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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Notas do editor

Poste anterior de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Privilegiou-se, deste belo livro em que entrevistador e entrevistado se enlaçam com naturalidade, entrevistador bem informado e um octogenário que procura jogar o jogo da verdade, os temas mais relevantes à luta armada, como ele via o PAIGC, como se sentiu atraído para combatente nacionalista e como se afastou do PAIGC por não aceitar o dogma da fé da unidade Guiné-Cabo Verde. 

Conheceu a fundo o PAIGC e o PAICV, dá-nos uma imagem da história de Cabo Verde após a independência que não pode deixar indiferente qualquer estudioso. Doutorou-se em socialismo africano e deixa-nos comentários valiosos sobre esses líderes com quem conviveu. Não se escusa a fazer confissões íntimas como a que tece sobre Adriano Moreira, não gostou dele como Ministro do Ultramar, considera a sua obra como uma das mais meritórias da Ciência Política, mesmo as medidas que tomou para estimular o ensino universitário e acabar com o regime do indigenato. Para o estudioso é muito importante a análise que ele faz do Partido Único de Cabo Verde e do seu trabalho autárquico. Creio que o leitor irá ficar fascinado com a imagem que este cabo-verdiano dá da sua vida e da sua ligação a uma cultura específica onde o português está sempre presente.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (2)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Já vimos como este combatente nacionalista andou por várias paragens antes de passar a representante do PAIGC no mundo escandinavo. Era frontal, não escondia a sua descrença contra o dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. Estamos agora na atmosfera do assassinato, em retrospetiva, Onésimo, que assistiu aos funerais e que dialogou então com muita gente, avalia que Amílcar Cabral e os seus próximos subestimaram os avisos de que havia uma conjura em marcha, houve autêntica leviandade desses sinais premonitórios da conjura, os cubanos disseram claramente o que se estava a preparar. 

É neste momento que o entrevistador pergunta a Onésimo em que medida Cabral era tributário dos cabo-verdianos. Vem a resposta: 

“Precisava dos cabo-verdianos. Desde logo, para justificar a existência do PAIGC enquanto movimento de libertação dos dois territórios. Por outro lado, quando a luta exigiu uma intervenção qualitativa, só os cabo-verdianos e os cubanos é que puderam dar essa contribuição. São os cabo-verdianos que se vão formar sobretudo em artilharia, introduzindo com isso um elemento novo e de valor na guerra contra os portugueses”

A conversa deriva para o projeto de desembarque em Cabo Verde, houve aventureiros, como o Conde Von Rosen que propôs operações com aviões pequenos, chegou-se a discutir a preparação de pilotos, não era para matar pessoas, era para destruir os hangares dos aviões militares portugueses. Na altura da morte de Cabral os soviéticos estavam a preparar pilotos para a guerra na Guiné, mas era uma questão diferente. O plano do conde sueco não foi por diante e internacionalmente não havia qualquer apoio ao desembarque da guerrilha em Cabo Verde.

A conversa regressa aos cabo-verdianos de Conacri, observa pessoas, faz-lhes o retrato, caso de Pedro Pires: 

“Ele é um homem que não faz questão de apresentar ideias originais, mas é um administrador de grande classe, mesmo com ideias políticas que não sejam dele”

Onésimo, que já não é militante do PAIGC, após as exéquias de Cabral regressa a Estocolmo com o sentimento de que o PAIGC precisava de mudar de política, já estavam todos no comprimento de onda de que a Guiné seria independente, mas era óbvio que havia dois problemas, os guineenses não aceitavam o mando dos cabo-verdianos, e o papel dos militares, que enquanto Cabral foi vivo era de plena subordinação ao poder político, irrompeu na luta pelo poder. Cabral tinha uma fórmula para a subordinação dos militares, eles não eram militares, eram militantes armados, foi a consigna que ele criou no Congresso de Cassacá, para expurgar do PAIGC a mentalidade do cabo de guerra. O jornalista enfatiza, volta a Cabral e pretende saber se ele no fundo era guineense ou cabo-verdiano. Onésimo é pronto a responder: 

“Pelo comportamento, Cabral era cabo-verdiano. E foi por ser cabo-verdiano que foi morto pelos guineenses. Os guineenses não viam nele um guineense”.

Como o jornalista observa que também havia cabo-verdianos que se recusavam a ver Cabral como cabo-verdiano, Onésimo dá a sua interpretação: 

“É uma situação estranha, inédita, de um indivíduo que nasce num país, faz uma revolução como cidadão de outro país (aqui Onésimo comete um erro de palmatória, Cabral nasceu em Bafatá e depois foi com a mãe viver para Cabo Verde, onde estudou e de onde partiu para Lisboa para se diplomar como engenheiro agrónomo), Cabral esteve na Guiné, viveu com os guineenses, viu o impacto da intervenção colonial na Guiné, uma situação completamente diferente de Cabo Verde. Mesmo tendo vivido na Guiné, Cabral não viveu a Guiné por dentro e nem podia”

E adianta uma observação que abre um novo ângulo de análise, que mesmo a maior parte do tempo de Cabo Verde é uma experiência são-vicentina, e Onésimo procura dar uma interpretação: 

“Não é por acaso que Cabral se preocupa com a pequena burguesia naquilo que é o pensamento político dele. Na história de Cabo-Verde, a experiência urbana e pequeno-burguesa é mais visível em São Vicente do que em Santiago. A Guiné nem sequer é para aqui chamada. Cabral é dos poucos líderes africanos que se preocupa com o papel da pequena burguesia, porque sabia, no fundo, que ele próprio era um produto da pequena burguesia africana. Tinha tudo para viver tranquilamente e confortavelmente no quadro imperial português. Em vez disso, ele entendia que tinha uma dívida a saldar com os povos de África, a começar pelos seus irmãos da Guiné e Cabo Verde”.

Esboça-se o retrato de muita gente e influenciou a luta, caso de Abílio Duarte. Onésimo afasta-se do PAIGC, conta as reuniões em que esteve, conta como o caluniaram, seria um problema de contas, ao que ele respondeu perentoriamente: 

“Pelas minhas mãos não passava um tostão da ajuda sueca para o PAIGC. Não passava, nem nunca passou”

E explica o que era a ajuda sueca, a conversa retoma a cena internacional onde se movia o PAIGC, havia mesmo a opinião de que Cabral não devia ter ido ao encontro de Paulo VI, pessoas como Vasco Cabral, comunista, temia que os soviéticos ficassem francamente aborrecidos.

Dentro desta entrevista tão agradavelmente movimentada fala-se da tese de doutoramento e de Karl Popper, de Aron e de Sartre. E chegamos ao 25 de Abril e emerge uma nova dimensão, a independência de Cabo Verde, apresenta-nos intervenientes, fala-se do partido de Baltasar Lopes, Onésimo vive aquela tensão que tinha lutado pela independência do seu país e continuava a considerar que a unidade Guiné-Cabo Verde era uma grandessíssima asneira que ainda hoje Cabo Verde estava a pagar a fatura. 

Entretanto, vem investigar para Dacar, a convite de Senghor, assiste próximo e distante o aparecimento de movimentos de independência que serão sufocados pelo PAIGC. Onésimo ingressa nas Nações Unidas, vai para Nova Iorque, depois Angola, Somália, Moçambique, Genebra, cansado pede a desvinculação e volta para Cabo Verde, antes porém fala-nos da cultura norte-americana e depois da diplomacia africana, mais tarde vamos vê-lo como primeiro presidente eleito da Câmara Municipal de São Vicente (1991-2002), será depois embaixador de Cabo Verde em Portugal até 2005, falará longamente do Partido Único em Cabo Verde, foi mesmo convidado para Ministro dos Negócios Estrangeiros por José Maria Neves, é brejeiro a contar histórias como aquela que viveu enquanto embaixador em Lisboa: 

“Tive um funcionário que tinha mulher e amante na embaixada, mas que, por razões de ordem partidária, não resolvia o problema. Uma vez a amante veio ter comigo, para me dizer que estava na disposição de liquidar a rival, se o assunto dela não fosse resolvido. Aquilo era um caso de bigamia mal disfarçada e aconselhei-a a não fazer o que pensava, felizmente o marido acabou por regressar à base".

Onésimo revela-se um conhecedor profundo da realidade cabo-verdiana, a diversidade de cada ilha e a sua poderosa cultura. No termo da entrevista haverá um balanço e vamos vê-lo a falar com a maior das intimidades dos amores dispersos e dos filhos que tem em vários continentes. Considera-se um homem de coragem, relevou amizades, e conta histórias como o apoio que deu a José Leitão da Graça em Dacar, considerados inimigos do PAIGC. 

“Entre o revolucionário, autarca e diplomata, prefiro responder que sou um lutador”

Orgulha-se de ter tido uma vida plena e de continuar a lutar pela liberdade e pela democracia.

Pelo seu desempenho na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde, esta longa entrevista é de leitura obrigatória para estudiosos e curiosos.

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)

1 Apesar de tudo, Cabo Verde está também no coração de muitos de nós; os pais de alguns de nós foram lá expedicionários durante a II Grande Guerra; temos camaradas naturais de lá, que estão inscritos na Tabanca Grande; um ou outro dos membros da Tabanca Grande fez lá também a sua comissão de serviço militar,  nalguns casos estiveram lá alguns meses, ou em trânsito para o CTIG, sobretudo no início dos anos 60...  

Cabo Verde é um país da CPLP sobre o qual temos falado pouco... Ou sobre o qual tem havido pouco que falar, aqui no nosso blogue, apesar da presença histórica de Portugal na região e nas ilhas desde meados do séc. XV. E pode vir a ser, num futuro próximo, um parceiro da NATO.

Bem, na realidade temos 470 referências sobre Cabo Verde, o que não é nada mal.  Temos falado pouco de Cabo Verde dos anos 60 para cá, como antiga colónia portuguesa e depois como país lusófono independente.  

Temos falado muito pouco sobretudo da sua discretíssima independência (mas nem por isso "pacífica", dados os interesseses geoestratégicos em jogo, com o PAIGC , pós-Amílcar Cabral, na altura claramente pró-soviético).  

Como temos falado pouco do golpe de estado de 'Nino' Vieira em 14 de novembro de 1980 que deu a machada final no "mito" da unidade Guiné-Bissau / Cabo Verde, tão acarinhado por Amílcar Cabral e um punhado de cabo-verdianos do seu partido e aceite, a contra-gosto, por muitos guineenses (alguns dos quais saudaram efusivamente o golpe, que teve consequências irreversíveis).

Não sou dos saudosistas que pensam que Cabo Verde hoje bem poderia ser uma região autómoma de Portugal  e estar plenamente integrada na União Europeia, tal como as Canárias, os Açores ou a Madeira. A escolha (política) do povo cabo-verdiano é/foi soberana.   

A memória é curta, pelo que é bom recordar  que "a 19 de Dezembro de 1974 foi assinado um acordo entre o PAIGC e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde. Este mesmo Governo preparou as eleições para uma Assembleia Nacional Popular que em 5 de julho de 1975 proclamou a independência." (Sítio oficial do Governo de Cabo Verde > O arquipélago > História )

Mas nós aqui temos a natural curiosidade, como antigos combatentes,  em saber o que se passou até à independência, e mesmo depois sob o regime único do PAIGC / PAICV.  E vamos continuar a fazê-lo dentro do respeito do princípio da não-ingerência, dos antigos combatentes da guerra colonial,  na vida interna de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (dois países que nos são queridos, além das demais antigas colónias portugueses, hoje países independentes). Além disso, a "morabeza" impõe...


2. Excertos de um artigo publicado na Revista Militar, n.º 2461/2462, fevereiro/março de 2007, "Os Quarenta Anos das Forças Armadas de Cabo Verde", do então tenente-coronel Pedro dos Reis Brito, na reserva, entretanto falecido (1953-2014).

Segundo o semanário Expresso das Ilhas, de 23 de agosto de 2015, este oficial das Forças Armadas de Cabo Verde que atingiria o posto de posto de coronel "entrou para a corporação após ter concluído o estágio de Comissário Político de Companhia, em junho de 1975 em Cuba"... Trata-se, pois, de um dos primeiros elementos a integrar as Forças Armadas da República de Cabo Verde.

Voltando à nossa fonte, "de julho a agosto de 1975, desempenhou as funções de comissário político da Companhia Manuel Monteiro do Comando da Primeira Região Militar, de agosto de 1975 a maio de 1976, desempenhou as funções de comissário político no Centro de Instrução Político Militar do Tarrafal; em 15 de maio de 1976 foi promovido ao posto de segundo-oficial, para a 4 de Janeiro de 1978, ser promovido ao posto de tenente" (...) e em 1995 foi promovido ao posto de capitão, tendo entretanto concluído, em novembro de 1995, "a licenciatura em Economia, por correspondência, na Universidade de Havana, em Cuba".

Era então tenente-coronel quando escreveu este artigo para a "Revista Militar", portuguesa. Desse artigo vamos selecionar com a devida vénia, alguns excertos com factos relevantes para a história das Forças Armadas de Cabo Verde. Vão em itálico e separados por parênteses curvos, os subtítulos são nossos.


As Forças Armadas, uma instituição que orgulha os cabo-verdianos

(...) Celebrar os quarenta anos de existência das Forças Armadas é, de facto, revisitar marcos históricos da Nação Cabo-Verdiana, alguns perdidos no tempo ou nos recônditos da memória, outros mais presentes. Para além da comemoração ser um dever da instituição é, simultaneamente, um tempo de festa - pelas realizações e êxitos conseguidos - e de análise e reflexão com vista a corrigir os erros, projectar melhor o futuro e agir com maior coerência no presente.
 
Trinta e um anos depois da conquista da sua independência, Cabo Verde - este país ilhéu e saheliano do Atlântico médio - deixa o grupo dos PMA (Países Menos Avançados) e ascende à condição de país de desenvolvimento médio. Mérito é, facto, do povo caboverdiano, mérito dos sucessivos governos e mérito das instituições, pequenas e grandes, que enformam o estado e a sociedade. O nível de desenvolvimento atingido nestas dez ilhas é fruto de trabalho árduo e de muitos sacrifícios, (...)


Nesses anos de construção sobressai uma instituição que orgulha os cabo-verdianos e que acaba de completar 40 anos: as Forças Armadas de Cabo Verde. A história das Forças Armadas, assim como a formação da Nação, precede a independência e confunde-se nas trilhas da luta emancipadora com o doloroso, sacrificante e honroso caminhar para a nova aurora.

O Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde - ver listagem completa no final do artigo - por circunstâncias e vicissitudes diversas - diria, quase, por imponderáveis do tempo histórico - é constituído em meados dos anos sessenta do Século XX e lá do outro lado do oceano.

Realmente, a necessidade de dar inicio à luta armada em Cabo Verde levou a direcção do PAIGC - movimento libertador das Ilhas e da Guiné - no fragor da luta a mobilizar um punhado de jovens de que faziam parte estudantes, camponeses e trabalhadores emigrantes, juntamente com outros militantes anteriormente mobilizados, e enviá-lo a Cuba, onde, em plena clandestinidade e nas montanhas dessa ilha, permanece cerca de dois anos, recebendo preparação militar que seria, posteriormente, continuada na União Soviética.

É a 15 de janeiro de 1967, ainda em Cuba, finda a preparação e em vésperas de partir que, perante Amílcar Cabral, a quase totalidade dos membros do Grupo, individualmente, prestou um juramento solene: “de fidelidade à luta pela independência de Cabo Verde 
[sic 
 ]  fosse em que circunstâncias fosse. Esses jovens, então, afirmaram-se, dispostos para o sacrifício supremo se necessário para se poder alcançar a liberdade da Pátria, mas também pelo seu desenvolvimento e engrandecimento”. (...)

Hoje, é com orgulho que se constata que se cumpriu o Juramento. Por isso, em 1988, o Governo de Cabo Verde no primeiro gesto de reconhecimento da importância deste facto, escolheu e fixou o dia 15 de Janeiro como “Dia das Forças de Cabo Verde” (...)

Em 1975 é nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).


 Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde 

Por conseguinte, retomando, a trajectória iniciada nos anos sessenta, feita com perseverança e determinação, pode-se afirmar que, com certeza, se cumpriu, também, o destino. De facto, o Núcleo Fundador das Forças Armadas, após ter-se empenhado duramente em todos os sectores e frentes da luta pela independência, onde alguns dos seus integrantes tombaram no campo da honra, nas vésperas da independência nacional e nos anos que se seguiram, assume activamente a organização das Forças Armadas nacionais, integrando, preparando e dirigindo os jovens voluntários que massivamente se prontificaram em defender o país e prosseguiram edificando as Forças Armadas caboverdianas.

E não se limitaram à esfera militar, tendo-se registado uma vasta e qualitativa participação aos mais altos níveis de actividade do Estado de membros desse Núcleo. Assim, depois da proclamação da Independência Nacional, a Lei de Organização Politica do Estado atribui ao Ministério da Defesa e Segurança - criado pelo Decreto-Lei n.º 4/75 de 23 Julho - a responsabilidade pela defesa da independência, da soberania e integridade territorial, sendo nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz 3 e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas4 nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).

É o Decreto n.º 26/75 de 20 de Setembro, que cria o Comando-Geral das FARP e Milícias e o Comissariado Político Nacional das FARP, tendo este último à frente o Comandante João José Lopes da Silva. É esta, pois, a liderança - apoiada por vários oficiais, ainda sem postos definidos e sem patentes - que no dia-a-dia vai erigindo o novo “edifício militar” cabo-verdiano, em paralelo com a construção do novo Estado.

(...) Ao longo desses quarenta anos várias foram as gerações de cabo-verdianos que de uma forma ou de outra, viriam a dar o seu indispensável contributo para a formação das Forças Armadas, seguindo as peugadas do Núcleo fundador.  
 
(...) A sua estrutura orgânica sofreu adaptações aos momentos e contextos históricos vividos no país, mas como reestruturação de fundo registam-se: na década de oitenta, a aprovação de legislação estruturante, designadamente a Lei Orgânica, o Estatuto do Oficial e do Sargento, as Normas de Promoção e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM); na década de noventa, que começa com introdução de novas missões para as Forças Armadas no quadro da Nova Constituição, a aprovação de leis decisivas destacando-se a Lei das Forças Armadas, a lei que define o estatuto da condição militar, a lei que define a organização global e efectivo das FA, o Estatuto dos Militares, o Estatuto Remuneratório, o Código de Justiça Militar e a revisão de várias outras normas jurídicas, onde sobressai o RDM; no período actual, convencionalmente enquadrado na reforma das Forças Armadas, a elaboração de importantes estudos conceptuais: o Projecto da Reforma das Forças Armadas e o Projecto de Conceito Estratégico da Defesa Nacional; e a adopção de dispositivos conceptuais e legais: as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa e Segurança Nacional, a Lei que estabelece o Regime Geral das FA e outros documentos importantes para organização sistémica e integrada da defesa nacional.

Se nos anos noventa se assistiu à criação da Guarda Costeira, composta por Unidades Navais e Unidades Aéreas e à formação da primeira Companhia de Fuzileiros Navais, depois de uma experiência que não vingou em finais dos anos setenta, este período que a instituição vive ressalta a sua reestruturação por forma a poder dar melhor resposta no que respeita, também, à segurança interna.

É assim que surge a Guarda Nacional, que será integrada essencialmente por Unidades de Policia Militar, de Fuzileiros Navais e de Artilharia e a Guarda Costeira, reorientada para os objectivos essenciais da sua constituição que são: a vigilância e fiscalização dos espaços marítimo e aéreo, bem como a sua preparação para acções de busca e salvamento, ao mesmo tempo que se forma a primeira unidade especial de reacção rápida para o enfrentamento das ameaças, sobretudo à segurança interna, de carácter mais violento.

Antes de abordar as realizações de vulto no seio das Forças Armadas, no transcurso de tempo decorrido, importa dizer que a perenidade da instituição deve muito ao seu papel que tem desempenhado e à sua utilidade na sociedade. Realmente, não obstante estar vocacionada e lhe seja cometida pela Constituição a “… defesa militar da república contra qualquer ameaça ou agressão externa.”, e ainda para missões com maior afinidade com a responsabilidade referida, aliás assumida em demais leis que enformam o corpo normativo da instituição, elas têm sabido dar uma contribuição de valor em várias outra frentes do desenvolvimento.

O testemunho da sua presença começa nas campanhas de arborização e protecção do meio ambiente e vai até ao apoio às populações em tempos de crise. No concernente a realizações, propriamente ditas, deve-se registar que o crescimento da instituição castrense cabo-verdiana foi acompanhado de um grande esforço no sector da formação de quadros. Desde o início as Forças Armadas preocuparam-se com a formação dos seus efectivos no domínio técnico-militar e no cultural, independentemente da sua condição de prestação de serviço, visto que a formação do homem é sempre um investimento no desenvolvimento.

É gratificante encontrar pelo país fora, nos mais diversos ramos de actividade, profissionais de níveis e especialidades mais díspares formados pelas Forças Armadas ou graças à sua acção e apoio. Eles são professores e músicos, médicos e enfermeiros, engenheiros e marinheiros, técnicos de construção civil, etc. Dificilmente, o nível de desenvolvimento e o estádio de organização seria atingido se não tivéssemos contado durante esses 40 anos com a colaboração internacional.

Com efeito, o crescimento das Forças Armadas, desde do primeiro instante teve na cooperação técnico-militar um elemento fundamental e o leque de apoiantes é extenso: países como a antiga União Soviética, os Estados Unidos da América, Portugal, a França, a Angola, a Alemanha, China, Cuba e Senegal têm sido excelentes parceiros nas várias etapas da vida das FA, tendo o Governo, através do Ministro da Defesa, na década de noventa do século passado, em sinal de reconhecimentos e agradecimento, agraciado algumas das suas representações aqui no país, com a Medalha Militar de Serviços Relevantes.

Mas a presença internacional das Forças Armadas não se tem limitado à cooperação, no plano operacional as tropas cabo-verdianas, nos últimos anos têm tido uma participação em vários exercícios internacionais, o que evidencia o bom nível de preparação das nossas tropas no total de treze exercícios militares multinacionais, no quadro da CPLP (...).

As Forças Armadas cabo-verdianas completaram, no passado dia 15 de Janeiro 40 anos de existência. A efeméride vem sendo comemorada desde o mês de Novembro, tendo o Programa iniciado com a cerimónia de condecoração de militares e civis que participaram com brilho no Exercício da NATO “STEADFAST JAGUAR 2006”, pela Ministra da Defesa Nacional.

O ponto alto da celebração aconteceu na Cidade da Praia no dia 14 em que foram homenageados os Membros do Núcleo Fundador da instituição. O Acto Central do 40.º aniversário das Forças Armadas de Cabo Verde foi assinalado no passado dia 14 de Janeiro - Domingo, presidido por Sua Excelência o Presidente da República, Pedro Verona Rodrigues Pires. O acto contou, também, com a presença do Primeiro-Ministro, Dr José Maria Pereira Neves.

Durante a cerimónia, carregada de simbolismo e emoção, foi homenageado o Núcleo Fundador das Forças Armadas, que recebeu do Chefe do Estado-Maior das FA a Medalha Estrela de Honra das Forças Armadas. A medalha colectiva foi recebida, em representação do Núcleo, pelo 1.º Comandante Agnelo Dantas, membro do núcleo, em seguida ela foi oferecida às Forças Armadas, sendo colocada no Estandarte das FA pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Pedro Pires, então Líder do Núcleo Fundador.

Os membros do Núcleo presentes (14) receberam as correspondentes insígnias representativas da condecoração colectiva. Usaram da palavra no acto o 1.º Comandante Agnelo Dantas - ex-Chefe do Estado-Maior das FA, em nome do Núcleo para agradecer a homenagem recebida, a Ministra da Defesa Nacional, Dra Cristina Fontes Lima, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Coronel Antero Matos e o Presidente da República, Pedro Pires.

A cerimónia terminou com um desfile das Forças em parada, que integrou a Infantaria da Guarnição do Estado-Maior das FA, a Polícia Militar, a Artilharia de Campanha, a Defesa Aérea e a Banda Militar da terceira Região Militar e os Fuzileiros Navais da Guarda Costeira, num total de 300 militares. 

De ressaltar que enquadrado no Programa de comemorações que se prolongará até 18 de Março - Dia da Unidade “Justino Lopes”, do Comando da 3.ª Região Militar - foram realizados: o Exercício Militar “Zézé Aguiar”, levado a cabo nos Concelhos de Santa Catarina e São Miguel, na ilha de Santiago; os Jogos Militares Nacionais, em que a equipa da 3.ª Região Militar se sagrou vencedora; palestras alusivas à data em vários estabelecimentos de ensino do país; paradas militares nas sedes das 1.ª e 2.ª Regiões Militares; e encontros entre militares no activo e Combatentes da Liberdade da Pátria, na sua maioria militares e/ou Membros do Núcleo Fundador. (...)


MEMBROS DO NÚCLEO FUNDADOR DAS FORÇAS ARMADAS DE CABO VERDE

Primeira Unidade Combatente de Cabo-verdianos

1. Alcides Évora (Batcha)
2. Afonso Gomes*
3. Agnelo Dantas
4. Amâncio Lopes
5. António Leite
6. Armando Fortes
7. Armindo Ferreira
8. Estanislau João Ramos
9. Fernando dos Santos Rosa
10. Honório Chantre
11. Jaime Mota*
12. Joaquim Pedro Silva (Barô)
13. José Anselmo Corsino
14. Júlio César de Carvalho
15. Manuel Jesus Gomes
16. Manuel João Piedade
17. Manuel Maria dos Santos
18. Manuel Monteiro
19. Manuel Pedro dos Santos
20. Maria Ilídia C. Évora
21. Nicolau Pio*
22. Olívio Melício Pires
23. Osvaldo Azevedo
24. Pedro 
[Verona Rodrigues ] Pires**
25. Silvino Manuel da Luz
26. Sotero Nicolau Fortes
27. Wlademiro Carvalho*.

* Já faleceram (até à data da publicação do artigo)

** Líder do Grupo

*** (LG) Falecidos depois da data do artigo (2007): (i) Joaquim Pedro Silva (Baró) (2019)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Linsk / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG. ] 

[ Não nos compete contestar ou apoiar a tese do autor, que já é de resto institucional, sobre a data de 15 de janeiro de 1967, em que um punhado de jovens cabo-verdianos jurou lutar pela libertação de Cabo-Verde, na presença de Amílcar Cabral, em Cuba,  no final do seu treimo e formação político-militares. O assunto já é do domínio da história e do seu contraditório, não devendo, por isso,  servir para degradar ainda mais  as relações entre antigos militantes do PAIGC e,  nomeadamente, entre guineenses e cabo-verdianos. ]
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"


1. T
emos aqui falado pouco sobre Cabo Verde (467 referências), mesmo assim mais do que sobre Amílcar Cabral (389), muito pouco sobre o PAICV (7 referências) e muitíssimo mais sobre o PAIGC (1176).

 Embora não seja essa a nossa vocação enquanto blogue de antigos combatentes da Guiné (1961/74), faltam-nos depoimentos sobre os 15 anos em que o PAIGC (e depois o PAICV, mudança de sigla em janeiro de 1981) governou sozinho as ilhas, com recurso aos clássicos métodos totalitários (polícia política, censura, partido único, instrumentralziação das Forças Armadas, etc.). 

Muitos cabo-verdianos são extremamente críticos desse período totalitário, de má memória. Um dos homens que lutou pela democratização do país e pelo fim da hegemonia do PAIGC (e depois PAICV) é Daniel Santos.  

Foi jornalista no "Expresso das Ilhas" e tem-se agora dedicado à sua carreira académica. Em 2014 publicou "Amílcar Cabral: um outro olhar"(Lisboa, Chiado Editora, 2014, 604 pp), livro de que o Beja Santos fez, na devida altura, um detalhada recensão crítica (*). 


Antologia >  Expresso das Ilhas,15 de setembro de 2018 > 


Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.


Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?

Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. (...) 

É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?


Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses.  (...) 

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?

Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral.  (...)

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?

Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. 

(...)  À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.

São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. 

O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? 

Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.

Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC,

Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?

(...) Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. 

Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. 

O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. (,,,)

(...)  Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. (...)

 
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.

Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta.

 Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. 

E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. 

 Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?

Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. 

O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].

Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. 

Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. 

Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. 

Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?

Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência 
não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. 

Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito,  isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. 

Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.

Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?

É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. 

A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. 

Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. 

Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. 

Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.

Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?

Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único.

 Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. 

Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? 

Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.

E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?

Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. 

Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado. (**)

[Fonte: Cabo Verde Info... Com a devida vénia, Seleção, revisão e fixação de texto / Negritos nos subtítulos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Após percorrer as cerca de quinhentas páginas de comunicações, discursos e mensagens do Fórum Amílcar Cabral 2013, tinha como consigna apreciar o pensamento revolucionário do líder do PAIGC na contemporaneidade, fica-nos um ressaibo de mágoa pelas oportunidades perdidas de lançar um olhar mais aprofundado como esse pensamento, depois de gerar duas independências, falhou rotundamente por falta de aplicação, por incapacidade dos seguidores e, quanto aos dias de hoje, discernir como esse pensamento não pode ser usado por elites políticas gananciosas e sem perspetiva. E que o pensamento de Cabral foi e é marcante atesta-o a investigação feita por dois sociólogos na Guiné e em Cabo Verde, nessa expressão musical e popular que é o rap entoa-se o nome de Cabral para reivindicar sentido da História e para ter esperança no futuro. Quantas outras investigações originais como esta poderiam ter sido convocadas num fórum designado Amílcar Cabral onde a generalidade das intervenções são boas para deitar para o lixo, é duro de dizer mas temos que nos apegar à verdade do que se leu, uma sensaboria.

Um abraço do
Mário



Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (2)

Mário Beja Santos

Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Depois de tudo lido, o primeiro comentário é de desapontamento. 

Tirando um escasso número de intervenções que trazem um novo olhar seja sobre o pensamento revolucionário de Amílcar Cabral, seja pela atualidade que uma boa parte do seu pensamento comporta, há para ali muito salamaleque e vacuidade, muito mais do mesmo, até uma certa farronca de alegados investigadores que pegaram noutros escritos e apresentam o fruto do seu trabalho como um acontecimento. 

No texto anterior, fez-se referência a duas comunicações substantivas, resta-nos uma incursão pelo trabalho de Miguel de Barros e de Redy Wilson Lima dedicado ao pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, investigação séria que apraz saudar. E também uma pequena alusão à mensagem do embaixador finlandês Mikko Pyhälä, que nos fala da ajuda escandinava antes da independência da Guiné-Bissau.

O resumo do trabalho sobre a música de intervenção é bem sugestiva para o desenvolvimento da comunicação, como consta:

“Nos anos de 1990, com a vaga de democratização na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, quer o PAIGC, quer o PAICV, partidos tidos como ‘força, luz e guia do povo’, perdem esse estatuto, pondo fim simultaneamente à cadeia de domesticação dos espíritos, precipitando uma descoletivização social das organizações juvenis sob o prisma comunista. Isto fez com que os jovens reinventassem formas de sociabilidade no seio dos grupos de pares, num contexto marcado pela globalização e afro-americanização do mundo, em que a cultura hip-hop, através do seu elemento oral, o rap, aparece como veículo da libertação de expressão e protesto dos grupos urbanos, em situação de maior precariedade. Pretende-se aqui analisar de que forma os jovens guineenses e cabo-verdianos recontextualizaram através do rap, na nova conjuntura dos dois países, o discurso pan-africanista e nacionalista de Amílcar Cabral, tendo em conta o risco de branqueamento da memória coletiva e histórica; a suposta traição dos seus ideais pelos atuais políticos e dirigentes; a necessidade de o resgatar enquanto guia do povo, e de representá-lo como um MC (mensageiro da verdade).

Proceda-se a uma síntese. O apelo ao rap parece residir na sua própria acessibilidade e na facilidade de utilização pela maioria dos jovens com escassos recursos, económicos e culturais. A vaga de democratização, o abrir das portas à liberalização política e o contemporâneo da desideologização do debate público e político, ganhou relevo o rap e o recurso simbólico global no fomento de identidades locais. Para os jovens o recurso à memória de Cabral é uma exteriorização pela insatisfação dos sonhos perdidos e dos planos de desenvolvimento que não tiveram seguimento. O rap tornou-se um instrumento para exteriorizar a crítica e acenar para um futuro mais promissor. Os dois autores falam das realidades socioeconómicas e culturais dos dois países e assim se chega à presença de Cabral na música rap. Das recolhas feitas, em ambos os países avultam quatro aspetos fundamentais: preocupação em manter Cabral como referência face ao risco de branqueamento da memória; crítica aos políticos por se terem alheado do pensamento de Cabral; utilização de Cabral como portador de esperança; Cabral referenciado como mensageiro da verdade. Há quem em mensagem rap refira que a geração mais nova duvida da sua própria história, a imagem de Cabral já não se encontra nos livros da escolaridade básica e os mais novos não conhecem a história dos seus heróis. De uma forma global, a preocupação com a manutenção e atualização da memória viva de Cabral está mais presente nas narrativas dos rappers cabo-verdianos do que guineenses. Este facto pode ser entendido na medida em que a luta pela independência dos dois países não teve como teatro de operações Cabo-Verde, vivenciando assim Cabral quase de uma forma espiritual. É um trabalho de grande sugestão, com diferentes e elucidativos exemplos, bom seria que esta investigação tivesse ampla publicidade. Os mesmos autores abordam a questão do pan-africanismo tratado nesta corrente musical. Concluem referindo o ímpeto que estas mensagens acarretam no espaço público pelo seu vigor reivindicativo. Consideram que há dois elementos que concorrem para maior uso e apropriação do rap como forma da prática de ideologia de libertação: o crioulo enquanto instrumento e a rádio como veículo de comunicação. “Cabral é ainda a principal referência da juventude e fonte de inspiração para as forças progressistas de uma mudança significativa em toda a África tendo em conta a sua eficaz visão de liderança, num continente caraterizado pela liderança deficiente e a necessidade de encontrar líderes comprometidos com a prosperidade das suas sociedades.

Da mensagem do embaixador Mikko Pyhälä parece do maior interesse destacar o papel que tiveram as sociais-democracias nórdicas na ajuda à luta da Guiné-Bissau, fala de Kalvi Sorja, que foi primeiro-ministro da Finlândia, e de outro primeiro-ministro finlandês, Paavo Lipponen, da social-democrata Birgitta Dahl, viria a ser presidente do parlamento sueco, a referência maior cabe a Olof Palme. “Muitos afirmaram que o sucesso da luta deveu-se em absoluto ao carisma e génio de Amílcar Cabral que na análise da sociedade e da opressão coloniais foi mais profundo do que Frantz Fanon e que como estudioso da liberdade e como estratega foi mais claro do que Che Guevara. Afirmou-se que Cabral conseguiu integrar valores africanos e europeus, e que com o amplo conhecimento do país que obteve quando realizou o recenseamento agrícola passou a conhecer o potencial dos vários grupos étnicos e sociais para a revolução. Para o êxito desta revolução era necessário uma aliança entre os cabo-verdianos e os guineenses. Cabral não sobrevalorizou a espontaneidade dos camponeses como fez Che Guevara. Para Cabral, a atividade militar só era possível com base num longo e paciente trabalho político e, embora insistisse que os guerrilheiros fossem militantes armados, nunca promoveu o militarismo. O sociólogo finlandês Juhani Koponen escreveu que Cabral foi o mais brilhante pensador da jovem África. Para o escritor sueco Per Wästberg, Cabral foi o mais brilhante dos líderes que as lutas africanas pela independência produziram e a sua perda foi irreparável”.

Amílcar Cabral na Guiné com a sua primeira mulher, Maria Helena Vilhena Rodrigues
Miguel de Barros, sociólogo guineense
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Notas do editor

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