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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Guiné 61/71 - P24305: Armamento do PAIGC (4): Morteiro pesado 120 mm M1943, de origem russa, usado nos ataques e flagelações a aquartelamentos das zonas fronteiriças, como Gandembel, Guileje, Gadamael, Guidaje, Copá ou Canquelifá


Guiné > PAIGC > 1973 > O temível morteiro 120 mm, usado na batalha dos 3 G (Guidaje, Guileje, Gadamael)... Só Guileje tinham abrigos  feitos pela Engenharia Militar, o BENG 447, à à prova de morteiro pesado...  As granadas tinham uma espoleta de atraso, perfurante, permitindo um melhor desempenho, após uma perfuração inicial das estruturas dos abrigos.

Foto (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Sector L4 >  Canquelifá >  Março de 1974 > A desolação da guerra... A tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas, em 18 de março de 1974...

Foto (e legenda): © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]


1. Continuando a série "Armamento do PAIGC" (*), apresenta-se hoje o morteiro pesado 120 mm, usado contra alguns aquartelamentos de fronteira, tais como Guidaje, Guileje e Gadamael, em maio e junho de 1973, Copá, em janeiro de 1974, ou Canquelifá, em março de 1974, mas já também em 1968 contra Gandembel, Cameconde, etc.

A estreia foi contra Gandembel em agosto de 1968. As bases de fogos eram sempre localizadas no território da Guiné-Conacri. Foi utilizada, contra as NT, como arma de artilharia. E não tinham, à exceção de Gandembel, Guileje e pouco mais, abrigos à prova do morteiro 120 mm. Os nossos "bunkers" eram "bu...rakos", escavados na terra, e com cobertura de terra, chapa de zinco e troncos de cibe...

 
 O nosso especialista em história da artilharia e armas pesadas do PAIGC, cor art ref Nuno Rubim (de quem não temos, infelizmente, notícias há muito) escreveu aqui em tempos (**):

(...)  As munições do morteiro de 120 mm tinham efectivamente uma espoleta de atraso, perfurante, para permitir o rebentamento da granada já depois de ser obtida alguma penetração.(...)

É dele também a foto do mroteiro 120 mm que publicamos acima.

2. Temos muito pouca informação técnica sobre esta arma usada pelo PAIGC, desde pelo menos desde agosto de 1968 (contra Gandembel, segundo testemunho do nosso camarada Idálio Reis, e confirmado pela  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pág. 143).

Devido ao seu peso (275 kg,  sem contar com os cunhetes das granadas), esta arma coletiva, de tiro curvo, só podia ser rebocada e usada nas zonas fronteiriças. 

Em 1968, e segundo a mesma fonte (CECA, 2015, pág.145), o PAIGC, além de já estar dotado de meios de transmissões, e de já dispor do canhão s/r  8,2 cm "Tenasrice" (facilmente transportável e pondendo disparar, apoiado no ombro do atirador!), também tinha feito progressos no que diz respeito aos meios de transporte: dispunha, em 1969, de cerca de meia centena de viaturas Zil e Gaz, para além de alguns autotanques e algumas automacas. Essas viaturas,  todavia, só circulavam nos países limítrofes (Guiné-Conacri e Senegal), não ultrapassando, em regra, a  linha fronteiriça.

Segundo a mesma fonte, "o morteiro 120mm, com um alcance de 5700 metros" era uma arma que "no exército  soiviético, estava a substituir o morteiro 8,2cm", o que não é comfirmado pro outras fontes que consultámos...

Segundo a Wikipedia (em inglês), julgamos que se trata do morteiro M1943 ou 120-PM-43 (em russo: 120-Полевой Миномёт-43) ou o morteiro de 120 mm Modelo 1943 (em russo: 120-мм миномет обр. 1943 г.), Era também conhecido como Samovar.

Com cano de alma lisa, calibre 120 milímetros, foi introduzido pela primeira vez em 1943 como uma versão modificada do M1938. Na prática, veio substituir o M1938 como arma-padrão para baterias de morteiro em todos os batalhões de infantaria soviéticos no final dos anos 1980, embora os exércitos do Pacto de Varsóvia utilizassem um e poutro modelo.

Especificações técnicas:
  • Peso total: 275 kg (tubo, bipé e prato);
  • Granada (HE-120): 16 kg; (granada altamente explosiva);
  • Equipagem:  6 elementos;
  • Calibre: 120 mm;
  • Carregamento: granada introduzida pela boca do tubo que tinha, no fundo, um percutor fixo;
  • Elevação: +45° a +80°; 
  • Cadência de tiro: 9 tiros por minuto no máximo, 70 tiros por hora no máximo;
  • Velocidade inicial da granada: 272 m/s (Frag-HE & HE);
  • Alcance efetivo de tiro: máximo de 5.700 m, mínimo de 500 m.  

A Guiné-Conacri é um dos países que ainda dispõe, atualmente, desta arma tal como a Guiné-Bissau (neste caso, uns 8 morteiros, não sabendo nós se algum é "sobrevivente"  do tempo da guerrilha)...

Esta arma, de carregar  pela boca,  pode facilmente ser dividida em três partes (tubo, bipé e prato) para movimentação em distâncias curtas ou rebocada por um camiã0  Zil ou Gaz numa atrelado de duas rodas.

É um sucedâneo do 120-PM-38 ou M1938 , Os russos eram "bonzinhos" mas não eram "parvos": não sabemos se não terão mandado para Conacri (e/ou para o PAIGC)  alguns exemplares desta "sucata da II Guerra Mundial"... 

O morteiro soviético 120-PM-38 ou M1938, de 120 mm,  foi  usado em grande escala pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Embora fosse um projeto convencional, a combinação de 4 factores (peso,  mobilidade, poder de fogo e alcance) levou ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas versões, como o 120-PM-43.

Já em 1968 e 1969, o IN utilizava o morteiro 120mm contra aquartelamentos fronteiriços no sul: Guileje, Gadamael, Cameconde, Cacine...At6é 1970, as NT náo capturaram nenhum morteiro pesado do IN.

Na Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, foi batida a zona de Campiã / Cantiré, sector L4, nas proximidades de Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a très agrupamentos. Na zona estava referenciada uma base de fogos IN.  

No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: (i) 3 morteiros 120 mm; (ii) 367 granadas de morteiro 120 mm;  (iii) 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingaradas automáticas Kalashnikov;  e (v) material diverso. 

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas  três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). 

Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN.  (Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)
______________


(...) No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia 1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos. (...)

Comentário do C. Martins (3 de julho de 2022 às 03:16):

(...) A descrição feita pelo sr. ex-capitão "comando" Ferreira da Silva, hoje coronel e advogado, está muito correta com a excepção da granada que provocou 3 mortos e 12 feridos, não caíu na cobertura da zona de descanso, mas sim dentro do espaldão,tendo ficado o obús inoperacional Nunca mais tantos homens ficaram dentro do espaldão.

O quartel ficava a 4 km da fronteira. As bases de fogos do IN ficavam todas dentro da Guiné-Conakry, sendo as peças, morteiros, grads, etc.. manobradas por cubanos.  (...)

Era muito difícil fazer contra-bateria. Felizmente para nós o IN tinha maus artilheiros, com excepção de um dia de fevereiro/74 em que as "enfiaram" todas na orla da mata em frente aos obuses, com granadas perfurantes e incendiárias; se tivessem corrigido o tiro em 100 metros mais à frente, hoje  eu não estaria certamente a escrever estas linhas. (...)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23655: Os bu...rakos onde vivemos (15): O destacamento da Ponta do Inglês que tinha um gerador que nunca funcionou e onde havia um poço a 700 metros do arame farpado, que servia três clientes: as NT, o IN e a população sob o seu controlo (e que, por isso, nunca foi envenenado) (António Vaz, 1936-2015, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)



Guiné > Região de Bafatá > Xime > Ponta do Inglês > O destacamento da Ponta do Inglês, um dos muitos "bu...rakos" onde viveu gente nossa, neste caso de dezembro de 1964 e outubro de 1968. Ilustrações de Vera Vaz (2012).


1. Houve muitos sítios "desgraçados" onde vivemos, ao longo da guerra da Guiné... Temos uma série a que chamámos "Os bu...rakos em que vivemos"... Publicaram-se 14 postes, em março e agosto de 2009. 

Pela amostra (*), vê-se que estamos longe de ter um painel representativo dos nossos aposentos "bunker...izados", sítios onde nem sequer havia geradores nem muito menos "climatizadores de pesadelos"... Muitos outros postes dos já 23 mil e tal que já publicámos, podiam caber nesta série...

Às vezes redescobrimos alguns e achamos que vale a pena "refrescá-los" e pô-los nesta série... Por uma razão ou outra. É o caso do poste P10009 (**), primorisamente escrito pelo nosso saudoso António Vaz (1936-2015) (***) e ilustrado pela sua filha (salvo erro) Vera Vaz. Eze topónimo, "Ponta do Inglês", tem mais de quatro dezenas de referências no nosso blogue.


O destacamento da Ponta do Inglês

por António Vaz (1936-2015) 
(ex-cap mil, CART 1746. Bissorã e Xime, 1967/69)

− Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… − disse, ao aterrar  [no seu heli] o brigadeiro Spínola. 

−  Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês − respondeu o alf mil João Mata, da CART 1746,  que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.

[É com este saboroso diálogo, entre o novo "homem grande de Bissau" e um oficial miliciano já completamente "apanhado do clima", que poderei  contar a história ou o resto da história do destacamento da Ponta do Inglês.]  A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. Um grupo de combate seguiu directamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este pelotão da Cart 1746 era comandado pelo alf mil Gilberto Madail [mais tarde, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entre outros cargos], e que lá permaneceu [naquele bu...rako,] cerca de 4 meses, sendo substituído por outro, comandado pelo alf Mil João Guerra da Mata que lá esteve até outubro [de 19681], data em que este destacamento foi abandonado,[por ordem de Spínola] .

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado capitão Torres de Meireles, morto em combate na Ponta Varela.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês / Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.

Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido, estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do alf Madail, o Fado da Fome, que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 Gr Comb + 1 Esq Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.

O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do rio Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão?) um abrigo mais pequeno onde ficava o alferes, o enfermeiro e, logo ao lado, o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.

Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.

A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa

Diz o Manuel  Moreira  [1945-2014]

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro inimigo.

As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam.
Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para... "estar". A dispersão de meios que encontramos no 
[sector] L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

− Antes eles do que nós.

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram, conseguimos levar para, além de gado mais miúdo, algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta, houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

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A vaca tísica... Ilustração de Vera Vaz (2012)

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde.

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer, o alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o soldado condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês, vai ter com o alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos.

− Come-se a vaca... ou não se come a vaca?

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados, tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:

− Meu alferes, a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os... cornos.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Nunca percebi por que razão se fez o destacamento, afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil, é inenarrável. : [Em comnetário ao poste P7590 (****), o José Nunes, ex-1º cabo mec eletricidade, BENG 447, 1968/70; escreveu:  

(...) "O aquartelamento da Ponta do Inglês estava operacional em abril de 1968, quando aí nos deslocámos pra montar o grupo gerador, ficava junto ao rio e não havia cais, o Unimogue avançou rio dentro até da LDP [Lancha de Desembarque Pequena] de onde se descarregou o gerados a pulso. A iluminação era feita [, até então,] com garrafas de cerveja com uma mecha, cheias de combustível, e as havia a servir de alarme, havia muitos macacos na zona que causavam problemas, ao agarrar o arame farpado da zona de protecção. Foi uma permanência de horas por causa das marés." (...) 

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível, tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a malta corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil, era enorme, embora, que me lembre, nunca tenha havido flagelações nessas alturas.

Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e, mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas, não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie.

Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas, segundo o testemunho do tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º cabo aux enf Cordeiro Rodrigues, o "Palmela", ajudado por ele, que assistiu ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e, se caíam nas redondezas, eram o pitéu desse dia.

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência.

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que, para além do pelotão da 1746, Secção de Morteiros e Milícia, estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.



Guiné > Carta de Fulacunda (1955) > Escala de 1/ 50 mil > Posição relativa da Ponta do Inglês, na maregm direita do Rio Corubal, fente à pensínsula de Gampará.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012)


Segundo informação de oficiais do BART 1904, o brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado, e só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ...E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (Fausto).

António Vaz, ex cap mil

PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata, o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.

[ Revisão / fixação de texto / parênteses retos,  efeitos de publicação deste poste: LG ]


Leiria > Monte Real > Palace Hotel de Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). 

O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné.  Julgo que vive em Évora. Infelizmente, não é membro da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados   [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

 (*) Vd. postes de:

21 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)

3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)

8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4369: Os bu...rakos em que vivemos (11): Banjara City, capital do Oio (Fernando Chapouto, CCaç 1426, 1965/66)

14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4346: Os bu...rakos em que vivemos (10): Também havia um em Nova Lamego (Luís Dias)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4321: Os Bu...rakos em que vivemos (9): No Mato Cão, com o Ten-Cor Polidoro Monteiro, em finais de 1971 (Paulo Santiago)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)

12 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)

10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu... rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)
7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

5 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4141: Os Bu... rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

(**) Vd. 7 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

(***) Vd. 30 de 20 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012

(****) Vd. poste de 11 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22763: O que é feito de ti, camarada? (14): Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3.º Gr Comb, CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74)...Viúvo, acaba de fazer 72 anos, está reformado como industrial de panificação... e abriu conta no Facebook.


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Ponte sobre o Rio Caium > CCAÇ 3546 (1972/74) >  Destacamento da Ponte Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste",  de que fazia parte o nosso amigo e camarada Jacinto Cristina, natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, 72 anos, feitos no passado dia 14 (*). 

Soldado atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, casado e pai de um filha pequena,   foi um "sem-abrigo", viveu um ano e tal em cima de um tabuleiro da Ponte Caium, com a G3 a seu lado... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 24/9/2010, tem cerca de 4 dezenas de referências no nosso blogue. Vive em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, reformado de padeiro e viúvo.

Fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O que é feito deste camarada (**)  que ficou "famoso" por bater o recorde de permanência no destacamento da Ponte de Caium ?

A ponte, a padaria e o padeiro... O forno foi construído na parte inferior da ponte... Como o espaço era acanhado, tudo se aproveitava... O forno e a cozinha ficavam do lado esquerdo, no sentido Piche-Buruntuma (Foto nº 1)...

De costas, em tronco nu, vê-se o Manuel da Conceição Sobral (que vive hoje em Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém), e era o ajudante de padeiro. O Jacinto Cristina, o padeiro, está a enfornar (Foto nº 1)...

No destacamento da ponte de Caium (Foto nº 6) estava um grupo de combate, à época pertencente à CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74). O Sobral e o Cristina faziam reforço das 4 às 6 da manhã. Por volta das 5h/5h30, um deles ia amassar a farinha (12 kg / dia)... O outro ficava de reforço até às 6. Depois das seis, até às 8h/8h30, ficavam os dois a trabalhar. Às 9h já havia pão fresco... 

Todos os dias coziam. Tinham um stock de farinha que dava para um mês. Faziam uma média de 30 pães de 400 gramas, por dia. Como bons tugas, os camaradas que defendiam a ponte, adoravam pão!... O resto do dia os padeiros descansavam, ou jogavam à bola, ou brincavam no rio, quando levava água... Tabanca só havia a 3 km dali.

O Sobral era o apontador do morteiro 81 e o Cristina o municiador. Portanto, uma parelha completa!... Depois na "padaria", trocavam de papeis...Também havia um morteiro 10,7, ao cuidado do Pinto e do Algés. O 81 ficava do lado direito, à saída da ponte, no sentido de Buruntuma. O 10,7 ficava no lado esquerdo, junto ao paiol, também no sentido de Buruntuma... Mais à frente estava o 1º cabo Torrão, apontador da HK 21 (irá morrer na emboscada de 14 de Junho de 1973, na estrada Ponte Caium - Piche). Também havia o morteiro 60 e a bazuca 8,9.

O Cristina (eu trato-o sempre por Jacinto, pai da minha querida amiga Cristina Silva, enegenheira e empresária,  e sogro do meu querido amigo, o médico madeirense Rui Silva, não o  posso tratar por "doutor" que ele vai aos arames...)  tornou-se de tal maneira imprescindível (por causa do "pão nosso de cada dia") que, além de municiador (e apontador, quando necessário) do morteiro 81, ficou na ponte de Caium 14 meses!!!... (Em rigor, 13, se descontarmos o glorioso mês de férias, em abril de 1973, em que veio a casa para estar com a mulher e a filha; com ele, de férias, vieram também o Pinto, o Charlot e o Algés; no avião da TAP, uma alegria!...Já não se lembra de quanto pagou... Uma fortuna para um soldado, para mais casado e pai de filha..."Seis contos, para aí", diz-me ele.)

Diziam que o pão da dupla Cristina-Sobral era o melhor casqueiro da Zona Leste... Na foto nº 2,   o Jacinto está varrer e a limpar o forno... Na foto nº 3, está a fazer um petisco, ou não fosse ele um alentejano dos quatro costados... Na foto nº 4, está a barbear-se... Mesmo com o metro quadrado mais caro da Guiné, nas "suites" da Ponte Caium não faltava nada (Foto nº 5)... O chuveiro era um bidão de 200 litros, furado...

Terrível foi aquele período de um mês (entre meados de maio e junho de 1973) em que o destacamento esteve sem reabastecimentos, sem farinha, sem pão... Por que a fome era negra, meteram-se a caminho de Piche, no Unimog, a 14 de junho de 1973, tendo sofrido uma brutal emboscada (que não era paraceles..
) e em que morreram o 1º cabo apontador de metralhadora David Fernandes Torrão, e os soldados atiradores Carlos Alberto Graça Gonçalves ("Charlot"), Hermínio Esteves Fernandes e José Maria dos Santos...

Disse-me o Jacinto Cristina (que ficou na ponte a tomar conta do seu morteiro 81), que os corpos foram cortados em quatro, com rajadas de Kalash... O bigrupo do PAIGC (onde foram referenciados cubanos) levou cinco armas (incluindo a do furriel que foi projectado com o impacto do RPG7, juntamente com o sold cond auto Rocha, o Florimundo ).

Uns meses antes, em 19 de Fevereiro de 1973, tinha morrido o fur mil op esp Amândio de Morais Cardoso, na sequência da desmontagem de uma armadilha de caça. Essa cena passou-se debaixo dos olhos do Cristina que se salvou por um triz, ao pressentir o perigo.

Na foto nº 5, vê-se o tabuleiro da ponte por onde passava a estrada Piche-Buruntuma,,, A padaria ficava em segundo plano do lado esquerdo... A foto deve ter sido tirada no dia dos anos do Sobral, em março de 1973, a avaliar pelos dois cabritos que estão junto ao "burrinho" (o Unimog 411)... Tinham sido comprados na tabanca fula, que ficava a nordeste da ponte, a 3 km, e onde residiam as lavadeiras...

Soldado atirador, o Cristina era, como já dissemos, municiador do morteiro 81. Mas, uma vez que Piche ficava longe e era preciso fazer pão todos os dias, aprendeu a arte de padeiro (que depois seria o seu ganha-pão, em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, onde vive, hoje já refiormado; durante anos, teve um negócio próprio na área da panificação; passei várias vezes pela casa e padaria, e trazia para Lisboa o seu pão feito na hora; pude, pois, comprovar que o seu "casqueiro" era, de facto, o melhor da região).

Como se percebe pelas fotografias, as estruturas da ponte foram aproveitadas ao milímetro...

Na foto nº 6 (s/d, tirada na época seca, em 1973), o destacamento é visto da margem esquerda do Rio Caium, a sul da estrada, no sentido Buruntuma-Piche. Segundo o Carlos Alexandre (, de alcunha, "Peniche"), ao examinar melhor uma imagem destas que lhe mandei, com maior resolução, vê-se que,  à entrada do tabuleiro, estão dois camaradas que parecem ser o Cristina e o Sobral.

Um novo troço da estrada Piche-Buruntuma estava então em construção, a cargo da Tecnil. De Nova Lamego a Piche já se ia, há muito, em estrada asfaltada. Daí talvez este desvio, contornando a pontes.  O desvio é visível (parcialmente, em primeiro plano) na foto nº 6.

Na foto nº 7, pode-se ver um aspecto dos pilares da ponte... O Cristina, mais um camarada, na "hora do recreio" (ele não se recorde do nome)... Ali no rio Caium, naquela improvisada jangada, poderiam dar largas à sua imaginação de marinheiros e aventureiros... Na época seca, o rio levava pouca água... O abastecimento de água era feito mais longe, de Unimog, com segurança,

Na época seca, o rio Caium ficava seco (ou reduzia-se a um pequeno charco à volta da ponte). Este rio é um afluente do Rio Coli, que fica a sul da estrada Nova Lamego-Piche-Buruntuma e serve de linha fronteiriça entre a Guiné-Bissau e a Guiné-Conacri. (***)

Entre o destacamento e a fronteira era "terra de ninguém" mas onde o PAIGC podia movimentar-ser à vontade.

Foto nº 8


Foto nº 9

Ferreira do Alentejo  > Figueira de Cavaleiros >  2021 > O Jacinto Cristina, agora reformado, ainda vai fazendo pão  para a a família e os amigos... Fotos da sua página no Facebook.

Fotos (nºs 8 e 9): © Jacinto Cristina (2021). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 10


Foto nº 11

Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 14 de novembro de 2021 > O Jacinto Cristina e o genro, o médico Rui Silva....A foto nº 10  foi tirada pela filha, a engª Cristina Silva (que aparece na foto a seguir, nº 11.). Uma família feliz... Filha e genro vieram de propósito do Funchal para fazer uma surpresa no 72º aniversário do Jacinto...

Fotos (nºs 10 e 11): © Rui Silva (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Há já uns tempos (, uns anos bons,) que o não vejo nem lhe falo ao telefone... Mas não nos esquecemos de lhe dar todos os anos os parabéns pelo seu aniversário, a 14 de novembro... 

Este ano eu estava no Funchal quando a filha, Cristina Silva (, membro da nossa Tabanca Grande),  e o genro, Rui Silva, se preparavam para vir fazer-lhe, na sua casa em Figueira de Cavaleiros,  uma surpresa!... E que surpresa!..

Eu fiz questão de me associar à festa, e o Rui Silva teve ocasião de lhe ler a mensagem e os versinhos que escrevi para o Jacinto... E que reproduzo aqui, mesmo já com duas semanas de atraso. (Apesar de sermos camaradas, ele é um pouco formal comigo, tratando-me por professor e por você... Fiz questão agora de começar a tratá-lo por tu, esperando que ele faça o mesmo comigo...)


Mensagem para o Jacinto Cristina, no seu dia de aniversário

Camarada Jacinto, os bravos da Guiné tratam-se por tu...E em dia de aniversário eu venho aqui desejar-te o melhor da vida. Sei que já não te apanho, muito menos no teu centenário.. E ainda pro cima de canadianas.Mas quero que sejas muito  feliz e tenhas boa saúde e o amor e a estima da tua família e dos teus amigo. Trata-me sempre muito bem as tuas princesas, a Cristina e a Sara [, a neta, a estudar em Inglaterra ]. E es um sortudo por teres arranjado um genro como o Rui Silva que tem um coração maior do que a terra dele. Felicidades tambémpara a tua  companheira que eu ainda não conheço.

Gostava de te voltar a ver em Figueira de Cavaleiros, em Lisboa ou na Lourinhã. Ou até no Funchal. Pode ser que um dia destes calhe...Para alegrar a tua festa, viu-te mandar uns versinhos que fiz no avião Lisboa-Funchal para a Cristina ou o Rui lerem...

Tanto tempo sem te ver,
Meu camarada Jacinto,
Já saudades de ti sinto,
'Tá na hora d'aparecer.

'Tá na hora d'aparecer.
Sempre foste hospitaleiro,
De Caium o milagreiro,
Qu'a muitos deu de comer.

Qu'a muitos deu de comer,
Lá na ponte de Caium,
Não faltando a cada um
O que todos queriam ter.

O que todos queriam ter,
Era o casqueiro p'la manhã,
Mesmo sem manteiga haver,
Lembrava o pão da mamã.

Lembrava o pão da mamã,
O teu Alentejo querido,
Na alma vieste dorido,
Da guerra em terra pagã.

Da guerra em terra pagã,
Resta a camaradagem,
Mas p'ra próxima viagem,
Tens que vir à Lourinhã.

Daqui do Funchal bebemos um copo à tua saúde,
e dos teus queridos que estão aí à tua mesa.
Luís (e Alice), 14 nov 2021.

Comentário do Rui Silva:

Lindo! Obrigado...E missão cumprids. O seu gentil texto e o poema comoveram o Jacinto,
como se pode  apreciar nas fotos que vos enviei por Whatsapp. Deram um toque muito pessoal e amigo a esta singela festa... Ele adorou, bem haja, uma vez mais... Rui
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 14 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22717: Parabéns a você (2004): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546/BCAÇ 3883 (Piche e Camajabá, 1972/74) e Maria Arminda Santos, Ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)

(***) Vd. poste de 24 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7033: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (1): O melhor pão da zona leste...

sábado, 16 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de PIche, a meio da estrada entre Piche e Canquelifá, como rio Caium a sudeste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > Dunane >  Temos uma dúzia de referências a Dunane, um lugar perdido no Leste, um dos muitos Bu...rakos da nossa geografia de guerra,. E este topónimo remete ora para  o Cristóvão de Aguiar (CCAÇ 800, 1965/67) ora para o Zé Ferreira  da Silva (CART 1689/BART 1913, 1967/69), dois dos nossos escritores de talento. A diferença entre eles é que o Zé Ferreira, um "assumido bandalho", tem carradas de humor, que é coisa que falta (va) nos escritos do açoriano. 
 E foi ele, o Zé  Ferreira, quem celebrizou, na guerra da Guiné, o nome de Dunane, com o Bife à Dunane, criado por um cozinheiro madeirense, o "Senhor Badalhoco" (, texto que já faz parte do... Plano Nacional de Leitura).(*)

Foto (e legenda): © José Ferreira da Silva (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (**). 

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (***)


Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)

Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

Contuboel, 12 de Outubro de 1965

O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Can­quelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. 

Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores desta­camentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bi­chenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. 

Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova La­mego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atre­vem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os ví­veres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais se­guro... 

Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que re­sista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facili­dade...


Contuboel, 15 de Outubro de 1965

Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham também várias instruções sobre o mate­rial a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabi­nas dos Unimogs por causa de surpresas de­sagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a via­gem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Pi­che... 

Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei con­venientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), or­dens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que come­cem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.

Dunane, 19 de Outubro de 1965

Após uma viagem atribulada e cansativa, chegá­mos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma forna­lha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. 

Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. 

Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de car­dos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...


Dunane, 21 de Outubro de 1965

CRISTAIS DE DOR

Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.

Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.

Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.

Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.



Dunane, 3 de Novembro de 1965

MORTOS-VIVOS

Somos os mortos-vivos duma geração
Tran­cada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.

Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Ar­reda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...



Dunane, 6 de Novembro de 1965

ANSIEDADE

Conto os dias pelos dedos
Um a um sem fa­lhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...

Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.

Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...



Dunane, 10 de Novembro de 1965

PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR

A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do cora­ção.

As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?

Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...

O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.

O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.


Dunane, 15 de Novembro de 1965

SEGUNDA CANÇÃO DO MAR

Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de me­nino.

Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...

Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...


Dunane, 18 de Novembro de 1965

UM BARCO NA NOITE

Na noite subversiva havia um barco
Anco­rado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais

Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.

Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...

Tudo por fim rolou na lem­brança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...

Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...


Dunane, 23 de Novembro de 1965

Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já al­gum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. 

Estamos em solidão absoluta e com falta de víve­res. À noite, entretém-se o pes­soal com o espectáculo deslum­brante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lam­bendo o horizonte cir­cular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame far­pado se pode an­dar à von­tade.

Contuboel, 1 de Dezembro de 1965

Chegou o novo capitão para comandar a com­panhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intui­to de trei­nar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. In­formou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma re­parti­ção do Quar­tel General, em Bissau, após ter estado em prolongada con­vales­cença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os senti­mentos.

Contuboel, 25 de Dezembro de 1965

OUTRO TEMPO

Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...

Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.

- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...



(Continua)

___________

Notas do editor:

terça-feira, 18 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)



Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamentos e aquartelamentos > 1968 > A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Sare Ganá... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. O IN tinha uma importante base em Sinchã Jobel, a oeste de  Geba, a sul de Banjara, a sudeste de Mansabá. (*)

Infografia: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.





Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 14 anos por A. Marques Lopes.


As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira,
um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925,  dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...




Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > Na foto, o ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves Altamiro Claro, membro da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884 (Geba, 1972/74).

Foto (e legenda): 
© Altamiro Claro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Uma bomba da FAP (Força Aérea Portuguesa), das muitas que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra colonial, e que não chegaram a explodir. Na foto, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes. Em finais de 1967, Sinchã Jobel passou a ser uma ZLIFA (Zona Livre de 
Intervenção da Força Aérea). Ficava no regulado de Mansomine, entre Mansabá e Bafatá. A foto, histórica, é do organizador desta viagem, do Porto a Bissau, em abril de 2006, o Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]. Levou o jipe, que lá ficaria para futuras viagens. O grupo regressaria depois de avião. Acompanhou, em 22 de abril de 2006, o A. Marques Lopes neste regresso, emocionante, à mítica Sinchã Jobel. (*)

Foto (e legenda): © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > 22 de abril de 2006, "a caminho de Sinchã Jobel"


Fotos (e legenda): © A, Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um ataque a Sare Banda, em 8 de setembro de 1968

por A. Marques Lopes


(i) amigo e camarada, um histórico da nossa Tabanca Grande, com 240 referências no blogue;

(ii) lisboeta, filho de pais alentejanos, que vive em Matosinhos;

(iii) cor art DFA, na reforma, ex-alf mil art, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68)];

(iv) ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar Principal, na Estrela, onde esteve em tratamento durante nove meses, voltando depois ao TO da Guiné para completar a sua comissão de serviço; 

(v) em abril de 2006, (re)visitou Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen; 




Sare Banda estava perto de Sinchã Jobel, e é natural que fosse atacada. O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto, o meu segundo substituto [, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, sendo natural de Moçamedes, Angola]. O outro morto foi o fur mil Raul Canadas Ferreira [, natural da metrópole]. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas. (**)


Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinham luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso. Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG. 

As fotografias de Sare Banda que mando tirei-as em Abril 2006, quando a caminho de Sinchã Jobel, passando por Geba, Sare Ganá e Sinchã Sutu.

8 de setembro de 1968 : desenrolar da ação

(i) Acção inicial do IN

Em 8 de setembro de 1968, às 20h21, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semi-círculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

- Canhão s/recuo- Morteiro 82
- Lança granadas RPG-2
- Lança granadas P-27 "Pancerovka"
- Metralhadoras pesadas
- Metralhadoras ligeiras
- Armas automáticas
- Armas semi-automáticas



O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão S/R e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes, Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. 

Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba. 

No seguimento da acção do IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.


(ii) Reação das NT


a) Das forças do destacamento



Após a surpresa inicial, os elementos que se encontravam fora dos abrigos correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN. 

Refira-se que, logo no início da reacção, as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/r,  calando-o definitivamente, e em determinada altura do ataque repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado. 

Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete (bazuca, 8.9), foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos, além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

O IN sempre perseguido pelo fogo das NT recuou cerca de 200 metros, instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu, donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22h30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque), altura em que desistiu dos seus intentos retirando definitivamente.

b)Das forças de Geba (CART 1690)

Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados. Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo de início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09h02, do dia seguinte,  de 9 de setembro de 1968, e através de 2 praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.


Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda às 017h45, fez um reconhecimento nos arredores seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e se dirigindo para Sinchã Jobel. 

(iii) Resultados obtidos:

Baixas sofridas pelo IN: 8 mortos confirmados. Muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.


Material capturado ao IN:


- 1 Espingarda semi-automática SIMONOV cal. 7,62 mm
- 1 Espingarda automática G-3 / 7,62 mm
- 1 Granadas de canhão s/r
- 2 Granadas de lança-granadas foguete
- 1 Granadas de morteiro 82 mm
- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4
- 8 Carregadores de Met. Lig.
- 2 Fitas de Met. Lig.
- 2 Facas de mato
- 2 Bolsas p/transporte de munições
- 2 Cantis
- Diversas Munições de armas aut.

Além de uma bolsa de medicamentos, com o seguinte material:

- 3 Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (Frascos)
- 1 Éter (frasco)
- 1 Mercúrio cromo (frasco)
- 1 Bálsamo (frascos)
- 10 Injecções (desconhecidas em ampolas)
- 178 Aspirinas comprimidos (carteiras)
- 96 Madexposte em comprimidos
- 6 Chinim Sulfur (comp. emb. de 5)
- 5 Codemel (carteiras de 10 Comprimidos)
- 1 Adesivo (rolo)
- 1 Algodão cardado (maço)
- 1 Garrote
- 20 Ligaduras de gaze de 10 cm x 5cm
- 1 Seringa de plástico c/agulha


A. Marques Lopes
Alf Mil da CART 1690 


[Revisão / fixação de texto: LG](***)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15202: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte V): a partir da Op Invisível, de 18-19/12/1967, passa a ser uma ZLIFA (Zona LIvre de Intervenção da Força Aérea)... O alf mil Fernando da Costa Fernandes, de Santo Tirso, é morto, não sendo possível resgatar o seu corpo, e o soldado Manuel Fragata Francisco, de Alpiarça, é gravemente ferido, aprisionado e levado para Ziguinchor onde é tratado pelo dr. Mário Pádua e mais tarde, em 15/3/1968, entregue à Cruz Vermelha Internacional



(***) Último poste da série > 13 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)