Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 9 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24637: Os nossos seres, saberes e lazeres (589): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Primeiro foi a caminhada pelas ruas de Antuérpia, aí uns 3 quilómetros feitos sem esforço, a temperatura estava amena e a arquitetura é pujante e versátil, a importância de Antuérpia não vem de ontem, pense-se que aquele templo gigantesco neoclássico edificado para o Museu Real das Belas-Artes é da primeira década do século XIX, era já terra flamenga muito próspera, uma agricultura invejável, um centro mundial de lapidação de diamantes, uma praça financeira, e já vimos o testemunho das suas muitas igrejas barrocas, com alfaias religiosas riquíssimas. De regresso a Bruxelas, veio um surto de melancolia, nem vos conto a série de imagens que andei por ali a disparar, ruminações de locais de que já aqui falei até à saturação, selecionei um punhado, na convergência da razão e do coração. Amanhã terá lugar a última romagem, Namur e o Meuse, depois é fazer a bagagem, como sempre vão ficar uns trastes em depósito, o low cost é implacável.
Até já.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10)
Mário Beja Santos
Que o leitor me permita um desabafo, talvez mesmo uma confissão íntima, nestes lugares belgas, nestes percursos culturais, nestes espaços a que me habituei a calcorrear há décadas, sinto-me não só feliz como eterno devedor de ter feito aqui a minha aprendizagem ao vivo de convivente com o ideal europeu. É facto que devo à cultura universitária o ter conhecido a herança greco-romana, a interseção entre o cristianismo e Carlos Magno, depois das chamadas invasões bárbaras e do recuo do islamismo no nosso continente; e de ter ganho consciência de que o Humanismo foi a catapulta para descobertas científicas ao tempo em que se iniciou a primeira globalização, e por aqui findo, seria longo o itinerário desta cimentação europeia que desaguou com esse histórico lugar de encontro que se chamou a Comunidade Económica Europeia. Procurei estudar, compreender mentalidades, desafios do passado, presente e futuro. Foi graças a uma política minoritária (a dos consumidores) que aqui assentei praça, fui conhecendo gente e habituei-me a trabalho de equipa, a visitar os países com uma outra ótica, mas o meu refefrente foi sempre esta Bélgica, ela própria objeto de uma enorme tensão na convivência entre valões e flamengos, ela é o mais influente baluarte do multiculturalismo, se a pintura flamenga é um dos movimentos estéticos predominantes na pintura mundial, por aqui perpassa um sentimento europeu, basta ver a agenda cultural, desde representações de grupos emigrantes que aqui tanto se orgulham de viver, do teatro ao cinema, do romance à poesia, tudo o que vem de países europeus aqui tem acolhimento. Em suma, e para não estafar o leitor com tanto paraninfo, aqui também me sinto em casa, e com a imensa alegria por aqui ter feito amigos que me recebem e que me dão a honra de os acolher onde vivo.
Tudo isto veio a propósito da felicidade que senti na visita a este Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia, agora é mesmo uma despedida sem remissão, passo por uma sala que foi restaurada ao gosto da época do início do século XIX, talvez do dia e da hora está tudo cheio de luz, vejo gente em contemplação, confesso que aquela arte ali exposta não me aquece nem arrefece, mas é a beleza daquela atmosfera que me cala fundo, aqui fica a o registo, adeus, até ao meu regresso.
Não tenho ilusões, aguardam-me alguns quilómetros de passeio pedestre, bem perguntei aos transeuntes se havia para ali um tram que me levasse até à estação central, que não, dentro de cerca de 1h passaria um autocarro, era o que faltava, ficar aqui especado sem beneficiar da condição de andarilho à força, toca de andar a pé e desfrutar do património de Antuérpia. Aqui ficam algumas amostras de belos edifícios, convém não esquecer que no século XIX, quando o rei Leopoldo era o proprietário do Congo, a Bélgica integrara-se na linha da frente da industrialização, fruia do colonialismo, esta Antuérpia estava pejada de joalheiros e artífices do diamantes, o seu porto era dos mais importantes de todo o Norte da Europa. É, pois, natural, que a cidade guarde marcas desses tempos de prosperiedade que, aliás, nunca desapareceram.
Já palmilhei uma boa distância, ainda acreditei que este tram me trouxesse alívio aos pés, doce engano, mas aproveitei a oportunidade para me despedir da catedral e desta sua bela torre.
A prova provada de que Antuérpia tem andado sempre na vanguarda arquitetónica é este edifício, bem andei às voltas por o captar em comprimento, largura e altura, em vão, mas aqui fica uma imagem que permite ver a prosperiedade do Pós-Guerra, as reminiscências da Arte Deco em confluência com os novos materiais, a adaptação aos espaços calafetados, novas formas de iluminação, etc.
O comércio de luxo muda constantemente de dono, o importante é que não se estrague o que a arquitetura e escultura notabilizaram, aqui há esse cuidado, mesmo quando o que foi comércio de luxo se transferiu para as marcas globais, estamos sempre à espera de encontrar um estabelecimento Zara ou Benetton onde outrora pontificavam os costureiros franceses ou ourivesarias de renome.
Já me despedi de Antuérpia, hoje é dia para me despedir de Bruxelas, porque amanhã vou ser recebido em Namur, é grande a amizade e o acolhimento é de excelência. Há aqui uma pontinha de melancolia, não escondo, volto a fazer uma confissão, tirei fotografias a rodos, fui lançando no éter quase todas elas, repetiam, de um modo geral imagens já tiradas, em visitas anteriores, e assim limitei-me a um quadro sucinto de variações sobre o mesmo tema. Logo a riqueza das pinturas murais, muitas delas associadas à genialidade da banda desenhada belga, veja-se como ninguém vandaliza ou estropia o fulgor do pintor de paredes, veja-se a cor e quentura de ambiente que esta parede projeta.
Estou agora num importante boulevard do centro de Bruxelas, de nome Anspach, conheci-o sempre com tráfego intenso, independentemente de os prédios se terem vindo a degradar quando o centro de Bruxelas se despovoou e as classes endinheiradas optaram por viver em comunidades menos ruidosas, deixaram esta porção de casco histórico fundamentalmente a emigrantes e gente envelhecida e mal remediada. Deu-se depois a gentrificação, ainda em curso, a municipalidade devolveu estas artérias aos peões e ciclistas, o património tem vindo a ser revitalizado através de programas específicos e o resultado está à vista, como aqui se mostra, o automóvel já não é o dono e senhor destes lugares.
É uma sensação maravilhosa andar pelo asfalto, mirando para ambos os lados, para analisar recentes ousadias arquitetónicas, uma delas, imagem abaixo, parece-me de perfeita integração, é uma conversação de estilos que não entram em conflito, mas sabe Deus o que sairá do prédio ao lado, talvez um caixotão de vidros espelhados, isso sim, uma agressão e uma contradição.
Impossível despedir-me de Bruxelas sem contemplar este mítico Teatro La Monnaie, onde tive a dita de assistir a espetáculos fabulosos, óperas como Tristão e Isolda, Boris Godunov, Eliogabalo (de Francesco Cavalli, com tenor português), bailados, concertos, saudosos preços de pechincha, no último andar, nem mexia a cabeça com medo de vertigens. O teatro aderiu à campanha de apoio aos monumentos destruídos na Ucrânia, além de anunciar a ópera Bastarda, de Donizetti, nunca a vi, mais uma razão para voltar.
Cirandei pelo templo de cultura e não resisti a registar as grandes mudanças operadas na criação de mais um andar no teatro. É mesmo lá em cima que eu me sentava, um teto magnificamente pintado.
O soberbo teto de La Monnaie, a grande contradição é a de que o público da plateia paga 170€ para ver esta maravilha à distância e os avarentos como eu pagam 12€ para contemplar o espetáculo de perto.
O átrio de La Monnaie, uma intervenção de génio, não se danificando a estrutura básica Novecentista obteve-se uma atmosfera de modernidade.
A que propósito se vai falar de Simenon? Andava a vasculhar pela Feira da Ladra e vi junto das raízes de uma árvore publicações abandonadas por um vendedor. Há anos que não lia o caso Nahour, uma história espantosa, um drama amoroso de um libanês, jogador profissional da roleta, com uma biblioteca de ciência matemática para apurar os seus cálculos, com o adjunto que passava horas a fio nas salas de jogo dos grandes casinos a anotar resultados. A história começa com um telefonema, altas horas da noite, para casa do inspetor Maigret, quem liga é o seu amigo Dr. Pardon, um médico com quem Simenon e a mulher jantam com a respetiva família, em diferentes romances há diálogos com o Dr. Pardon, estuda-se a alma do criminoso, as razões por que se mata, e muito mais. Ora o que Pardon noticia, em estado de grande aflição, é que apareceu uma cliente baleada, acompanhada por alguém que podia ser o marido ou amante, ele fez o tratamento, retirando a bala, subitamente o casal desapareceu. Maigret põe a funcionar a judiciária, pesquisam-se automóveis e voos da madrugada, a meio da manhã já estão identificados os lugares e vai iniciar-se o interrogatório de quem vive na casa da Nahour, é um drama arrebatador, onde não falta um final feliz, um casal que encontrou a felicidade. Pois andei com este Simenon pelos transportes públicos, suspirei quando acabei a leitura, tinha vontade para ler mais Simenon, deixei-o num banco do metropolitano, só espero ter trazido a felicidade a alguém.
Vou agora para Namur, a primavera está em festa, floresceram as cerejeiras do Japão, enchem as ruas e avenidas de cor. Quando, depois de amanhã, partir para Zaventem, com destino a Lisboa, é uma das últimas imagens felizes de um adeus que convoca um regresso em breve.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24611: Os nossos seres, saberes e lazeres (588): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)
Foto: © Garcez Costa (2012). Todos os direitos reservados
1. Mensagem do nosso camarada João Paulo Diniz, um dos radialistas do PFA, chegada ontem ao nosso Blogue através do Formulário de Contacto do Blogger:
Quem foi militar na Guiné decerto recorda-se do PFA - Programa das Forças Armadas, carinhosamente tratado por PIFAS! Era um programa de Rádio, com três emissões diárias, feito em instalações próprias do Comando Chefe, em Bissau.
O Pifas tinha grande impacto, não só junto dos militares, mas também da população civil.
Uma das pessoas que chefiou o Pifas foi o Capitão Ramalho Eanes, no início da década de '70.
Em 1985 - já lá vão 38 anos... - houve um jantar entre aqueles que passaram pelo Pifas. Um dos presentes foi o então Presidente da República, Ramalho Eanes que, nesse dia regressado de uma visita oficial à China, fez questão de estar junto dos seus Amigos!
Agora é tempo de reencontros, e por isso, neste sábado, 9 de Setembro, está marcado um almoço no Páteo Alfacinha, em Lisboa, a partir das 12:30. O General Ramalho Eanes estará presente, juntamente com sua esposa, a Dra. Manuela Eanes. Na ementa do almoço estão incluídos muitos abraços, algumas lágrimas de emoção e... os sorrisos felizes de todos os presentes!!!
(Abraço, Luís Graça)
Cumprimentos,
João Paulo Diniz
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Nota do editor
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24629: Convívios (971): CCAÇ 3398 (Buba, 1971/73): Cinquentenário do regresso, Freiriz, Vila Verde, 2set2023 (Joaquim Pinto Carvalho)
Guiné 61/74 - P24635: In Memoriam (484): Carlos Alberto Rodrigues Cruz (26/05/1941 - 07/09/2023), ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió e Cachil, 1964/66)
Conforme notícia do nosso amigo Manuel Resende na página do Facebook da Magnífica Tabanca da Linha, faleceu no passado dia 7 o nosso camarada Carlos Cruz.
As cerimónias fúnebres terão lugar hoje, sábado, com a celebração de uma Missa às 14 horas e 30 minutos, seguindo-se o funeral para o cemitério de Oeiras.
O nosso malogrado amigo Carlos Cruz, que se apresentou à tertúlia em Janeiro de 2014, apesar do AVC que o vitimou há uns anos e deixou bastante limitado na sua mobilidade, ainda compareceu em três dos Convívios da Tabanca Grande, em Monte Real. Nesta foto, de 5 de Maio de 2018, durante o XIII Encontro da Tertúlia, em Monte Real, vemos o Carlos ladeado pela Enfermeira Paraquedista Gilselda Pessoa e pelo coeditor Carlos Vinhal. À esquerda, de pé, a sua filha Ana Cristina. Falta na foto a companheira de uma vida do Carlos, a Irene, que sempre o acompanhou até Monte Real. Nesta foto, num convívio da Maganífica Tabanca da Linha, em 2016, o Carlos Cruz acompanhado pela sua esposa Irene.
Nesta hora difícil, a tertúlia junta-se à dor da família do Carlos, deixando o seu testemunho de pesar e solidariedade.
Para a esposa Irene, filha Ana Maria e demais familiares, as nossas mais sentidas condolências.
O Carlos foi um corajoso militar e um lutador contra a doença que o apoquentou. Que lhe seja concedida agora toda a paz que merece.
Os editores
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Nota do editor
Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24577: In Memoriam (483): Senhora Enfermeira Maria Manuela Gonçalves Beja dos Santos (08/03/1937-22/08/2023), irmã do nosso camarada Mário Beja Santos
Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972
Guiné > s/l > s/d > Tenente 'comando' graduado Abdulai Queta Jamanca. Cortesia do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (Reproduzido no livro, pág. 229)
O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) |
(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;
(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;
(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;
(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;
(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);
(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;
(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)
(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;
(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);
(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;
(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,
(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.
(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.
(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;
O nosso camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra, facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.
Saímos de Bissau em viaturas até ao Bachile, onde estava uma força à nossa espera, uma companhia de europeus[1], milícias e pessoal de artilharia. Era aí a porta de entrada para a mata da Cobiana. Ficámos no Bachile, até à noite chegar. Depois, iniciámos a caminhada.
O responsável pela operação[2] era o tenente Jamanca, que era o comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos, com o indicativo “Jacaré”, e contávamos ter no ar o coronel pára Rafael Durão, o comandante do CAOP1.
Andámos a noite toda, até que de madrugada achámos um caminho, cheio de pegadas. Emboscámo-nos e mantivemo-nos quietos até por volta das 13h00, quando fomos sobrevoados por uma avioneta.
Como de costume, quando entraram em contacto, pediram a nossa localização. Depois de verem a tela que tínhamos estendido, o coronel Durão disse-nos para seguirmos a trajectória da avioneta, para os lados de um local onde estavam referenciadas várias barracas. Fomos nessa direcção e, quando chegámos ao local, encontrámos muitas barracas, com o chão coberto de folhas secas, sinal de que tinha sido abandonada, talvez há duas ou três semanas.
Em contacto rádio, o Jamanca transmitiu que estávamos lá dentro e o coronel deu-nos a indicação para as queimarmos. Chegámos-lhe fogo, estava o coronel a dizer que via muito fumo e começámos a ouvir rebentamentos, uns atrás dos outros, vindos das barracas a arder. Eram detonações de balas e de granadas. Nunca viemos a saber se eram munições esquecidas ou guardadas. Era quase como se estivéssemos a ser atacados e afastámo-nos bem das barracas.
Era uma missão ingrata, tínhamos que voltar a passar pelas barracas a arder. A nossa posição estava denunciada e as probabilidades de cairmos numa emboscada eram grandes. O nosso coronel contactou o Jamanca, voltando a perguntar onde estávamos. A avioneta não saía da zona, deu uma volta bem larga e voltou a aparecer em cima da nossa posição.
Nós, de facto, não estávamos a caminhar na direcção que ele nos ordenara. Achávamos uma ideia um pouco suicida.
A pergunta era sempre a mesma, onde estão, do lado esquerdo ou do lado direito da asa da avioneta. E o tenente respondia, se estávamos à direita ou à esquerda.
O coronel desconfiou que o Jamanca não estava a dar as respostas certas e disse para não sairmos daquele local porque ia mandar vir caças para bombardear uma zona onde estava a ver muito pessoal fardado. E disse que nos ia mostrar o local exacto onde estava a ver o tal pessoal, para nós não sairmos dali, onde dizíamos que estávamos.
A avioneta deu uma grande volta e, de repente, mergulhou mesmo por cima do local onde estávamos. Logo a seguir comunicou ao Jamanca que era nesse local que os aviões, que vinham da base de Bissau, iam largara as bombas.
Muito rápido, o tenente disse:
– Não! Não! Não! Somos nós que estamos aqui!
– Então, “Jacaré”, disse há pouco que a avioneta tinha passado por cima de vocês, bem longe daí! Como é que chegaram a esse local tão depressa?
O Jamanca não sabia o que responder, disse só que não lhe parecera conveniente voltar para trás e explicou os motivos. Nesse momento ainda se ouviam explosões de granadas e tiros e pelo ruído, algumas eram potentes, pareciam de morteiro e bazuca. O coronel Durão mandou-nos voltar ao local onde estivemos emboscados.
Depois, o alferes Tomás Camará, no local onde ficámos, disse qualquer coisa em voz alta. Um grupo do PAIGC, que estava a passar num carreiro um pouco longe na direcção da fumarada, deve ter ouvido a voz do Tomás, aproximou-se e detrás de um baga-baga dispararam contra nós alguns RPG. Mas o Tomás viu-os primeiro e gritou:
– Para o chão, já!
Quase meia dúzia de granadas de roquete bateram nas palmeiras, um pouco acima de nós. Durante alguns minutos ninguém levantou a cabeça. Todos os nossos oficiais foram atingidos.
Entretanto o coronel mandou-nos procurar um local perto de uma clareira, para no dia seguinte, sermos evacuados. Caminhámos das 18h00 até quase às 21, arranjámos um local que me pareceu bom, para passar a noite. No dia seguinte, fomos recuperados, sem qualquer dificuldade.
Tinha acabado de chegar uma informação de que o Amílcar Cabral, acompanhado de jornalistas, estava a visitar a zona do Boé, que o PAIGC reclamava área libertada.
E, rapidamente, encarregaram-nos de irmos até à zona de Madina do Boé[3], com o objectivo de perturbar ou impedir a tal visita.
De Bissau até Nova Lamego fomos de Nord-Atlas, depois em viaturas para Canjadude e daqui aqui até à zona de Madina do Boé fomos de helis, onde nos largaram em várias áreas.
Antes do meio-dia surgiram os Alouettes para nos levarem de volta a Canjadude. Estávamos com muita sede. Durante o dia a água fervia nos cantis, não a conseguíamos beber. Da avioneta disseram-nos que nos preparássemos para uma retirada rápida.
Quando os helis chegaram acompanhados por um helicanhão, já estávamos prontos a embarcar e, em minutos, estávamos no ar a caminho de Canjadude. Por rádio deram-nos a informação para passarmos para as viaturas estacionadas na pista. A água era uma miragem, estávamos mortos de sede e alguns disseram que agora só íamos ter água no Gabu.
Chegados ao Gabu, entrámos directamente nos aviões que estavam na pista, à nossa espera. E agora, para onde vamos?
Levantámos voo e, pouco depois, vimos Bafatá, lá em baixo. Bafatá ficava a cerca de cinquenta quilómetros do Gabu. A sede incomodava-nos muito, para já não falar da fome que sentíamos. Vi a ponte do Saltinho, lá em baixo e depois começaram a baixar e aterrámos em Misside Quebo[4]. De cada um dos aviões saíram duas macas com soldados. Tinham desmaiado com a sede, agravada pelo calor dos aviões.
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[1] Nota do editor: CCaç 16.
[2] Nota do editor: entre 28 Abril e 1Maio 1972.
[3] Nota do editor: 28 Março/08 Abril 1972.
[4] Aldeia Formosa, Misside Quebo em Fula.
Último poste da série : 22 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24576: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIII: Morés, Morés!
sexta-feira, 8 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:
Queridos amigos,
Esta História do mundo em 100 objetos ocupa-se, de uma maneira totalmente original, de abordar 100 objetos que nos conduzem numa viagem no tempo e no espaço, dando-nos a conhecer como a Humanidade moldou o mundo, desde a Pré-História a este emergente século XXI. Se começamos em África de há dois milhões de anos a ele regressamos no início do presente século para ver uma escultura patente no Museu Britânico feita de armas que nos falam da Guerra Fria, da luta de libertação, de choques interétnicos, da incapacidade dos países recém-independentes terem sabido reconciliarem-se e caminharem juntos, pacificamente, para uma via de progresso, de equidade e bem-estar.
Dos 100 objetos escolhemos o Trono de Armas como marcante de um projeto de reconciliação que fizesse retirar milhões de armas do meio familiar, fazer desaparecer as crianças-soldados, remover as minas, dando como contrapartida a todos aqueles que entravam neste projeto-paz e restituiam as armas, enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material de construção civil. Esta escultura feita de pedaços de armas forçosamente que nos perturba, de uma peça de destruição fez-se alegoricamente um trono, a tecnologia tem destes prodígios, de uma hora para a outra a fábrica de eletrodomésticos pode transformar-se numa construtora de armas sofisticadas. É o estupor desta fragilidade de que este trono também fala.
Um abraço do
Mário
Um registo da guerra que dá pelo nome de trono de armas, tragédia e triunfo humanos
Mário Beja Santos
Uma História do Mundo em 100 Objetos, por Neil MacGregor, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais prementes desafios energéticos.
Este Trono de Armas é inquietante e avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda, é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais sangrentas e parece que ainda não estancou.
As armas que dão forma a esta cadeira traçam a história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como enfatiza Neil MacGregor: “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos soldados e das suas famílias.
O Trono de Armas tornou-se um elemento inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de “retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.
Este trono, patente no Museu Britânico, foi criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco: é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar, mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.
Kester fez deste trono uma mensagem de esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir". Foi um acidente visual que Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes para paz e liberdade que chegou”.
No seu todo, este original livro que nos conduz da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.
Nota do editor
Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24632: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (10): ex-alf mil cav Jaime Machado, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) - Parte VII: beldades de Bambadinca
Foto nº 1
Foto nº 1A
Foto nº 3
Foto nº 3A
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá _ Setor L1 > Bambadinca > BCAÇ 2852 (1968/70) > Pel Rec Daimler 2046 (1968/1970) > Fevereiro de 1970 > "Eu com um belo conjunto de bajudas junto à capela"... Se não é uma foto de despedida, até parece; mas não, nenhuma delas era conhecida do fotógrafo; dias mais tarde, finda a comissão, em fevereiro de 1970, o Pel Rec Daimler 2046, comandado pelo alf mil cav Jaime Machado, partiria para Bissau donde regressaria à metrópole, no T/T Niassa, em abril de 1970.
Fotos (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]
[Foto atual, à direita, do Jaime Machado, que reside em Senhora da Hora, Matosinhos; sua avó paterna era moçambicana; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]
2. Comentário do editor:
Ao tempo do BART 2917 (1970/72), que o Jaime já não conheceu (veio render o BCAÇ 2852, 1968/70), havia só no regulado de Badora (que incluía, Bambadinca, o principal núcleo populacional com c. de 1500 habitantes), uma população total (recenseada e controlada pelas NT) de c. de 12 mil, metade dos quais de etnia fula.
Os restantes eram mandingas (20%), balantas (20%) e outros (10%), onde se incluíam mansoanques, manjacos e alguns cabo-verdianos e metropolitanos, cristãos.
No conjunto do setor L1 (que incluia ainda os regulados do Xime, Corubal, Enxalé e Cuor), o total da população sob o nosso controlo não ia além dos 15200. Segundo a mesma fonte (a história do BART 2917), a população sob controlo do IN, andaria à volta das "5400 pessoas, na sua maioria de etnia Balanta, Beafada ou Mandinga" (nos regulados do Corubal, Xime, Enxalé e Cuor).
Perguntei ao Jaime Machado o que é que estas beldades, bem arranjadas, "bem produzidas" (como se diz no Norte), fariam aqui, junto à capela de Bambadinca, em fevereiro de 1970 ? Era dia de festa ? Era domingo ? Seriam cristãs ? Seriam fulas, seriam mandingas ?
Apesar da sua "memória de elefante", o Jaime confessou que não se recorda de mais pormenores:
O Jaime admite que elas fossem cristãs, estavam com ar domimngueiro, bem vestidas e calçadas. (De facto, não há nenhuma descalça, até por que o chefe de posto não autorizava "pés-descalços" ali nas imediações da "cibilização"...).
Quanto a mim, seriam mandingas, a avaliar pelas feições, pelo vestuário e pelos adornos... Embora houvesse de facto uma pequena comunidade cristã em Bambadinca, não vejo crucifixos ao peito, mas sim colares, e numa delas com um amuleto (talvez em prata, uma figa, que é de origem europeia, etrusca e romana, e não africana, estando associada originalmente ao erotismo e à fertiliddae, e hoje à proteção contra o mau olhado) (foto nº 1 A)...
Por outro lado, a porta da capela está fechada... Fica a dúvida: seriam bajudas cristãs ou fulas e/ou mandingas, islamizadas ? Um certeza: para estas lindas, amorosas, bajudas, era um "dia de ronco", talvez elas fossem, frescas, alegres e divertidas, para algum casamento, ali em Bambadinca ou em Bambadincazinho.
3. Comentário do Cherno Baldé (**):
A postura e o olhar algo envergonhados, a indumentária, os penteados e os enfeites na cabeça e no corpo, dizem isso mesmo.
Ainda seriam solteiras mas, nesta idade estariam todas comprometidas (com casamentos arranjados entre os pais) e aproveitam os últimos meses de liberdade antes do casamento.
A presença de elementos ou símbolos estranhos usados como adornos pode ser explicada por razões de urbanização e da crescente mistura/influência de outros hábitos e culturas em Bambadinca (centro urbano e importante elo de ligação ao resto do país) e arredores, devido à guerra e ao movimento das populações.
(...) A expressao "islamizado/a" não é correcta, seria mais correcto dizer "islâmico/a", pois já nasceram dentro de uma familia, meio e cultura islâmicas, mesmo que superficial. Islamizados seriam os seus bisavos que, de facto foram coagidos (de forma voluntária ou não) a uma conversão, muitas vezes forçaada, nos séculos. XVIII/XIX.
De notar que os portugueses nunca utilizam a expressão "cristianizados" quando se referem aos guineenses de confissão cristã.
(*) Último poste da série > 4 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24617: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (9): ex-alf mil cav Jaime Machado, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) - Parte VI: o porto fluvial de Bambadinca, uma das portas de entrada no Leste, a par do porto fluvial do Xime
(**) Vd. poste de 7 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15215: Fotos à procura de... uma legenda (63): Bajudas de Bambadinca, fevereiro de 1970: um "grupo de idade" da etnia fula num dia de festa tradicional (Cherno Baldé, Bissau)
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I
Belmiro Tavares
A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!
Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!
Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.
Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!
Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.
Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.
Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.
A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!
O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!
Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.
Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.
A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.
Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.
A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:
- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.
A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:
- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.
O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).
O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.
Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.
O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!
Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:
- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.
Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa.
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.
Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.
No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.
Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.
Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:~
- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!
Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!
Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.
O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!
Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.
Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!
Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!
Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.
A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!
Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!
O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.
Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada.
Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!
O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!
Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.
Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.
Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.
O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.
Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.
Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.
O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.
Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.
Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.
Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.
Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.
À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.
Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.
Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!
Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.
No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.
A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.
Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.
No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.
Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!
Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.
Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!
Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!
Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.
Lisboa, julho de 2023
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