segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá  > 2010  > O antigo cinema da vila e depois cidade de Bafatá, agora em ruinas... O regresso do Fernando Gouveia, 40 anos depois...

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Luís Graça, Contuboel,  
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 
julho de 1969, 
Luís Graça >  A galeria dos meus heróis (15) >  O "Bate-chapas" que queria ser fotocine...



Excertos do "Diário de um bate-chapas" (*)

2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim na próxima semana. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível é o tempo. Por isso há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, dizem os gajos. 

 Dantes pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei na cabeça essas patranhas ? Agora parece que destronaram o Santo e já não há ninguém de respeito que mande nesta merda. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde… As estações andam trocadas. 

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. 

 Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a "rua", no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas nunca te lembraste de tirar umas chapas desses momentos que, afinal, eram os mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!...

Estás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra. A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bicho homem. Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na festa do fanado… A malta pre
cisa, em todas as culturas, da figura de um diabo que simbolize o mal absoluto. 

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, e gente tão solitária como tu… Perdidos, automatizados, alienados. 

Enfias-te num cinema. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. És um  consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega ou douradas da Grécia ou caju da Guiné ou nozes da Califórnia ou as mensagens dos Trumps no Twitter. Ou o futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal.

Há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras.  E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... "O último a morrer que feche a tampa do caixão!"...

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel, em Bafatá, antes de a companhia ir para a região do Gabu: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o marketing criativo!...


Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. Não perdeste dinheiro, mas também não ganhaste. Foi uma operação de "marketing", para lançar a marca do "Bate-chapas". E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo uma centena de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, bajudas de "mama firme", e até a cabeça cortada de um desgraçado de um turra, uma foto que um fotógrafo de Bambadinca, teu conhecido, te passou às escondidas em Bafatá, bem como fotos dos comandos africanos empunhando as Kalashes da vitória.

Recordas-te ? Chegaram a vender-se Kalashes, plural de Kalash, em Bambadinca e Bafatá, por 500 pesos cada uma. Vinham, novinhas em folha, diretamente de Conacri, depois do regresso dos comandos africanos. Como é que se chamava essa operação, lembras-te ?... Ah!, sim, Operação Mar Verde, ordem para invadir um país independente, ordem para matar. Só não convidaram cá o "Bate-Chapas" para fazer a cobertura fotográfica. 

Não, nunca tiveste vontade de ter uma Kalash... Ainda apanhavas uma porrada... Como é que a fazias chegar à metrópole ? Desmontada, em peças, escondidas num caixote feito de madeiras exóticas, fintando os gajos das Alfândegas ?... Preferias investir em máquinas fotográficas, tinhas três, compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses. o tal Taufik Saad, não sei quantos... Havias gajos que arriscavam, os oficiais e sargentos do quadro permanente, faziam chegar muito contrabando através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valia ouro na metrópole, nessa época.


"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... Isso era alcunha dos gajos da ferrujem.  Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o "Pastilhas" que era o enfermeiro. E o teu alferes que era o "Ranger", e o Casanova da companhia que era o "Picha d'Aço". E o cozinheiro que era o "Merda Seca"..
.

As lojas aqui, no centro comercial,  também tresandam a merda seca, "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca,  que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo. Chamavam-lhe uísque de Sacavém. Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba. "Beber a água do Geba"... Lembras-te da expressão ?!... Bebeste muitas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?! 

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do nosso contentamento. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves",  diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo. Parecem umas osgas, todas pintalgadas! 

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula ou o mandinga ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal. 


10/3/2018

Foste à praia do Guincho, gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais... 

Há gajos que são pagos para saber. Tivestes 22 meses na Guiné,na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão, do quadro permanente, que até era fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas. Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, chapa um, que se mandava para a família.


15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te: "Ou tens juízo ou não te dou mais do que seis meses de vida"… 

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Está de greve, a gaja! Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, virilidade, acuidade auditiva, sanidade mental e por aí fora)… 

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um ova, general, medalhado!... O homem parou a 10 cm de mim!... E ainda tive que lhe bater a pala!"... 

E tu que já tens 70 ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique mal nas fotografias, como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, com a puta da canhota!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores,  até ao meu regresso!... Rezem por mim"...

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E a Pátria deles, que se fodesse!...


Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas á noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!... Um mouro de trabalho, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Para quê ?, para quem ?...

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores,  a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas... Foste ver o filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia, Mazouco,  lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu a tua avó e a tua bisavó, gente que nunca chegaste a conhecer. E aonde nunca foste, a terra das velhotas… Morreu de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo,  contava-te a chorar o sacana do teu velhote, que voltou logo  a casar, sem fazer o luto... 


Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velhote, morreram, há quinze anos,  os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velhote morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... Há anos que não falavas com ele e com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo. Sentes culpa por o teu velhote ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um Bate-Chapas que queria ser fotocine na Guiné"… 


Achas que é um bom título, camarada ? Não é, não, senhor,  vão-te confundir com os gajos da ferrugem… "Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, em Nova Lamego,  mas a malta chamava-lhe o "Trancoso", se bem estás recordado.

Alguém sabe lá o que é um fotocine… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo atirador de infantaria… E até comandaste uma secção no último ano… O furriel, lembras-te ?,  fora destacado para Bambadinca, para os reordenamentos, era preciso fazer casas para a balantagem que vivia na zona ribeirinha do Geba, e que fornecia o Zé Turra e a Maria Turra com aqueles coisas elementares que o Zé Tuga vendia, lá na tasca dele, tabaco, petróleo, velas, cola, arroz, aguardente de cana, redes mosquiteiras… Gostavas de passar por lá, quando ias ao Xime, em colunas logísticas, buscar os abastecimentos para a companhia... O Zé Tuga estava sempre a sacudir a água do capote, quando a malta insinuava, na reinação, que o gajo era turra: “Eu só quero que a minha vidinha corra, não quero que ninguém morra”… O gajo estava feito com a balantagem,… E era tão branco como tu…

Chamavam-te "Bate-chapas", os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo. Revelavas e expunhas as provas, numeradas,  num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (, tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de de licença de férias à metrópole ? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu, e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os furriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (, no segundo ano levou a esposa, a "Capitoa", que vivia em Bafatá..., o que era um pretexto para ele lá ir dormir aos fins de semana, quando a guerra abrandava...).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas boas bejecas no Pelicano ou na 5ª Rep.

Lembras-te quando a malta esteve dois ou três em Bafatá, a caminho do Gabu... Ía-se à noite ao Bataclã e um dia, no dia dos teus anos,  até convidaste  as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… Foste tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo nada que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixaste no leste.ó tuga… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassas dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net e os teus amigos virtuais do Facebook, tu que não tens um amigo do peito que te dê um ombro onde possas chorar. Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné.

Voltas a enfiar-te no porto de abrigo do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?!


Não te quiseram para fotocine, os cabrões da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, não, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote,  que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos  e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar da casa... Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na vida!...

Mais tarde, com as tuas economias todas, abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. (Uma merda, veio depois a fotografia digital, a revelação automática, o "self-service" os centros comerciais, o negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... Vendeste a baiuca… Que tristeza, recusas-te a passar por lá… Agora  deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.)

−Ó bate-chapas, tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a miúda que vai fazer 21 anos e já pode casar quando eu voltar!...

− Ó bate-chapas, arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu irmão mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E alcunha ficou mesmo, para o resto da vida… Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais da companhia:

− Ó bate-chapas, bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho na companhia. Tinhas milhares e milhares de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande, onde ficava a malta do 1º e 2º pelotões… Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… Ninguém soube como aconteceu!... Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa daquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram turras, e que terão deitado o fogo, quando a malta do 1º e do 2º pelotões estavam no mato... 

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU em Bissau… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo… Até a lista dos calotes ardeu!... Muitos camaradas perderam tudo, armas, roupa civil, o pouco patacão que tinham… Não havia bombeiros no mato!... E muito menos água e a mangueiras e bocas de incêndio!... Aquilo era no cu de Judas, no Freixo de Espada à Cinta lá no chão dos fulas!....

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada cabo-verdiana faz para toda a semana… De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano,  falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, irresponsável.


E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, um grande cineasta, quem sabe ?!...
Foste apenas uma "Bate-chapas"… Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de fama firme e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. 

E hoje ? Só tens amigas do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entar no Paraíso, quando chegar a tua vez… Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (, e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné. 

 Não adianta reclamar, ó “Bate-chapas”, ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó "Bate-chapas"! 


Luís Graça (**)
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Nota do editor:

(*) Trata-se de uma alcunha, o que era vulgar na tropa e na guerra, sobretudo entre os praças... Palavra que vem do árabe al-kunia, sobrenome... Significado: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental  do indivíduo ao qual ele se atribui. Neste caso, o indivíduo em questão era um fotógrafo amadora que, nas horas vagas, fazia retratos dos seus camaradas, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelava os negativos. Frequentemente usava a expressão"Vamos bater uma chapa"... Estes excertos fazem parte de um texto manuscrito que ele nos facultou, para apreciação crítica, e que pode vir a dar origem a possível livro de memórias, caso se arranje um editor.

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Todas as companhias tinham um "fotógrafo de serviço"... Não era oficial nem oficioso... era um "jeitoso" que prestava um belo serviço à malta toda... No intervalo dos seus deveres militares, tirava (ou batia) umas "chapas" (fotos)...Poucos tinham máquinas fotográficas e era preciso mandar revelar os rolos em Bissau... No caso dos "diapositivos", a cores, mandava-se o rolo para o estrangeiro... Uma aventura!...

Faltam-nos histórias desses fotógrafos "ad hoc" que prestaram um grande serviço aos seus camaradas... Tal como os "barbeiros", por exemplo... Uns e outros, à conta disso, ganharam algum patacão extra...