "estropiados de guerra", atravessando as ruas sujas da cidade, aos saltos nas suas muletas de pau, como os cangurus, espetáculo que te chocara em 2003.)
Também esteve na província do Cuando Cubango. onde foi um dos bravos da batalha de Cuito Cuanavale, de trágica memória para todos os contendores de um lado e do outro, angolanos, cubanos, sul-africanos, e até conselheiros soviéticos (quando o muro de Berlim ainda estava, fisica e simbolicamente, de pé)...
Nessa altura fazia a segurança ao hospital de campanha na retaguarda onde viu coisas que nunca contará aos filhos e netos: amputar pernas e braços a sangue frio, sem anestesia; fuzilamentos de "rebeldes da Unita"; atos de sodomia entre angolanos e cubanos, enterrados nas trincheiras lá nas "terras do fim do mundo"....
Mas a cena mais dramática da guerra que terá vivido, não foram tanto os bombardeamentos maçiços da artilharia, cavalaria e aviação dos sul-africanos no sul, foi sim uma emboscada às portas de Luanda (a cerca de 100 km, se bem percebeste), a um coluna de várias viaturas guarnecidas por um grupo de combate que ele comandava, composto por cerca de 30 homens.
Tens dúvidas se foi na altura da batalha de Quifangondo (em 10/11/1975) (#) nas imediações de Luanda, ou se foi no âmbito da batalha do Ebo (##), mais longe, a sudeste... Em qualquer dos casos, o desfecho destas duas batalhas foi fundamental para reforçar a posição do MPLA e do seu braço armado, as FAPLA
Nessa altura as forças que apoiavam a FNLA, o Exército Nacional de Libertação de Angola (ELNA), já tinham tomado o Caxito, estando às portas de Luanda. Eram constituídas pelos "comandos do coronel Santos e Castro" (sic), por forças do exército regular do Zaire, e por uma unidade de artilharia dos sul-africanos, mais um grupo de mercenários estrangeiros" esclareceu-te o teu motorista.
Tens de admitir também a hipótese de o teu motorista ter participado na batalha do Ebo onde haveria de morrer o comandante cubano Raul Díaz-Argüelles (1936-1975) (###), em 11 de dezembro de 1975 (um mês depois da proclamação da independência de Angola).
A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda, a par da batalha de Quifangondo, a nordeste de Luanda, foi decisiva para suster o avanço das forças anti-MPLA que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.
É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975), cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.
Não tiveste oportunidade, nas conversas esporádicas que mantiveste com o teu motorista (afinal , em escassas e fugidias duas vezes, em que o assunto veio à baila, no trajeto até ao aeroporto) de esclarecer este e outros pormenores importantes das suas histórias de guerra... que ele sempre te contou, "sem filtros", com a espantosa naturalidade e candura dos africanos...
Ias em geral com um ouvido atento à conversa com o condutor e um olho no vidro da janela do teu lado... Reconstituias a tua conversa com ele, já depois no avião de regresso a Lisboa, no teu "diário de bordo".... E podes estar a ser traído pela memória. Mas confias na boa fé do teu amigo angolano.
Essa emboscada (com apoio de artilharia) poderia ter sido quando as forças sul-africanas, que invadiram Angola, chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).
Essa emboscada (com apoio de artilharia) poderia ter sido quando as forças sul-africanas, que invadiram Angola, chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).
Segundo o depoimento do teu motorista, nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos.
Conversa puxa conversa, diz-te que "já não há bandidos na ilha de Luanda e no centro de Luanda". A polícia "limpou-os" (sic).
Àquela hora, 6 da manhã, havia grupos de 3 e 4 brancos (presumivelmente estrangeiros, incluindo portugueses, a viver e a trabalhar em Luanda) que andam a fazer "jogging" na marginal. Com relativa t5ranquilidade e descontração.
As praias estavam "limpas", contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora era "turística" (sic), as barracas dos pescadores havia desaparecido, sob as "buldozers"... Enfim, a cidade mudara, "para melhor", havia obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordaste a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar, e que ele acabava de confirmar.
As praias estavam "limpas", contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora era "turística" (sic), as barracas dos pescadores havia desaparecido, sob as "buldozers"... Enfim, a cidade mudara, "para melhor", havia obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordaste a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar, e que ele acabava de confirmar.
Tinhas-lhe prometido trazer uma garrafa de vinho de Lisboa. Deixaste-lhe kwuanzas para beber um copo à tua saúde e à condição de ambos como antigos combatentes, homens da mesma geração, nascidos sob a mesma bandeira, falando a mesma língua...
Percebeste então melhor porque é que os teus novos amigos angolanos, eram pessoas que viviam com tanta intensidade o dia que passava e manifestavam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança.
Percebeste então melhor porque é que os teus novos amigos angolanos, eram pessoas que viviam com tanta intensidade o dia que passava e manifestavam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança.
"Para ser feliz tem que ser aqui em Angola", diz um kudurista dos musseques de Luanda no filme angolano "I Love Kuduro", do realizador português Mário Patrocínio, (a cuja estreia, em Portugal, tu assististe, uns meses mais tarde, em novembro de 2013, no Cinema São Jorge, no âmbito do doclisboa'13)...
Confessavas, por outro lado, a tua grande ignorância em relação à história e à geografia de Angola, apesar de lá ires já desde 2003...
Por exemplo, Cuando Cubango... Era uma província situada no sudeste do país. Verificaste então que era limitada a norte pelas províncias do Bié e Moxico, a leste pela República da Zâmbia, a sul pela República da Namíbia e a oeste pelas províncias da Huíla e do Cunene (onde a guerrilha da SWAPO tinha bases e campos de refugiados, e onde as tropas sul-africanas faziam "raides" punitivos, atravessando impunemente a fronteira). (####)
Mas voltando à guerra, à chamada segunda guerra da " dipamda" em que participou também o teu motorista.... Durante muito tempo alguns municípios (como Mavinga, Dirico, Cuchi e Cuito Cuanavale) serviram como bases de apoio à guerrilha da UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que só abandonou completamente estes territórios (a "Jamba") em finais de 2001, aquando da última (e decisiva) ofensiva das forças armadas angolanas.
É sabido que o movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estava-se em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...
A batalha de Cuito Cuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.
Foi aqui , na província de Cuando Cubango , e mais concretamente no munícipio de Cuito Cuanavale, que as FAPLA, apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com as forças da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.
Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha de Cuito Cuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul, garantiu-te, com visivel orgulho e patriotismo, o teu motorista.
Independentemente das duas partes terem clamado vitória, a África do Sul terá sido obrigada a reconhecer tacitamente senão a superioridade, pelo menos a capacidade de resistência, resistência e coragem demonstrada pelas FAPLA (e seus aliados cubanos) no campo de batalha. (Para os cubanos, Angola terá sido o seu Vietname, é bom não esquecê-lo...).
Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional.
Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional.
Como é sabido, a implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU vai levar à independência da Namíbia e apressar o fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.
Em 2913 ainda pensavas voltar a Angola (o que aonteceu até à pandemia) , e esperavas poder reencontrar, vivo e com saúde, o teu amigo motorista, que servira duas pátrias. Imaginava-lo, dez anos depois, ele os seus 70 anos e tu um pouco mais... Se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E imaginavas poder continuar a tua conversa, agora à mesa de uma esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência com um bom copo de vinho tinto português.
Em 2913 ainda pensavas voltar a Angola (o que aonteceu até à pandemia) , e esperavas poder reencontrar, vivo e com saúde, o teu amigo motorista, que servira duas pátrias. Imaginava-lo, dez anos depois, ele os seus 70 anos e tu um pouco mais... Se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E imaginavas poder continuar a tua conversa, agora à mesa de uma esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência com um bom copo de vinho tinto português.
Afinal, há conversas, entre antigos combatentes, que não acabam mais (ou merecem ser prolongadas, melancolicamente, pela tarde dentro, aguardando o pôr-do-sol tropical)...
Lisboa, julho de 2013. Revisto, 4 de julho de 2025
Notas do autor:
(#) Sobre batalha de Quifangondo (em 10 de novembro de 1975), vd. aqui o depoimento do general António França 'Ndalu' (chefe do Estado-Maior da 9ª Brigada, uma unidade das FAPLA, criada uns meses antes para "defender Luanda das investidas do inimigo contra a capital, nos dias que antecederam a Independência, no dia 11 de Novembro de 1975").
Já agora leia-se, com atenção, também o seguinte comentário de um anónimo (entre muitos outros, que entretanto surgiram no seguimento daquela entrevista):
(...) "O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses.
(...) "O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses.
Ouvi pessoalmente oficiais cubanos a elogiarem a preparação destes militares do contingente de Angola nas forças portugueses. Foi a 9ª Brigada e os cubanos quem destroçaram as forças da FNLA/Zairenses/sul-africanos a norte, e perseguiram os sul-africanos estacionados próximos de Porto Amboim até à fronteira, no Cunene.
Paradoxal e infelizmente, a maioria dos militares da 9ª Brigada foi fuzilada dois anos depois, nos acontecimentos do [27] de maio [de 1977]".
É muito possível que o teu motorista fosse um daqueles jovens, desmobilizados do exército português, que se ofereceram como voluntários para a 9ª brigada, ou foram recrutado à força...
Sobre os trágicos acontecimentos de 27 de maio de 1977 tiveste o bom senso de não lhe fazer perguntas, era um assunto-tabu em Angola naquela época; mas recordas-te de um jovem economista, assessor do ministério da saúde, te ter confidenciado, a meia-voz, embargada: "Sabe, doutor, o meu pai saiu de casa na madrugada do dia 27 de maio, e nunca mais voltou")
(##) Pela descrição da batalha do Ebo (no portal cubano EcuRed (que não pode todavia ser considerado uma fonte independente), inclinas-te mais para a primeira hipótese, a da emboscada em que caiu a coluna comandada pelo teu motorista, ter ocorrido no âmbito da batalha de Quifangondo, a escassa centena de quilómetros de Luanda, a nordeste.
(###) Recorde-se que o Diaz-Argëlles também passou pelo teatro de operações da Guiné, em 1972, ao tempo da guerra colonial, tendo ajudado o PAIGC a planear a operação contra Guileje.
(####) A capital da província era a cidade de Menongue e distava de Luanda mais de mil km e de Cuito menos de 350 km. Tinha cerca de 140.000 habitantes e ocupava uma superfície duas vezes superior a Portugal...
Era constituída pelos municípios de Calai, Cuangar, Cuchi, Cuito Cuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola, "terras do fim do mundo", é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.
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Nota do editor: