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sábado, 3 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25804: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte II: c. 1500 mobilizados, 41 mortos


SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.


1. Na "Intodução", Artur Ferreira Coimbra (n. 1956), escreveu:

"A Guerra Colonial foi um período fortemente traumatizante para toda uma geração de portugueses, que viveram, recriaram e pensaram o último meio século da vida colectiva deste país.

"Não esqueçamos que mais de um milhão de jovens com idade em redor dos 20 anos, impreparados, mal armados, deficientemente treinados, deslocados abruptamente das suas aldeias, vilas e cidades, passaram, em comissões com uma média de duração de 24 meses, pelas colónias de Angola, Guiné e Moçambique, sobretudo,  onde a espada da guerra foi mais acesa e o troar das metralhadoras mais acentuado. Com aquelas condições, o mínimo que se pode afirmar é que os nossos soldados deslocados para África foram autênticos heróis.

"Daquele número global, mais de 10 mil jovens tombaram, impunemente, na frente de combate ou em acidentes diversos, cerca de 120.000 foram feridos, mais de 20 mil ficaram estropiados ou deficientes para a vida e estima-se que cerca de 140.000 ficaram a sofrer de 'Stress Pós Traumático de Guerra', cujas consequências funestas nunca mais os abandonaram. (...)

"Do concelho de Fafe (...), foram coagidos a participar nos três teatros operacionais mais de 1500 jovens (...)"  (pp. 9/10)




Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.



2. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, na parte sobretudo que diz respeito a: ((i) introdução e contextualização (pp. 25-39); (ii)  mortos do concelho de Fafe, e nomeadamente no TO da Guiné, incluindo alguns testemunhos recolhidos pelo autor  (pp. 39-84).


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte II (pp. 39-43)

por  Jaime Silva


(...) 6. A participação e enquadramento dos militares de Fafe durante a Guerra – Questões concretas a levantar

É já neste contexto (*) que os jovens de Fafe, como todos os jovens do seu país, foram também obrigados a contribuir para o esforço da guerra. Como a partir de 1961, início da guerra em Angola, nem todos foram mobilizados para África e nem todos tiveram uma especialidade de combate, será forçoso, por isso, colocar e tentar esclarecer um conjunto de questões, se queremos conhecer e perceber melhor qual o tipo de participação, enquadramento e grau de dificuldade na atuação de cada fafense durante os dois anos ou mais de comissão num dos três teatros de operações em África.

As questões que me parecem pertinentes levantar, pelas razões aduzidas, têm como referência a minha experiência pessoal no terreno de operações de um dos teatros de guerra, Angola (Norte e Leste), durante uma comissão que durou cerca de trinta meses, sempre operacional e durante a qual, em quase todas as operações de combate em que participei e comandei, houve tiros, confronto, guerrilheiros mortos ou feridos ou armas capturadas. 

Em consequência dos confrontos, um soldado do meu Pelotão foi morto na sequência de um assalto a um acampamento do MPLA nos Montes Mil e Vinte, outro ficou sem uma perna, devido ao rebentamento de uma mina (eu e mais dois soldados passámos pelo mesmo sítio e não pisámos a mina!) e um sargento ficou ferido na sequência do rebentamento de uma armadilha, todos no Norte de Angola.

Será com esta preocupação que tentarei, por isso, enumerar e encontrar a resposta a um conjunto de questões que me parecem mais pertinentes para compreender o envolvimento dos militares de Fafe, no contexto da sua atuação no âmbito das Forças Armadas, durante a sua Comissão de Serviço no Ultramar. Concretamente:

1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (às sortes) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?

2. Quantos ficaram “aptos para todo o serviço militar” ou “livres de todo o serviço militar”, na sequência da “Inspeção Sanitária”, por doença crónica ou “grande cunha”?

3. Quantos cumpriram o serviço militar na Metrópole ou nas Ilhas?

4. Quantos decidiram “dar o salto” para o estrangeiro, para fugirem à Guerra, antes de irem às inspeções, após serem “apurados para todo o serviço militar”, ou depois de saberem que tinham sido mobilizados para o Ultramar?

5. Quantos fafenses foram mobilizados e cumpriram uma Comissão de Serviço militar em África?

Destes, dos que foram mobilizados para África, qual o seu envolvimento pessoal na orgânica e dinâmica das ações levadas a cabo pelas Unidades Militares onde estavam destacados, concretamente:

I. Quantos prestaram serviço em cada um dos três ramos das Forças Armadas: Exército, Marinha ou Força Aérea?

II. Quantos fizeram parte do Quadro Permanente (oriundos da Academia Militar) ou, sendo milicianos, optaram por fazer carreira nas fileiras das Forças Armadas?


III. Quantos pertenceram às tropas especiais (paraquedistas, fuzileiros, comandos ou rangers) e, destes, quantos tomaram a iniciativa de se oferecer para estas com o objetivo de não serem mobilizados para a Guiné ou outra razão?

IV. Quantos se casaram antes de “assentar praça” na expetativa de não serem mobilizados para o Ultramar, já eram casados e tinham filhos quando partiram para África ou casaram, depois, “por procuração”?

V. Quem optou por emigrar para Angola ou Moçambique para, mais tarde, ser incorporado localmente nas fileiras das Forças Armadas e, assim, não ser mobilizado para a Guiné ou poder vir a ter uma especialidade diferente da de “atirador”?

VI. Quantos participaram em operações de combate, tiveram de apontar ao “inimigo” e atirar primeiro para não morrer, ou foram vítimas das emboscadas e viram os seus colegas de pelotão ficarem feridos, amputados ou mortos?

VII. Quantos viveram o drama de verem um seu camarada morrer, transportaram às costas um camarada morto, ferido ou estropiado, ou deram sangue no local para o salvar, na sequência de uma emboscada ou rebentamento de mina?

VIII. Algum matou, por represália, algum guerrilheiro ou cortou-lhe alguma parte do corpo com a faca de mato ou teve que tomar a iniciativa de dar o “tiro de misericórdia” a algum guerrilheiro ou elemento da população que ficaram às portas da morte e sem hipóteses de sobrevivência em consequência do resultado dos combates?

IX. Na sequência das emboscadas ou assaltos aos acampamentos, quem capturou guerrilheiros, material de guerra ou documentos políticos dos Movimentos Independentista Africanos?

X. Quantos tiveram a sorte de nunca participar numa operação de combate, nunca saíram das cidades ou, pelo menos, das sedes de Companhia ou Batalhão, ou puderam participar numa atividade civil paralela, como praticar desporto federado, ou exercer a sua profissão, etc.?

XI. Quantos tiveram a possibilidade económica de vir de férias ao “Puto” ver a família?

XII. Quantas mulheres fafenses acompanharam os maridos durante a comissão, viveram em cidades ou em zonas de combate?

XIII. Quem comandou ou fez parte dos Grupos Especiais de tropa africana apoiados e organizados pelas Forças Armadas Portuguesas, como os GE ou Flechas[1] em Angola, Comandos africanos na Guiné ou de paraquedistas em Moçambique, entre outros?

XIV. No seu relacionamento com a população nativa, quem deixou por lá os chamados “filhos do vento” ou assumiu, perfilhando-os e trazendo-os consigo para a Metrópole?

XV. Desertou algum para combater ao lado do “Inimigo”?

XVI. Algum foi feito prisioneiro de guerra pelas tropas dos movimentos independentistas?

XVII. Quantos ficaram sepultados em África?

XVIII. Quantos pertenceram a Companhias que tiveram de se cotizar para pagar ao Estado a trasladação do corpo dos camaradas que morreram?

XIX. Há algum militar fafense desaparecido em combate?

XX. Quantos foram louvados, condecorados ou apanharam “porradas” (sanção disciplinar)?

XXI. Quantos ficaram a sofrer de Stress Pós-Traumático de Guerra ou adquiriram outras doenças crónicas (paludismo, hepatite, etc.)?

XXII. Quantos ficaram feridos em combate, devido a minas, rebentamento de armadilhas ou acidentes e ainda têm estilhaços de granadas ou minas no corpo?

XXIII. Quantos morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Enfim, um mundo de vivências e circunstâncias que, a conhecê-las, permitir-nos-ão dar um pequeno passo, mas decisivo, na construção da História da participação dos jovens militares de Fafe na Guerra Colonial.


7. História da participação dos militares de Fafe durante a Guerra - O estado atual da informação


A História da participação dos Militares de Fafe durante a Guerra Colonial ainda está por fazer. A pouca informação disponível sobre este tema ainda não está organizada e sistematizada e encontra-se no processo individual de cada um, depositado no Arquivo Geral do Exército, da Força Aérea ou da Marinha, e só poderá ser consultada pelos próprios, os familiares ou alguém com autorização da família, de acordo com o Dec. Lei n.º 46/2007 de 24 de agosto, ou, ainda, na documentação dispersa em poder dos próprios combatentes ou familiares.

Apesar de se estar no início da sistematização da informação, já podemos responder com segurança ou encontrar caminhos para prosseguir a investigação a algumas das questões levantadas durante a minha intervenção, nomeadamente:


1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (“às sortes”) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?


Não sabemos. Será possível sabê-lo, no entanto, consultando os Editais Municipais com as listas dos “mancebos” que eram chamados “às sortes”, existentes no Arquivo da Câmara Municipal de Fafe.


2. Quantos militares de Fafe morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Durante a Guerra Colonial, tombaram em África quarenta e um militares de Fafe.

Este número está de acordo com a lista que me foi enviada pelo Arquivo Geral do Exército e da pesquisa efetuada no concelho por mim e pelos dirigentes da Direção da Delegação de Fafe da APVG (Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra). Sabemos quem, onde, quando e as circunstâncias que causaram a sua morte e onde estão sepultados.

Apresentamos um quadro detalhado por cada Província Ultramarina: Angola, Guiné e Moçambique (...), realçando, a partir de cada um deles, alguns elementos mais relevantes, de acordo com o conhecimento mais circunstanciado que fomos obtendo através das diferentes fontes históricas mencionadas.

Numa primeira análise geral feita aos três quadros, podemos verificar que em relação aos que tombaram em África (n=41): 

(i) todos os mortos pertenceram à Arma do Exército, não havendo, ainda, conhecimento de ocorrência que tivesse provocado a morte ou ferimento grave nas fileiras da Força Aérea ou Marinha; 

(ii) a primeira morte na Guerra ocorre no dia 3 de julho de 1961, três meses após os massacres no Norte de Angola e foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural da freguesia de Ardegão, e que ficou sepultado em Sanza Pombo; 

(iii) o último a tombar na Guerra Colonial foi o 1.º Cabo José Pereira Dias no dia 27 de setembro de 1975, em Cabinda, Angola; natural de Armil, onde está sepultado;

(iv) seis militares eram casados (Angola, 1; Moçambique, 4 e Guiné, 1); 

(v) em relação ao posto, desapareceu em combate um Furriel em Moçambique, morreram dois Alferes milicianos (1 en Angola outro em Moçambique), vinte e oito soldados e dez 1.ºs cabos; 

(vi) quanto às causas de morte: 

  • três por acidente de viação (em Angola);
  • quatro por acidente por afogamento (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • quatro por acidente com arma de fogo ;2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • um acidente  outras causas, sendo o total de acidentes de 12 (Angola:  8; Guiné: 2; Moçambique: 2);
  • vinte e três em combate (7 em Angola, 7 na Guiné, 9 em Moçambique), sendo 4 em minas e armadilhas (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique); 
  • quatro por doença (2 na Guiné, 1 em Angola, e 1 em Moçambique);
  •  e, finalmente, dois, em Moçambique, por causas desconhecidas (incluindo um desaparecido em combate).


(vii) Após a Revolução de 25 de Abril de 1974 e já depois do final da Guerra, ainda morreram cinco fafenses em África: quatro em Moçambique (Agostinho Carvalho, Francisco Carvalho, Manuel Carneiro e Norberto Salgado) e um em Angola, o último, José Dias, em 27 de setembro de 1975.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)
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Nota do autor:

[1] Forças especiais criadas pela PIDE em Angola.

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O livro supracitado resultou do "Curso Livre de História Local: O Concelho de Fafe e a guerra colonial (1961-1974)", organizado pelo Núcleo de Artes e Letras de Fafe, com o apoio de diversas entidades, entre elas a Câmara Municipal de Fafe e o Museu da Guerra Colonial, com sede em  V. N. Famalicão, e cujo programa na devida divulgámos no nosso blogue, na série "Agenda Cultural". Decorreu entre 21 de outubro e 24 de novembro de 2013.

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 30 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25792: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte I: Maçaricos, periquitos, checas... 

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23421: Notas de leitura (1463): “A primeira coluna de Napainor”, por António S. Viana; Editorial Caminho, 1994 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Trata-se de um romance muito bem organizado, sobressaem alguns alferes que primam por interesses culturais, intercala-se o horror com a pilhéria, por vezes a falta de sentido ressalta do jargão militar, galgamos os capítulos sempre à espera do mais capitoso imprevisto, vão-nos sendo apresentados vários perfis militares e em dado momento chegamos ao horror, aos comportamentos de cabeça perdida, há interrogadores completamente perversos, e pergunta-se, se acaso há fundamento real, como é que os Macondes sobreviveram a tanta bestialidade de parte a parte, mesmo que tenham de antemão tomado partido por serem independentes. Um romance altamente recomendado, precisamos de comparar o que é comparável, há literatura fora da guerra da Guiné que merece a nossa atenção, disso não duvidem.

Um abraço do
Mário



A primeira coluna de Napainor, por António S. Viana (1)

Beja Santos

Toda a análise da literatura de guerra colonial deve ter em conta o condicionante do território, uma descrição exuberante dentro de um planalto de Moçambique, subindo ou descendo ravinas, não tem analogia com um desembarque de fuzileiros numa maré-baixa, chapinhando no lodo; há o espaço em que decorre a ação, mas há o tempo, uma narrativa de experiência em 1963 ou 1964 pode ser incompreensível em 1973 ou 1974, houve mudanças, apareceu ou desapareceu população, a guerrilha está mais ativa ou desviou-se para outras regiões. Para além desta questão axial, a procura dos termos de comparação tem atrativos: o estado de espírito, a comunicação do militar com o meio em que se insere, a anatomia do sofrimento, o que aproxima e diverge o combatente no espaço e no tempo.

Isto para enfatizar que a questão central das leituras que aqui se apresentam, por via de recensão, teima, sempre que se proporciona, a comparar. Além de velhos combatentes, temos direito a ler bons livros. E é pois com satisfação que vos venho falar de uma obra de ficção passada no teatro moçambicano, “A primeira coluna de Napainor”, por António S. Viana, Editorial Caminho, 1994. É a chegada, aqui os periquitos dão pelo nome de checas. Fica-se com a sensação que se entrou numa peça de teatro do absurdo, os quartéis não têm nomes reais, a localização é indefinida, mas o jargão da tropa impõe-se, frases curtas e sacudidas, o herói chama-se Var, mais tarde adianta-se que é Avelar, é amigo de Fernando (no desenvolvimento da obra presta-se homenagem a José Bação Leal, que lá faleceu, por negligência médica) e de Henrique, não se disfarça que são alferes com bom grau cultural, há quem goste de ouvir Wagner ou ler a poesia de Saint-John Perse ou os romances de Lawrence Durrell.

Capítulos curtos, uma grande economia, descrições contundentes:

“A sua vida tinha sido comerciar com os indígenas. Vendia-lhes capulanas (pano usado pelas mulheres, termo moçambicano) que quase rivalizavam com as que iam comprar do lado de lá da fronteira, sal, açúcar, candeeiros de petróleo e todas as bugigangas que fazem parte do arsenal de um cantineiro: barros, pomadas para doença, camisas, calções, cordas, catanas, utensílios para agricultura e produtos alimentares.

Abandonou Napainor muito depois dos primeiros tiros. Aproveitou-se das migrações da população para fazer o negócio prosperar e só partiu quando esgotou os stocks. Foram quinze dias de atraso que lhe custaram a vida. Quando meteu os últimos frascos na carrinha e aconchegou ao seu lado o cofre cheio, não sabia que ia morrer. Uma bazucada arrancou-lhe as duas pernas e grande parte da chapa da viatura em que seguia. A mutilação não lhe tirou, todavia, a vontade de viver e, num último fôlego na picada da lama, o carro quase sucata foi embater num poste telegráfico onde a natureza fizera crescer pequenos rebentos.

Nos tempos da prosperidade dizia, a quem o quisesse ouvir, que nunca deixaria o planalto a não ser que o prendessem, mas que mesmo assim haveria de voltar, tal como os rebentos verdes das velhas árvores voltam a nascer nos postes fabricados do tronco morto”
.

A insinuação do absurdo persegue toda a narrativa, absurdo e fantasmagoria, alguém barafusta:

“Tu querias que um povo como nós, que fez da Índia, da África e do Brasil razões de sobrevivência no corpo e na alma, fechasse essa página da História sem que o absurdo, o sofrimento e até o ridículo se instalassem?”

São jovens cultos, a guerra ainda não atingiu níveis de brutalidade ou horror, ainda há disponibilidade para procurar nos outros vestígios da vida interior, é esse um dos trabalhos a que se dá Var naquele quartel que dá pelo nome de Arduz, ele não deixava de se assombrar como aqueles militares e civis a viverem o permanente sobressalto no Norte se conseguiam alhear como se a guerra fosse apenas mais um episódio no percurso normal das suas vidas. Var observava que os que tinham sentido a vida em perigo acusavam a transformação, o que mais o seduzia eram os comportamentos imprevisíveis, tanto os arroubos de heroísmo ou solidariedade como as atitudes de desvairo, esfaqueando mortos, enforcando possíveis terroristas, as atitudes demenciais debaixo de fogo.

Um certo general lançou a operação Pé-Leve convencido de que ia resolver para sempre a guerra no planalto. 

“No maior segredo, foram deslocadas para a região duas baterias de artilharia, dois batalhões, uma companhia de comandos e outra de paraquedistas. Todavia, os possantes motores dos velhos carros de três toneladas, das mercedes e das berliets subindo o planalto de duas direções diferentes afugentaram os animais e só levantaram colunas de poeira.

Na madrugada em que foi iniciado o envolvimento, os canhões troaram despejando obuses para a zona onde se acreditava estar uma das bases do IN, enquanto as companhias iam fechando o cerco projetado com todo o cuidado no papel fino do gabinete de operações. Começavam a esbulhar o mato em busca de um inimigo que aparecia onde menos era esperado. O general percorria o terreno seco do quartel de Arduz, sempre com o havano na boca, entre o gabinete que confiscara ao comandante de batalhão, a sala de operações e o posto-rádio, esperando notícias iminentes que não chegavam. Alguns autóctones dobravam-se até ao chão, em intermináveis mesuras, à passagem das colunas militares, mas o IN não estava em lado nenhum, nem mesmo na base que as NT tomaram e destruíram”
.

O general está eivado pelo espírito de missão, acredita piamente nos séculos da presença portuguesa em África, procura doutrinar os oficiais à sua volta:

“- Nós sempre soubemos lidar com os selvagens, é uma qualidade intrínseca do nosso povo. Eu vejo pelo meu mainato. Você julga que ele é tratado de maneira diferente do meu neto? E quer saber porquê? Pela mesma razão por que eu sou capaz de comer uma posta de bacalhau com os soldados. Mas ai deles… ai deles… se me faltam ao respeito.

As antigas famílias portuguesas adotavam crianças de cor em qualquer parte do mundo, e havia muitas que lhes chegavam a dar o seu próprio nome. Às vezes, os nobres portugueses tinham filhos de aventuras fora do casamento e fossem eles pretos, índios, amarelos ou vermelhos, davam-lhes um nome cristão e o próprio apelido para que a semente da nossa civilização vingasse em toda a parte. Eu percebo essa atitude olhando para o filho do meu mainato. Que importância tem ele ser preto? É uma criança como o meu neto. Quando falo às tropas, costumo dizer isso”
.

E muda-se bruscamente de plano, a companhia 333, a que pertence Var e cujo comandante é o capitão Vaz, estão agora em operação, vamos conhecer novas figuras, como o furriel Leónidas, um militarão de cepa.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23416: Notas de leitura (1462): A lusitanização e o fervor católico na Guiné, um ideário do Estado Novo na publicação “Política de Informação”, por José Júlio Gonçalves, 1963 (Mário Beja Santos)