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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20255: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (5): edição, revista e aumentada, Letra C


Foto nº 1



Foto nº 2

Guiné > Região de Baftá > Bafatá > Vista aérea > Foto nº 1 > Em primeiro plano, o rio Geba e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962). Do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu), à direita, e Bambadinca-Xime, à esquerda. 

Do lado direito,  em baixo, pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, [, assalanado a amarelo, na foto nº 2], que representava os interesses da CUF - Companhia União Fabril, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui, pela "princesa do Geba", Bafatá,  passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... com as meninas do Bataclã.



Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Continuação da publicação do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande (*), de A a Z, em construção, com o contributo de todos os amigos e camaradas da Guiné que se sentam aqui à sombra do nosso poilão. 

Entradas da letra C:


Ca bai - Não vou (crioulo)

Ca misti - Não quero (crioulo)

Ca pudi - Não posso (crioulo)

Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão) (crioulo)

Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)

Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)

Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro

Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro



Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau', 'O Velho', 'O Bispo'; origem: de caco, monóculo; mais Baldé, apelido frequente entre os fulas); o historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa, com a devida vénia...) 

Cães Grandes - Oficiais superiores (gíria)

Chabéu – Dendê (fruto); prato típico da Guiné-Bissau, de peixe ou carne, feito com óleo de palma (etimologia: do crioulo "tche bém") 

Cal - Calibre 

Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção); termo criado na Tabanca Grande 

Cambar - Atravessar um rio (crioulo) 

Candongas - Transporte colectivo privado, usado hoje no interior da Guiné Bissau 

Canhão s/r - Canhão Sem Recuo 

Canhota - A espingarda automática G3 

CAOP - Comando de Agrupamento Operacional 

CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1 

Cap - Capitão 


Cap Grad - Capitão graduado

Cap Art - Capitão de Artilharia

Cap Cav - Capitão de Cavalaria

Cap Eng - Capitão de Engenharia

Cap Inf - Capitão de Infantaria

Cap Mil - Capitão Miliciano 


Cap QEO - Capitão do Quadro Especial de Oficiais

Cap QP - Capitão do Quadro Permanente 


Cap SAM - Capitão do Serviço de Administração Militar

Capim - (i) Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; (ii) sinónimo de dinheiro ou arame, bago,cacau,carcanhol, caroço, chapa, cheta,graveto, guita, grana, massa, milho, papel, pasta, pilim, prata (gíria)

Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC (gíria) 


CAR - Condutor auto-rodas

Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero (gíria) 

CART - Companhia de Artilharia 


Casa - Estabelecimento comercial; antes da guerra, havia "casas" por todo o território, pertencentes a metropolitanos, cabo-verdianos e sírio-libaneses; dedicava-se ao comércio por grosso (compra de produtos locais, virados para a exportação, nomeadamente oleaginosas)  e ao comércio a retalho.

Casa Gouveia - A principal empresa colonial da Guiné, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX; republicano, Silva Gouveia será o representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915; em 1927, a Casa Gouveia é adquirida pela CUF.


Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão) 

Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea (calão) 

Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis) (calão)

CCAÇ - Companhia de Caçadores 

CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas 

CCAV - Companhia de Cavalaria 

CCM - Curso de Capitães Milicianos 

CCmds - Companhia de Comandos 


CCE - Companhia de Caçadores Especiais

CCP - Companhia de Caçadores Paraquedistas 

CCS - Companhia de Comando e Serviços 


CEMA - Chefe do Estado Maior da Armada


CEME - Chefe do Estado Maior do Exército 

CEMFA - Chefe do Estado Maior da Força Aérea

CEMGFA - Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas 

Cento e vinte - Morteiro pesado, de 120 mm 

Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (PAIGC)


CF - Companhia de Fuzileiros 

CFA - Franco da "Communauté Francophone Africaine", moeda actual da Guiné-Bissau (1 Euro = 655,597 CFA) 

CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (Marinha) 

Chão - Território étnico (vg, chão fula) 

CHASE - Em formação, atrás de (FAP) 


Checa - Militar novato, termo usado em Moçambique; equivalente a pira, periquito (Guiné), ou maçarico (Angola) 


Cheret - Chefia de Reconhecimento de Transmissões

Checklist - Livro de notas do piloto (FAP)

Chipmunk - Avião de treino, de dois lugares, monomotor, de origem canadiana (FAP)

Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas) (crioulo)

Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga (crioulo)



Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto (1921-2011), a fundador e líder histórica do MNF – Movimento Nacional Feminino 

[Foto à esquerda: Em visita a Nhala, © António Murta, 2015]


CIM - Centro de Instrução Militar

CIM Bolama - Centro de Instrução Militar de Bolama



CIM Contuboel - Centro de Instrução Militar de Contuboel

CIOE - Centro de Instrução de Operações Especiais


Cipaio - Elemento nativo da polícia

Circuncisão - Vd. Fanado. Havia/há a circuncisão masculina e a feminina. Vd. MGF. 

CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria (Tavira)

CM - Cabo de Manobra (Marinha) 

Cmd - Comando 

Cmdt - Comandante 

COE - Curso de Operações Especiais 

COM - Curso de Oficiais Milicianos 

Com-Chefe - Comando-Chefe 

Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo) 

COP - Comando Operacional 

COP7 - Comando Operacional 7 

Cor - Coronel 

Corpinho - Sutiã, soutien (crioulo) 

Corpo di bó - Como estás ? (crioulo)


Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada (gíria) 

Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (PAIGC) (gíria)

CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar 

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa 

CSM - Curso de Sargentos Milicianos 

CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné 

CUF - Companhia União Fabril (representada, na Guiné,  pela Casa Gouveia) 

Cupilão - Pilão, bairro popular de Bissau, atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilom, Cupelão... 


Cussas - Coisas (crioulo)

CVP - Cruz Vermelha Portugal
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terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)

1. Mensagem para o "amigo Vacas" e demais tertulianos... Enviada, em 1 de Outubro de 2008, pelo Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, e esperemos, em breve, novo membro da nossa Tabanca Grande (*):


Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e alguns dias após o Natal de 70 tivemos a visita do heli..

Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer seguranço, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.

Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
- Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.

E virando-se para um dos nossos soldados, o José Jeremias - natural da torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora - disse:
- Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
- Sei sim, meu general, é uma coisa para escrever.

Grande risota geral, até do general.

Manga de mantenhas para todo o pessoal .

2. Comentário de L.G.:

Enquanto o Carlos Vinhal está a tratar da tua entrada para a nossa Tabanca Grande, eu aproveito para pôr em linha esta tua deliciosa história (**)... Vejo que tens sentido de humor e de observação. É um apontamento original sobre o nosso quotidiano, os nossos camaradas e sobre o nosso (meu e teu) Comandante-Chefe (***)... Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo...

Havia, por parte da maior parte da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era adorado: mas respeitavam e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo, o seu carisma, o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, a sua demagogia... O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era secretamente amado por muita gente...

Espero, Rogério, que o teu exemplo seja seguido por outros camaradas. O anedotário da spinolândia é muito maior que os escassos textos que já aqui publicámos sobre o humor de caerna... No meu tempo, toda a gente contava anedotas do Spínola... Passados estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau se nos varreram da memória...

O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo...

_________

Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3255: O Nosso Livro de Visitas (31): Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 2658/BCAÇ 2905, Guiné (1970/71)


(**) Vd. postes anteriores desta série:

26 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

9 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)

1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

(***) Vd. postes de:

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)

4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2871: Excerto do Diário do ex-Alf Mil A. Nunes Ferreira (CCAÇ 4540, Cadique, 31/1/73 a 20/2/73)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério - que esteve aqui, em Cadique, em pleno coração do Cantanhez, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973.


Fotos :
Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de Albertino Nunes Ferreira, 8 de Abril de 2008:


Assunto - CCaç 4540: passagem por Cadique 72/73


Tenho um pequeno diário da minha passagem por Cadique. Pergunto se vêem algum interesse na divulgação do mesmo no vosso blogue

Albertino Nunes Ferreira
Ex Alf Mil Inf da CCAÇ 4540



2. Excertos do diário de Albertino Nunes Ferreira, relativa à passagem do Cadique, Cantanhez, da sua unidade, a CCAÇ 4540 (1). Textos enviados em 9 de Abril e 19 de Maio de 2008:

Após dois meses e meio em Bigene, desembarcou a CCaç 4540 no dia 12/12/72 de bordo da LDG Bombarda em Cadique no âmbito da operação Grande Empresa com o auxílio dos Fiat da FAP e de um bi-grupo da CCP 121. Eis algumas notas respigadas de um pequeno diário :

31 de Janeiro de 1973

Só hoje me decidi a escrever um Diário íntimo da minha presença aqui neste lugar de Cadique, no Cantanhez, considerada área libertada pelo PAIGC. Dói-me a cabeça abominavelmente. Foi a primeira vez que comi razoavelmente bem depois do enjoo das rações de combate intragáveis de que só aproveito os sumos, dando o resto aos soldados do meu grupo de combate, que esses comem tudo o que lhes dão…

Neste momento vivo numa espécie de cabana com um abrigo-vala anexo, abaixo do nível do solo, o tecto feito de folhas de palmeiras secas e capim e deito-me ao nível do chão porque o colchão de borracha foi comido pelas formigas, tendo ainda por companhia uma colónia de morcegos e alguns ratos…

O rio Cumbijã faz uma grande curva à nossa frente e continua pela direita até Caboxanque. Aqui passo os dias quando não saímos para o mato em patrulha e vejo o pôr-do-sol magnífico sobre o rio voltado para Oeste. Nas primeiras andanças pela povoação e arredores notei que ao lado de todas as moranças havia grandes abrigos protegidos por cibes, que algumas bombas lançadas pelos Fiat não tinham rebentado e que as lavras estavam todas queimadas pelo napalm. Por outro lado a população era constituída só por velhos e crianças, estando os jovens logicamente na guerrilha…


2 de Fevereiro de 1973

Ontem estivemos na mata durante todo o dia. Andámos até ao esgotamento. Doem-me os músculos horrivelmente. Estou com fome, porque não como há 24 horas e dói-me terrivelmente a cabeça. Hoje é dia de descanso para o pessoal do 2º grupo de combate. Nada de especial há para assinalar. A rotina e o tédio aproximam-se subitamente com a tarde. Já perdi a noção do tempo, dos dias que se sucedem sem qualquer significado. Só se sabe que é domingo porque se ouvem os relatos de futebol. Anoiteceu rapidamente.


3 de Fevereiro de 1973


Hoje levantei-me excepcionalmente cedo e sinto uma sensação de bem-estar fantástica porque é dia de não sair para o mato. Contudo, vai custar a passar o resto do dia com este calor sufocante que aperta logo pela manhã e que nem a sesta nos deixa dormir…

Até ao fim do dia não deverá acontecer nada de anormal. Logo à noite vai haver cinema para a rapaziada e só espero que não haja ataque ao aquartelamento porque seria uma carnificina. Meu pai começou a mandar-me o Expresso e eu tornei-me assinante do Nouvel Observateur que recebo aqui regularmente. A sua leitura sempre ajuda a “matar o tempo” nas horas vagas…


4 de Fevereiro de 1973


Hoje fui dar uma volta pela bolanha até à beira do rio Cumbijã. Quando não tenho nada para ler fico psicologicamente deprimido. Passo as noites sem dormir. Só me apetecia ingerir um trago de uma droga qualquer… cuspir toda a noite o fogo das entranhas. Afogo-me em whisky para conseguir dormir alguma coisa e vou aos tropeções para a cabana, meio embriagado pelo álcool e tendo ainda nos ouvidos a canção The Savoy Trufle do George Harrison, tentando esquecer este quotidiano sem sentido que nos está reservado possivelmente até ao fim da comissão.


20 de Fevereiro de 1973

Só hoje me decidi a escrever um pouco mais . Não tenho tido realmente disposição para continuar este pequeno diário. Sinto-me horrorosamente cansado e doem-me o estômago e a cabeça.

Sinto o corpo todo partido por não conseguir dormir nas noites longas passadas na mata, emboscado, ao relento, por tecto as estrelas, sobre o chão duro, difícil e vermelho, alimentado á base dos líquidos da mísera ração de combate que nos dão, porque o resto é intragável e deito tudo fora ou dou aos soldados…
Um combatente não devia tratar-se assim, bolas… Apesar de tudo não recuamos nunca quando temos de fazer o que devemos para sobreviver. Ontem mesmo, quando fazíamos 5 meses de Guiné, durante um patrulhamento conseguimos capturar 24 granadas de canhão sem recuo e 1 de RPG 2. Foi um grande ronco para o 2º Grupo de Combate da CCaç 4540 e até os páras da [CCP] 123 que ainda estão connosco ficaram com uma pontinha de inveja da tropa macaca (2)…

Amanhã vamos sair novamente em missão operacional e há notícias de que o Caco Baldé vem aqui mais uma vez a Cadique, desta feita acompanhado de uma equipe da TV alemã para filmar alguns aspectos do destacamento e o andamento dos trabalhos de construção da estrada Cadique – Jemberém.

Não consigo escrever mais. Acabou.

Alf Mil Inf
A. Nunes Ferreira
CCAÇ 4540

3. Comentário de L.G.:

Meu caro Albertino:

Posso concluir que estas são as únicas notas que escreveste no teu diário ? São, em todo o caso, valiosas, e vê-se que foram escritas com sangue, suor e lágrimas... Tomei a liberdade de sublinhar, a bold e a vermelho, algumas das tuas frases...

É importante que certas coisas sejam escritas na primeira pessoa do singular... Os nossos filhos e netos não imaginam as duríssimas condições em que vivíamos e combatíamos na Guiné. Não se tirem conclusões, apressadas e ilegítimas, de pequenos documentos íntimos como este... Por exemplo, que a guerra estava ganha ou que estava perdida... Esse debate, pessoalmente, não me interessa. Admito que possa interessar a outros camaradas... Falta-nos a distância histórica e a visão sinóptica da época, e sobretudo a investigação historiográfica de primeira água, para tirar conclusões, com segurança, com rigor, sobre a situação político-militar (E este binómio é inseparável: não podemos analisar a situação militar, isolada do contexto político e geopolítico)...

De qualquer modo, a missão do nosso blogue - que não é um portal noticioso, nem é o sitío de nenhuma associação, nem uma tribuna, nem uma bandeira de causas perdidas ou por ganhar... - é sobretudo a de dar voz a pessoas como tu, que nem sequer pediste para integrar a nossa Tertúlia. Mas fica aqui, desde já, o convite: seria honroso para todos nós que o teu nome figurasse na lista dos amigos e camaradas da Guiné... Um abraço do tamanho do Cumbijã. Luís

________

Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 21 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2870: O meu álbum de recordações de Cadique e da CCAÇ 4540 (A. M. Conceição Santos)

(2) Vd. postes de:

27 de Junho de 2007 Guiné 63/74 - P1891: O Cantanhez (Cadique, Caboxanque, Cafine...) e os paraquedistas do BCP 12 (1972/74) (Victor Tavares, CCP 121)

9 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2038: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (I parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2051: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (II parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

segunda-feira, 13 de março de 2006

Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): Sexa o Caco (Baldé) em Missirá...

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970> O Humberto Reis, em reforço, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12, do destacamento de Missirá, posa para a fotografia com um troféu de caça a seus pés: na ocasião um antílope, apanhado pelos homens do Pel Caç Nat 54 ou algum caçador local. O destacamento de Missirá ficava a norte do Sector L1, já em terra de ninguém. A sul ficava o destacamento de mílicia e a tabanca em autodefesa de Finete, na margem direita do Rio Geba, frente a Bambadinca (LG).

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Esquartejamento de uma peça de caça grossa (um antílope, segundo me parece) caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos). 

Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Correia. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. Como se pode avaliar pelas duas fotos, Missirá era uma terra aonde dificilmente chegava o Regulamento de Disciplina Militar, o famoso RDM, ou seja, o poder de Bissau, o que aliás é testemunhado por mais esta bem-humorada estória cabraliana, que a seguir se publica... (LG).

Fotos do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto; © Humberto Reis (2006): Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Quando SEXA o CACO, em Missirá, ia perdendo o dito (1)

por Jorge Cabral

(Jorge Canral: ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário.

A mensagem que o Jorge me mandou: "Luis Amigo e Companheiro, aí vai o relato da visita do Caco. Infelizmente não foi filmada... Um grande abraço, Jorge".... O episódio passa-se em Dezembro de 1970...)


Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
— Alfero, Alfero, é Spínola! 
— gritam os meus soldados (2).

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual.

Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
— Debaixo desta bandeira…  e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia.

Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
 ... A Pátria…   e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
—  Sabes o que é a Pátria?
 
— Não  responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

 Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
 Ainda assim…  — começoi o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
— E o Heliporto?  indagou um outro Major.  — Parece  muito atrasado.
 —É  que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
 
— Operários especializados? Então e os seus soldados?!
 — Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)
Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
 
— Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (3). Contou-me o Branquinho (4) que quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
 
— Ainda bem!

© Jorge Cabral (2006)
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Notas de L.G.

(1) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo, Caco,  queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola... Vd postes de:

29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole

24 de SDetembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas

(2) Este tipo de visita-surpresa, na quadra festiva (Natal e Ano Novo), por parte do Com-Chefe, António de Spínola, era frequente: vd. post de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

Trata-se de um excerto do meu diário (Diário de um tuga):

(...) "Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi"(...).

(3) Capitão da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediado em Fá Mandinga: vd post de 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

(4) Furriel Miliciano do Pel Caç Nat 63: vd post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas)

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P204: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)

© Manuel Ferreira (2005)

O Soldado condutor auto Ferreira, de bigode, "com amigos nos fados".

Foto provavelmente de 1973, e tirada em Mansambo (CART 3494, que se mudou do Xime para Mansambo em Abril de 1973; pertencia ao BART 3873, 1972/74, que veio render o BART 2917, 1970/72, a que pertencia a CART 2716, aqui referida neste post).

O título da letra de fado podia ser "Fado do Caco Baldé". Repare-se no modo de vestir dos nossos soldados... O isolamento, o clima, a guerra, a fadiga geral e o stresse psicológico levaram a uma acentuada quebra da disciplina e do aprumo dos militares...


Texto do David Guimarães:

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o homem grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola era conhecido por Com-Chefe, Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Foto > Fonte: Extracto da capa do livro de Pintasilgo, J. M. - Manga de Ronco no Chão. Lisboa: s/e. 1972.


Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

- Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à excepção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem, e tal e tal... - E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

- Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!
- Porreiro, dizia um...
- Que se foda, dizia outro...
- Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...
- Que se lixe, já foi...
- Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o Tenente Coronel de Artilharia M. F. por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, Tenente Coronel de Infantaria, etc. etc. etc... Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

- Ai olha, ele varreu com o Nord Atlas - assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...

© David J. Guimarães (2005)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, no aquartelamento e povoação de Xitole.

Rei morto, rei posto e aí aparece o novo comandante a conhecer a sua tropa...
- Ena, que este tem pinta de guerreiro, estamos fritos...
- Bem bem, não estamos aqui propriamente em férias numa colónia balnear...


As grandes operações começaram a desenvolver-se, Polidoro Monteiro queria que fossemos a Satecuta, em 'zona libertada' pelo PAIGC (diziam eles), já perto da mítica mata do Fiofioli...

Devido à morte do Furriel Quaresma e à evacuação de Leones, dois Furriéis apareceram para os substituírem - Cardoso e Fevereiro... O primeiro já andava por ali desde 1966 (!), com porradas em cima; e o Fevereiro estava a a dormir na sua bela caminha, quando apanhou uma rendição individual e foi ter connosco....

As operações grandes que tivemos começaram nesta altura. Polidoro Monteiro parecia entender daquilo... Pois que seja.... Vejam os próximos episódios...

Abraço,
David
(ex-Fur Mil Guimarães,
CART 2716,
Xitole, 1970/72)