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terça-feira, 30 de abril de 2024

Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > s/ d > Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito.  Adapt. de Foto: © Cherno Baldé (2013).  



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita do gen Spínola (atrás de si, o seu ajudante de campo, que nos parece ser o cap Tomás).

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dr. Cherno Baldé,
em Bissau (2019)

1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé já confessou que estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos,  e que ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)... 

O sonho daqueles miúdos, filhos de príncipes, fulas de Sancorlã, era poderem ir ainda a tempo para a tropa,  receber o "crachá" dos "Comandos" e conquistar a "Honra e Glória" na luta contra os "homens do mato"!... Mas, para ele, Cherno. puto rafeiro,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé",  Spínola, o Desejado.

(...) "Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local." (...) (*)

Já não nos lembrávamos desta história, contada na série "Memórias do Chico, menino e moço"... Mas lá estava, contava em maior detalhe no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**). Todo o poste, que vamos dividir em duas partes, merece ser antologizado, nesta efeméride (o 20º aniversário do nosso blogue), como um dos nossos melhores postes de sempre. (***)


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - PARTE I (**)
 
por Cherno Baldé


O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam (1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida,  em forma de uma reflexão retrospetiva sobre a política “Por uma Guiné Melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuido de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

(i) qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

(ii) alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? 

Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático chefe da guerra colonial ou guerra do ultramar português que, com a condução da política “Por uma Guiné Melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25Abril74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o general Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso à metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. 

Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, mesmo, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLÃ

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens que desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante à eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do Partido-Estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de um certo Portugal e em nome de uma certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorlã omo Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau  (1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: 

"Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ (2) da nossa aldeia contra os homens do mato."

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25 de Abril, na Guiné a expetativa de um hipotético regresso do general, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorlã que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo, sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.


SPÍNOLA CONTRA OS IRÃS DE BANDIM


Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no início dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho general, “amigo” dos guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto governador, parecia estar distante da realidade atual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. 

Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da política por ele conduzida na Guiné, desde que chegara àquela província em 1968 e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente à deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé” (3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. 

E a evidência demonstrara que, a política “Por uma Guiné Melhor”,  sendo uma empreitada que, em muitos aspetos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação prática, tratando-se de um ato que,  mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga,  e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. 

Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num paí
s, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. 

Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o general provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF (África Ocidental Francesa).

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um ato de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso Partido-Estado,  e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num cto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo. (...)
 
(Continua)

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

(Revisão / fixação de texto: LG)

______

Notas do autor:

(1) - Guelá Baldé – Alferes,  comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a capitão de milícias, antes da sua morte).

No cômputo geral, havia no regulado de Sancorlã mais de 5 alferes/tenentes e 1 capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorlã); 

  • Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) 
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) 
  • 2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • Mamadu Baldé (Mama Djamara);
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; 
  • Alanso Candé, 2.ª Companhia de Comandos; 
  • Bodo Djau,  Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. 

Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. 

Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. 

O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”. Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.

Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida à linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

____________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 29 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Vd. poste de 26 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

(***) Nota atualizada do Cherno Baldé (em comentário ao poste P25458):

Caro amigo Luis,

Não sei se se deve empolar muito esta história que, na altura, nos causou um choque tremendo e muita incompreensão, pois durante todo o período anterior ao gen Spínola, nunca tinha acontecido uma cena igual.

O ex-capitão Carvalho ainda é vivo e residente, ao que parece, na zona de Arruda dos Vinhos, segundo a sua ex-esposa que, na altura, me contatou amigavelmente, mas para desmentir que o capitão tivesse levado uma chapada na cara. 

Acontece que não me contaram, eu vi com os meus olhos estando no mesmo sítio que, curiosamente, estaria mais tarde quando houve o morticínio do dia 2 de abril de 1972, provocado pelo soldado ("comando"?) Almeida e onde morreram o capitao Carlos Borges Figueiredo (CCAÇ 2742), o alferes Félix, (que era muito estimado também e que acompanhava com muita frequência as atividades da nossa escola), o furriel Alcino e mais outros soldados. O primeiro sargento (velha raposa) conseguiu fugir a tempo, mas ainda assim levou com um estilhaço no rabo. Foi a companhia do cap Carvalho que, praticamente, construiu o aquartelamento de Fajonquito e foi uma companhia extremamente sacrificada e, nãoo admira que não tenham representantes no Blogue, se calhar, como nos diz o Joaquim Luís Fernandes, devem estar fartos da guerra e da tropa até aos cabelos, para não falar do desgosto que tiveram com este acontecimento.

Se relatei o caso foi porque me marcou para sempre e fez do incompreendido gen Spínola o meu herói predileto, sobretudo com a dececão que depois tivemos no reinado do PAIGC.

A citação que acabas de recuperar ainda é da actualidade e reconfirmo, pois: 

(...) "Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este ´Show-off´' público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar.

"Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do 'gentio' rebelde e num território em guerra." (...)


Antes de terminar queria dizer que, revendo as datas com a ajuda preciosa do trabalho de pesquisa do amigo José Marcelino Martins, graças ao qual descobri o Blogue, cheguei à conclusão que, a quando da nossa mudançaa de Cambaju para Fajonquito, em 1967, a companhia que estava no subsector de Fajonquito era CCAÇ 1685 ("Os Insaciáveis") do cap Raiano (cap de infantaria Alcino de Jesus Raiano), homem alto e possante que,  sentado no seu pequeno jipe, parecia que estava de pá. Os nossos deram-lhe a alcunha de "Lello Dadhe",  o cabeça inclinada.

Quanto à CCAÇ 2435, alguns dias após o acontecido, foi substituida pela CCAÇ 2436 (a 20 de Abril 1970), do cap inf José Rui Borges da Costa que antes estava em Contuboel, até ao fim da comissão (13/08/1970).

30 de abril de 2024 às 15:11



sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20255: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (5): edição, revista e aumentada, Letra C


Foto nº 1



Foto nº 2

Guiné > Região de Baftá > Bafatá > Vista aérea > Foto nº 1 > Em primeiro plano, o rio Geba e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962). Do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu), à direita, e Bambadinca-Xime, à esquerda. 

Do lado direito,  em baixo, pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, [, assalanado a amarelo, na foto nº 2], que representava os interesses da CUF - Companhia União Fabril, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui, pela "princesa do Geba", Bafatá,  passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... com as meninas do Bataclã.



Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Continuação da publicação do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande (*), de A a Z, em construção, com o contributo de todos os amigos e camaradas da Guiné que se sentam aqui à sombra do nosso poilão. 

Entradas da letra C:


Ca bai - Não vou (crioulo)

Ca misti - Não quero (crioulo)

Ca pudi - Não posso (crioulo)

Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão) (crioulo)

Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)

Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)

Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro

Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro



Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau', 'O Velho', 'O Bispo'; origem: de caco, monóculo; mais Baldé, apelido frequente entre os fulas); o historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa, com a devida vénia...) 

Cães Grandes - Oficiais superiores (gíria)

Chabéu – Dendê (fruto); prato típico da Guiné-Bissau, de peixe ou carne, feito com óleo de palma (etimologia: do crioulo "tche bém") 

Cal - Calibre 

Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção); termo criado na Tabanca Grande 

Cambar - Atravessar um rio (crioulo) 

Candongas - Transporte colectivo privado, usado hoje no interior da Guiné Bissau 

Canhão s/r - Canhão Sem Recuo 

Canhota - A espingarda automática G3 

CAOP - Comando de Agrupamento Operacional 

CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1 

Cap - Capitão 


Cap Grad - Capitão graduado

Cap Art - Capitão de Artilharia

Cap Cav - Capitão de Cavalaria

Cap Eng - Capitão de Engenharia

Cap Inf - Capitão de Infantaria

Cap Mil - Capitão Miliciano 


Cap QEO - Capitão do Quadro Especial de Oficiais

Cap QP - Capitão do Quadro Permanente 


Cap SAM - Capitão do Serviço de Administração Militar

Capim - (i) Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; (ii) sinónimo de dinheiro ou arame, bago,cacau,carcanhol, caroço, chapa, cheta,graveto, guita, grana, massa, milho, papel, pasta, pilim, prata (gíria)

Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC (gíria) 


CAR - Condutor auto-rodas

Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero (gíria) 

CART - Companhia de Artilharia 


Casa - Estabelecimento comercial; antes da guerra, havia "casas" por todo o território, pertencentes a metropolitanos, cabo-verdianos e sírio-libaneses; dedicava-se ao comércio por grosso (compra de produtos locais, virados para a exportação, nomeadamente oleaginosas)  e ao comércio a retalho.

Casa Gouveia - A principal empresa colonial da Guiné, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX; republicano, Silva Gouveia será o representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915; em 1927, a Casa Gouveia é adquirida pela CUF.


Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão) 

Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea (calão) 

Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis) (calão)

CCAÇ - Companhia de Caçadores 

CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas 

CCAV - Companhia de Cavalaria 

CCM - Curso de Capitães Milicianos 

CCmds - Companhia de Comandos 


CCE - Companhia de Caçadores Especiais

CCP - Companhia de Caçadores Paraquedistas 

CCS - Companhia de Comando e Serviços 


CEMA - Chefe do Estado Maior da Armada


CEME - Chefe do Estado Maior do Exército 

CEMFA - Chefe do Estado Maior da Força Aérea

CEMGFA - Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas 

Cento e vinte - Morteiro pesado, de 120 mm 

Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (PAIGC)


CF - Companhia de Fuzileiros 

CFA - Franco da "Communauté Francophone Africaine", moeda actual da Guiné-Bissau (1 Euro = 655,597 CFA) 

CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (Marinha) 

Chão - Território étnico (vg, chão fula) 

CHASE - Em formação, atrás de (FAP) 


Checa - Militar novato, termo usado em Moçambique; equivalente a pira, periquito (Guiné), ou maçarico (Angola) 


Cheret - Chefia de Reconhecimento de Transmissões

Checklist - Livro de notas do piloto (FAP)

Chipmunk - Avião de treino, de dois lugares, monomotor, de origem canadiana (FAP)

Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas) (crioulo)

Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga (crioulo)



Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto (1921-2011), a fundador e líder histórica do MNF – Movimento Nacional Feminino 

[Foto à esquerda: Em visita a Nhala, © António Murta, 2015]


CIM - Centro de Instrução Militar

CIM Bolama - Centro de Instrução Militar de Bolama



CIM Contuboel - Centro de Instrução Militar de Contuboel

CIOE - Centro de Instrução de Operações Especiais


Cipaio - Elemento nativo da polícia

Circuncisão - Vd. Fanado. Havia/há a circuncisão masculina e a feminina. Vd. MGF. 

CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria (Tavira)

CM - Cabo de Manobra (Marinha) 

Cmd - Comando 

Cmdt - Comandante 

COE - Curso de Operações Especiais 

COM - Curso de Oficiais Milicianos 

Com-Chefe - Comando-Chefe 

Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo) 

COP - Comando Operacional 

COP7 - Comando Operacional 7 

Cor - Coronel 

Corpinho - Sutiã, soutien (crioulo) 

Corpo di bó - Como estás ? (crioulo)


Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada (gíria) 

Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (PAIGC) (gíria)

CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar 

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa 

CSM - Curso de Sargentos Milicianos 

CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné 

CUF - Companhia União Fabril (representada, na Guiné,  pela Casa Gouveia) 

Cupilão - Pilão, bairro popular de Bissau, atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilom, Cupelão... 


Cussas - Coisas (crioulo)

CVP - Cruz Vermelha Portugal
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terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)

1. Mensagem para o "amigo Vacas" e demais tertulianos... Enviada, em 1 de Outubro de 2008, pelo Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, e esperemos, em breve, novo membro da nossa Tabanca Grande (*):


Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e alguns dias após o Natal de 70 tivemos a visita do heli..

Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer seguranço, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.

Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
- Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.

E virando-se para um dos nossos soldados, o José Jeremias - natural da torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora - disse:
- Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
- Sei sim, meu general, é uma coisa para escrever.

Grande risota geral, até do general.

Manga de mantenhas para todo o pessoal .

2. Comentário de L.G.:

Enquanto o Carlos Vinhal está a tratar da tua entrada para a nossa Tabanca Grande, eu aproveito para pôr em linha esta tua deliciosa história (**)... Vejo que tens sentido de humor e de observação. É um apontamento original sobre o nosso quotidiano, os nossos camaradas e sobre o nosso (meu e teu) Comandante-Chefe (***)... Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo...

Havia, por parte da maior parte da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era adorado: mas respeitavam e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo, o seu carisma, o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, a sua demagogia... O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era secretamente amado por muita gente...

Espero, Rogério, que o teu exemplo seja seguido por outros camaradas. O anedotário da spinolândia é muito maior que os escassos textos que já aqui publicámos sobre o humor de caerna... No meu tempo, toda a gente contava anedotas do Spínola... Passados estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau se nos varreram da memória...

O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo...

_________

Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3255: O Nosso Livro de Visitas (31): Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné (1970/71)


(**) Vd. postes anteriores desta série:

26 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

9 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)

1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

(***) Vd. postes de:

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)

4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2871: Excerto do Diário do ex-Alf Mil A. Nunes Ferreira (CCAÇ 4540, Cadique, 31/1/73 a 20/2/73)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério - que esteve aqui, em Cadique, em pleno coração do Cantanhez, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973.


Fotos :
Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de Albertino Nunes Ferreira, 8 de Abril de 2008:


Assunto - CCaç 4540: passagem por Cadique 72/73


Tenho um pequeno diário da minha passagem por Cadique. Pergunto se vêem algum interesse na divulgação do mesmo no vosso blogue

Albertino Nunes Ferreira
Ex Alf Mil Inf da CCAÇ 4540



2. Excertos do diário de Albertino Nunes Ferreira, relativa à passagem do Cadique, Cantanhez, da sua unidade, a CCAÇ 4540 (1). Textos enviados em 9 de Abril e 19 de Maio de 2008:

Após dois meses e meio em Bigene, desembarcou a CCaç 4540 no dia 12/12/72 de bordo da LDG Bombarda em Cadique no âmbito da operação Grande Empresa com o auxílio dos Fiat da FAP e de um bi-grupo da CCP 121. Eis algumas notas respigadas de um pequeno diário :

31 de Janeiro de 1973

Só hoje me decidi a escrever um Diário íntimo da minha presença aqui neste lugar de Cadique, no Cantanhez, considerada área libertada pelo PAIGC. Dói-me a cabeça abominavelmente. Foi a primeira vez que comi razoavelmente bem depois do enjoo das rações de combate intragáveis de que só aproveito os sumos, dando o resto aos soldados do meu grupo de combate, que esses comem tudo o que lhes dão…

Neste momento vivo numa espécie de cabana com um abrigo-vala anexo, abaixo do nível do solo, o tecto feito de folhas de palmeiras secas e capim e deito-me ao nível do chão porque o colchão de borracha foi comido pelas formigas, tendo ainda por companhia uma colónia de morcegos e alguns ratos…

O rio Cumbijã faz uma grande curva à nossa frente e continua pela direita até Caboxanque. Aqui passo os dias quando não saímos para o mato em patrulha e vejo o pôr-do-sol magnífico sobre o rio voltado para Oeste. Nas primeiras andanças pela povoação e arredores notei que ao lado de todas as moranças havia grandes abrigos protegidos por cibes, que algumas bombas lançadas pelos Fiat não tinham rebentado e que as lavras estavam todas queimadas pelo napalm. Por outro lado a população era constituída só por velhos e crianças, estando os jovens logicamente na guerrilha…


2 de Fevereiro de 1973

Ontem estivemos na mata durante todo o dia. Andámos até ao esgotamento. Doem-me os músculos horrivelmente. Estou com fome, porque não como há 24 horas e dói-me terrivelmente a cabeça. Hoje é dia de descanso para o pessoal do 2º grupo de combate. Nada de especial há para assinalar. A rotina e o tédio aproximam-se subitamente com a tarde. Já perdi a noção do tempo, dos dias que se sucedem sem qualquer significado. Só se sabe que é domingo porque se ouvem os relatos de futebol. Anoiteceu rapidamente.


3 de Fevereiro de 1973


Hoje levantei-me excepcionalmente cedo e sinto uma sensação de bem-estar fantástica porque é dia de não sair para o mato. Contudo, vai custar a passar o resto do dia com este calor sufocante que aperta logo pela manhã e que nem a sesta nos deixa dormir…

Até ao fim do dia não deverá acontecer nada de anormal. Logo à noite vai haver cinema para a rapaziada e só espero que não haja ataque ao aquartelamento porque seria uma carnificina. Meu pai começou a mandar-me o Expresso e eu tornei-me assinante do Nouvel Observateur que recebo aqui regularmente. A sua leitura sempre ajuda a “matar o tempo” nas horas vagas…


4 de Fevereiro de 1973


Hoje fui dar uma volta pela bolanha até à beira do rio Cumbijã. Quando não tenho nada para ler fico psicologicamente deprimido. Passo as noites sem dormir. Só me apetecia ingerir um trago de uma droga qualquer… cuspir toda a noite o fogo das entranhas. Afogo-me em whisky para conseguir dormir alguma coisa e vou aos tropeções para a cabana, meio embriagado pelo álcool e tendo ainda nos ouvidos a canção The Savoy Trufle do George Harrison, tentando esquecer este quotidiano sem sentido que nos está reservado possivelmente até ao fim da comissão.


20 de Fevereiro de 1973

Só hoje me decidi a escrever um pouco mais . Não tenho tido realmente disposição para continuar este pequeno diário. Sinto-me horrorosamente cansado e doem-me o estômago e a cabeça.

Sinto o corpo todo partido por não conseguir dormir nas noites longas passadas na mata, emboscado, ao relento, por tecto as estrelas, sobre o chão duro, difícil e vermelho, alimentado á base dos líquidos da mísera ração de combate que nos dão, porque o resto é intragável e deito tudo fora ou dou aos soldados…
Um combatente não devia tratar-se assim, bolas… Apesar de tudo não recuamos nunca quando temos de fazer o que devemos para sobreviver. Ontem mesmo, quando fazíamos 5 meses de Guiné, durante um patrulhamento conseguimos capturar 24 granadas de canhão sem recuo e 1 de RPG 2. Foi um grande ronco para o 2º Grupo de Combate da CCaç 4540 e até os páras da [CCP] 123 que ainda estão connosco ficaram com uma pontinha de inveja da tropa macaca (2)…

Amanhã vamos sair novamente em missão operacional e há notícias de que o Caco Baldé vem aqui mais uma vez a Cadique, desta feita acompanhado de uma equipe da TV alemã para filmar alguns aspectos do destacamento e o andamento dos trabalhos de construção da estrada Cadique – Jemberém.

Não consigo escrever mais. Acabou.

Alf Mil Inf
A. Nunes Ferreira
CCAÇ 4540

3. Comentário de L.G.:

Meu caro Albertino:

Posso concluir que estas são as únicas notas que escreveste no teu diário ? São, em todo o caso, valiosas, e vê-se que foram escritas com sangue, suor e lágrimas... Tomei a liberdade de sublinhar, a bold e a vermelho, algumas das tuas frases...

É importante que certas coisas sejam escritas na primeira pessoa do singular... Os nossos filhos e netos não imaginam as duríssimas condições em que vivíamos e combatíamos na Guiné. Não se tirem conclusões, apressadas e ilegítimas, de pequenos documentos íntimos como este... Por exemplo, que a guerra estava ganha ou que estava perdida... Esse debate, pessoalmente, não me interessa. Admito que possa interessar a outros camaradas... Falta-nos a distância histórica e a visão sinóptica da época, e sobretudo a investigação historiográfica de primeira água, para tirar conclusões, com segurança, com rigor, sobre a situação político-militar (E este binómio é inseparável: não podemos analisar a situação militar, isolada do contexto político e geopolítico)...

De qualquer modo, a missão do nosso blogue - que não é um portal noticioso, nem é o sitío de nenhuma associação, nem uma tribuna, nem uma bandeira de causas perdidas ou por ganhar... - é sobretudo a de dar voz a pessoas como tu, que nem sequer pediste para integrar a nossa Tertúlia. Mas fica aqui, desde já, o convite: seria honroso para todos nós que o teu nome figurasse na lista dos amigos e camaradas da Guiné... Um abraço do tamanho do Cumbijã. Luís

________

Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 21 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2870: O meu álbum de recordações de Cadique e da CCAÇ 4540 (A. M. Conceição Santos)

(2) Vd. postes de:

27 de Junho de 2007 Guiné 63/74 - P1891: O Cantanhez (Cadique, Caboxanque, Cafine...) e os paraquedistas do BCP 12 (1972/74) (Victor Tavares, CCP 121)

9 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2038: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (I parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2051: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (II parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

segunda-feira, 13 de março de 2006

Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): Sexa o Caco (Baldé) em Missirá...

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970> O Humberto Reis, em reforço, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12, do destacamento de Missirá, posa para a fotografia com um troféu de caça a seus pés: na ocasião um antílope, apanhado pelos homens do Pel Caç Nat 54 ou algum caçador local. O destacamento de Missirá ficava a norte do Sector L1, já em terra de ninguém. A sul ficava o destacamento de mílicia e a tabanca em autodefesa de Finete, na margem direita do Rio Geba, frente a Bambadinca (LG).

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Esquartejamento de uma peça de caça grossa (um antílope, segundo me parece) caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos). 

Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Correia. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. Como se pode avaliar pelas duas fotos, Missirá era uma terra aonde dificilmente chegava o Regulamento de Disciplina Militar, o famoso RDM, ou seja, o poder de Bissau, o que aliás é testemunhado por mais esta bem-humorada estória cabraliana, que a seguir se publica... (LG).

Fotos do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto; © Humberto Reis (2006): Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Quando SEXA o CACO, em Missirá, ia perdendo o dito (1)

por Jorge Cabral

(Jorge Canral: ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário.

A mensagem que o Jorge me mandou: "Luis Amigo e Companheiro, aí vai o relato da visita do Caco. Infelizmente não foi filmada... Um grande abraço, Jorge".... O episódio passa-se em Dezembro de 1970...)


Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
— Alfero, Alfero, é Spínola! 
— gritam os meus soldados (2).

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual.

Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
— Debaixo desta bandeira…  e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia.

Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
 ... A Pátria…   e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
—  Sabes o que é a Pátria?
 
— Não  responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

 Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
 Ainda assim…  — começoi o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
— E o Heliporto?  indagou um outro Major.  — Parece  muito atrasado.
 —É  que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
 
— Operários especializados? Então e os seus soldados?!
 — Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)
Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
 
— Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (3). Contou-me o Branquinho (4) que quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
 
— Ainda bem!

© Jorge Cabral (2006)
_____________

Notas de L.G.

(1) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo, Caco,  queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola... Vd postes de:

29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole

24 de SDetembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas

(2) Este tipo de visita-surpresa, na quadra festiva (Natal e Ano Novo), por parte do Com-Chefe, António de Spínola, era frequente: vd. post de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

Trata-se de um excerto do meu diário (Diário de um tuga):

(...) "Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi"(...).

(3) Capitão da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediado em Fá Mandinga: vd post de 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

(4) Furriel Miliciano do Pel Caç Nat 63: vd post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas)

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P204: Recordações do Caco Baldé no Xitole (David Guimarães)

© Manuel Ferreira (2005)

O Soldado condutor auto Ferreira, de bigode, "com amigos nos fados".

Foto provavelmente de 1973, e tirada em Mansambo (CART 3494, que se mudou do Xime para Mansambo em Abril de 1973; pertencia ao BART 3873, 1972/74, que veio render o BART 2917, 1970/72, a que pertencia a CART 2716, aqui referida neste post).

O título da letra de fado podia ser "Fado do Caco Baldé". Repare-se no modo de vestir dos nossos soldados... O isolamento, o clima, a guerra, a fadiga geral e o stresse psicológico levaram a uma acentuada quebra da disciplina e do aprumo dos militares...


Texto do David Guimarães:

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o homem grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola era conhecido por Com-Chefe, Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Foto > Fonte: Extracto da capa do livro de Pintasilgo, J. M. - Manga de Ronco no Chão. Lisboa: s/e. 1972.


Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

- Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à excepção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem, e tal e tal... 

E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

- Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!
- Porreiro, dizia um...
- Que se foda, dizia outro...
- Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...
- Que se lixe, já foi...
- Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o Tenente Coronel de Artilharia M. F. por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, Tenente Coronel de Infantaria, etc. etc. etc... Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

- Ai olha, ele varreu com o Nord Atlas - assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...

© David J. Guimarães (2005)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, no aquartelamento e povoação de Xitole.

Rei morto, rei posto e aí aparece o novo comandante a conhecer a sua tropa...
- Ena, que este tem pinta de guerreiro, estamos fritos...
- Bem bem, não estamos aqui propriamente em férias numa colónia balnear...


As grandes operações começaram a desenvolver-se, Polidoro Monteiro queria que fossemos a Satecuta, em 'zona libertada' pelo PAIGC (diziam eles), já perto da mítica mata do Fiofioli...

Devido à morte do Furriel Quaresma e à evacuação de Leones, dois Furriéis apareceram para os substituírem - Cardoso e Fevereiro... O primeiro já andava por ali desde 1966 (!), com porradas em cima; e o Fevereiro estava a a dormir na sua bela caminha, quando apanhou uma rendição individual e foi ter connosco....

As operações grandes que tivemos começaram nesta altura. Polidoro Monteiro parecia entender daquilo... Pois que seja.... Vejam os próximos episódios...

Abraço,
David
(ex-Fur Mil Guimarães,
CART 2716,
Xitole, 1970/72)