Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
Guiné 61/74 - P19207: Notas de leitura (1122): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Setembro de 2016:
Queridos amigos,
Parece-me de grande interesse detalhar as teses que este investigador norte-americano avança quanto à capacidade das etnias fixadas na Guiné-Bissau de manterem um elevado grau de autonomia em todas as fases do pré-colonial, colonial e pós-colonial. É nesse contexto que o autor encontra as chaves explicativas para a fragilidade do Estado, mormente no período colonial e pós-colonial. Ele debruça-se sobre os equívocos que a proposta de unidade e luta, da autoria de Amílcar Cabral, comportam. Amílcar Cabral antevia que todo o processo da luta estava a adensar uma nova base cultural que se plasmaria numa entidade nacional e que o PAIGC iria modelar o Estado. Pelo caminho, os dirigentes do PAIGC pretendiam passar à margem sobre um dado indesmentível: a hostilidade dos nativos guineenses aos representantes da administração colonial, os cabo-verdianos. Tudo correra bem na dimensão da luta, mas nos prolegómenos da unidade os rancores do passado vieram ao de cima.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau:
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (2)
Beja Santos
Referiu-se no número anterior que o título da obra “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, parece desconcertante e no entanto trata-se de uma arguta e audaciosa investigação de que, incompreensivelmente, não se vê qualquer alusão nos autores de referência. Tratando-se, em minha modestíssima opinião, de um dos mais importantes trabalhos de tese sobre a Guiné-Bissau, só vejo utilidade em repartir a densa e brilhante argumentação deste investigador norte-americano em vários textos.
A tese fundamental de Joshua B. Forrest é de que o território onde hoje situa a República da Guiné-Bissau sempre faz parte de Estados fracos, é uma situação que remonta ao período pré-colonial, tendo daí resultado um modo de desenvolvimento das sociedades rurais que descobrem as suas redes comerciais, estabelecem redes de alianças entre etnias e mesmo em períodos de grande intimidação, em termos coloniais e pós-coloniais, mantêm a sua identidade e autonomia. Esta tese é forçosamente controversa. Basta pensar nas propostas de Amílcar Cabral no tocante à nação guineense e à unidade Guiné-Cabo Verde. O líder do PAIGC declarou e escreveu que a cultura desenvolvida pela luta armada estava a dar uma fisionomia ao novo Estado, as etnias iriam todas confluir numa nação que se pautaria por uma democracia revolucionária. O Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, teria marcado a condenação das práticas mágicas negro-africanas e a punição severa de chefes da guerrilha torcionários e crentes nessas práticas mágicas. O PAIGC era apresentado como uma unidade entre cabo-verdianos, luso-africanos e africanos. Sabe-se que o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 liquidou esse sonho. Ficou o verso do hino nacional, escrito por Amílcar Cabral “nação forjada na luta” para significar a importância maior de que a nação deve preceder o nascimento do Estado, este teria de ser moldado pelo partido em convergência com o mundo rural guineense.
Logo no prefácio Joshua Forrest sublinha a natureza do colonialismo português na Guiné: durante séculos, os portugueses selecionavam bases de comércio, de preferência na orla marítima, estabeleciam relações com os chefes locais para acordar os negócios da escravatura, pagavam taxas por tal fixação, tinham que cumular os chefes com presentes; o fim do tráfico negreiro implicou outro tipo de intervenção, a exploração agrícola, mas mantiveram-se os múltiplos conflitos com os chefes locais; a pacificação proporcionada pelas campanhas de Teixeira Pinto abriram espaço para acordos de acordo com a lógica “dividir para reinar”; a Guiné não conheceu industrialização, os negócios, a partir da II Guerra Mundial, significavam arroz, amendoim, madeiras exóticas, curtumes e pouco mais. Criou-se uma administração colonial que recorria ao trabalho forçado e procurava cobrar impostos. Mas as infraestruturas só se realizavam com dinheiro metropolitano. Território incómodo pelo clima adverso, como a presença de população branca mínima, em que o essencial da administração era ocupado por cabo-verdianos, a potência colonial publicitava na metrópole o fascinante do mosaico étnico, os guineenses atraíam o público que frequentava as exposições coloniais e mesmo a Exposição do Mundo Português. A potência colonial tinha uma presença precária e fugia aos conflitos com as sociedades rurais, Bissau era o centro nervoso dos negócios, dos símbolos da civilização, das instituições de educação e saúde e mesmo da cultura.
Na primeira parte do seu trabalho, o autor elenca as sociedades pré-coloniais, designadamente os Balantas, Papéis, Manjacos, Felupes e Bijagós. Quando os portugueses arribaram à Costa da Guiné o império do Gabu decompunha-se e os Mandingas, então etnia profundamente guerreira, chegada ao território no século XIII, tinha um papel primordial. O autor destaca um território povoado por animistas (Felupe, Beafada, Brame-Papel, Balanta, Cobiana, Banhum, Baiote, Nalu, Mancanha e Bijagó). Os Mandingas terão ocupado parte do Gabu e estabeleceram uma federação de Estados satélites. Datam desta fase relações entre etnias e a prática de trocas comerciais entre as etnias de interior com as da costa. Tem o maior interesse a análise que o autor faz à evolução de todas estas etnias entrelaçando-as inclusivamente com a economia do Gabu.
De seguida, Forrest dá-nos um panorama das relações luso-africanas entre o século XV e o século XIX. Destaca a natureza contratual em que os mercadores e a administração colonial ficavam dos chefes locais. O quadro de exceção era dado pelos lançados, que contestavam os negócios da coroa e se lançavam por contra própria em negócios com os africanos. É-nos dado um quadro do funcionamento da Guiné das praças e presídios e da crescente importância do crioulo, a língua veicular, salientado o papel dos grumetes, a aceitação e rejeição dos missionários. O papel precário da administração e do poder político colonial é-nos dado por Ziguinchor e Bolama. Perto de 1730, as populações do rio Casamansa pretenderam repudiar na só os comerciantes portugueses como todos os outros, foi necessário uma conjugação de forças que levaram a uma maior influência dos franceses. Os ingleses pretenderam Bolama, fizeram negócios com os chefes locais, maltrataram os representantes portugueses, a situação atenuou-se porque Honório Pereira Barreto interveio e reestabeleceu uma nova aliança com as chefias locais, e mais tarde a questão de Bolama foi dirimida pelo presidente Ulisses Grant, dos EUA, que deu razão aos argumentos portugueses. Mas Forrest escalpeliza a situação das outras praças e deixa claro que havia uma resistência ativa à volta das praças e dos presídios.
O período de 1840 a 1910 é ditado pela chegada de um novo poder local, os Fulas, que vão ocupar uma área vastíssima do antigo Kaabú, desfeitearam os Mandingas, submetendo-os, e obrigaram as sociedades rurais a novas migrações, por exemplo os Beafadas ocuparam Tombali e Quínara, o que implicou que outras etnias se aproximassem e fixassem no mar ou junto do mar. No final do século XIX, a potência colonial estabelecerá acordos com os Fulas, estes tinham feito alianças com os Beafadas e os Mandingas, o que contribuiu a prazo para o desenvolvimento do islamismo do território guineense. Esta a primeira parte do trabalho de Joshua Forrest onde se relevam as identidades étnico-políticas e a sua origem, a fragilidade das relações luso-guineenses até ao final do século XIX e o modo como os reinos africanos reagiram quando foram confrontados com a crescente presença colonial portuguesa. Para Forrest, este é o principal ingrediente que leva a que a Guiné-Bissau possua um cimento nacional assente nas sociedades rurais a despeito de um poder central ausente. O próprio PAIGC que montara uma estrutura orgânica para se fazer representar no interior do território como um partido-Estado, primou pela sua ausência, cedo se desmotivou e de um modo geral o mundo rural recebeu-o com indiferença, mesmo com o papel aterrorizante da segurança do Estado.
No próximo texto, abordam-se a resistência das etnias à progressiva presença portuguesa depois da conferência de Berlim, o que aconteceu na campanha de pacificação de Teixeira Pinto e o equívoco que se instituiu na administração colonial de que controlava o território, isto quando era patente que as sociedades rurais mantiveram a sua organização à margem da presença portuguesa.
(Continua)
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Notas do editor
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Último poste da série de 16 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19200: Notas de leitura (1121): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60) (Mário Beja Santos)
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