1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:
Queridos amigos,
É no meio daquela vadiagem entorpecedora , e num quadro de um certo desalento da malta do Xime, que o Comando de Bambadinca resolve apontar os faróis para operações que lhes pudessem levantar o moral. Pela primeira e única vez, mandam-me esboçar uma operação para avaliar o que se passa na Ponta do Inglês, nada de andanças por outros lados, pretendia-se saber no local se efetivamente havia população e grupo militar vigilante, este revelava-se ativo, chegara à desfaçatez de bazucar uma embarcação civil que se incendiou no Geba, fora o número de flagelações sobre o Xime, isto enquanto começavam a ver os resultados do alcatroamento da estrada que vinha do Xime e prometia chegar a Bambadinca, as máquinas da Tecnil já trabalhavam entre Bambadinca, Undunduma e Amedalai. Não posso esconder o orgulho que me deu a conceção de uma operação por itinerários ditos impensáveis, e para um cabal esclarecimento do leitor aqui se reproduz um detalhe da carta para se ver por onde fomos e como retirámos deixando aquela força do PAIGC numa completa desorientação. Levar morteiros 81 no negrume da noite dentro de arrozais, entrando frontalmente num grande acampamento de quem trabalhava os arrozais do Poidom foi obra, ainda fomos recebidos pelos valentes tiros, mas os morteiros 81 impuseram-se e o nosso regresso foi um belo passeio.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Ma femme adorée, mon inoubliable Annette, mil agradecimentos pela dedicação que estás a pôr nas férias por que tanto anseio. E ouvi-te longamente ao telefone, redigiste num certo estado de dúvida os preparativos e a execução da Operação Rinoceronte Temível. Pensando demoradamente no que vivi neste curto período em que participei num conjunto de operações, sem deixar de vadiar do Bambadincazinho para os Nhabijões, de Amedalai para Bricama, estadeando naquele poiso infecto da ponte do rio de Undunduma, sou levado a julgar que a fadiga me estava a consumir, o que vai levar o médico a propor em abril o meu regresso a Bissau para tratamento hospitalar. Eu procurava manter a normalidade preocupando-me com a logística, com as aulas de ginástica, com os problemas da comida a tempo e horas para os soldados desarranchados, eram todos africanos os que estavam nestas condições, proibi que os soldados andassem com o seu saco de arroz às costas ou a fazer fogueiras quando um dia, na Ponte de Undunduma, vi um cunhete de granadas de bazuca a menos de um metro de uma fogueira. É um período em que escrevo desalmadamente, recebi correio muito edificante, Ruy Cinatti enviou-me por esse tempo uma brochura com o seu conto Ossobó, que já publicara em 1936. Encontrei uma citação num aerograma que enviei à minha irmã, e que mais tarde me ofereceu com toda a correspondência que agora está em teu poder, escuta esta pequena passagem:
“Pousado num ramo de acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido… Por momentos, qualquer coisa o atrai lá abaixo, no chão, e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas, ali acomodadas há tanto tempo… Um raio de sol conseguiu atravessar, antes dos outros, a ramaria alta das amoreiras, e espelha a água depositada no limbo das folhas. Com os pés mergulhados, Ossobó alonga o pescoço e sorve com o bico uma das pequenas gotas transparentes… Amanhece dentro da floresta. Um denso nevoeiro a subir do chão e da torrente ainda envolve o espaço. Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau-lírio lançam baforadas de perfume… Os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens. Eles lembram-se das cobras traiçoeiras que, em noites escuras, os vêm surpreender no sono, mas o periquito depressa os pacifica… Ossobó olha os vapores que se escondem cada vez mais nos cipós entrelaçados. Por causa deles é que o sol manda daquela maneira os seus raios, e a toalha de água que se despenha das rochas parece uma placa dourada de metal… Ossobó desdenha dos avisos dos celestes. Não é ele quem canta melhor no obó? O próprio periquito lhe dissera que os homens lhe chamavam o rouxinol da ilha. Despreocupada, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho do inseto que zumbe mais em baixo”. Paro aqui, minha adorada Annette, é uma cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e com dois dentes curvos saindo da bocarra que avança para Ossobó e o irá engolir, é esta a tragédia dos incautos.
Fui chamado ao major de operações, os ventos não sopram de feição na região do Xime, houve para ali flagelações, ardera a tabanca do Enxalé e em Ponta Varela um grupo do PAIGC destruíra uma embarcação civil, o comandante da companhia estava sinistrado, tínhamos que contribuir para lamber as feridas e levantar o ânimo ao pessoal. E deixou-me estupefacto quando recebi ordens para planear uma operação para muito breve, envolvendo gente do Xime, milícias de Finete e de Amedalai e do meu contingente. Perguntei-lhe qual o objetivo, qual a natureza da missão, veio pronta a resposta, percorrer a região até à Ponta do Inglês e procurar esclarecer de uma vez por todas que ali havia gente. Na maior das discrições, meti-me na sala de operações onde um furriel foi questionado sobre tudo quanto dispúnhamos de informações. Dois dias depois, apresentei um esboço, major e comandante aprovaram, apareceu um DO e percorremos a região do Xime e não havia dúvidas sobre a grande quantidade de trilhos à volta do Poidom, via-se perfeitamente que aqueles arrozais eram cultivados. A última reunião com o Comando é na manhã do dia 7, sou informado das condições atmosféricas, a noite do dia seguinte não terá lua, beneficiarei do negrume total, a deslocação será feita dentro dos arrozais, olham-me inquieto quando informo que vou levar morteiros 81 e deixo para o que acontecer o caminho da retirada, na certeza certa de que não passarei pelos caminhos convencionais que já registaram emboscadas sanguinolentas.
Como pudeste observar, inopinadamente informo os meus homens que sairemos ao princípio da tarde, defino o armamento que vai, indispensável transportar em dois cantis, nem uma palavra sobre o destino. Alguém já se pôs a caminho para informar o comandante das milícias de Amedalai de que preciso de todos os seus homens, dará um grupo de combate que sairá de Bambadinca e até ali me acompanhará. E chega um grupo de combate de Mansambo que ficará no Xime no tempo das nossas andanças até à Ponta do Inglês. Respondendo a uma pergunta que tu me puseste, esqueci-me de te dizer a tempo e horas que veio o sargento Cascalheira e o furriel Ocante substituir o Casanova e o Pina. Contratam-se carregadores em Amedalai e no Xime, aqui falo com os oficiais da unidade e defino o que vamos fazer. Como há um obus, preparo em papel manteiga, em duas folhas iguais, uma que fica em meu poder, sabendo o Cascalheira em caso de um sinistro que me atinja deve passar a ser ele a utilizar, introduzimos locais assinalados com letras, através do rádio, se acaso fôssemos flagelados e estivéssemos no ponto C eu pediria fogo para o ponto D, os guerrilheiros ficariam naturalmente intimidados e confusos quanto à nossa localização. Tudo decorreu exatamente como tu podes ler no relatório de operação. Quando, no dia seguinte, ao fim da tarde, na sala de operações informei o comando do dispositivo do PAIGC na Ponta do Inglês, percebi perfeitamente que eles não ficaram felizes. Houve um mau presságio, um pequeno desastre que afetou um 1.º cabo que à saída do quartel disparou um tiro que lhe despedaçou um dedo. Houve de facto uma reação daquele grupo do PAIGC, dispararam umas morteiradas à toa, a apalpar terreno, a ver se reagíamos, isto enquanto flanqueávamos o Corubal já na retirada. Pedimos ao obus do Xime ajuda, lançaram fogo para o local onde previsivelmente eles estariam. E tudo se silenciou. No dia seguinte fiz o relatório que tu tens em teu poder, pedi louvores para o 1º cabo Queirós e para um destemido soldado da Companhia do Xime, Isaías Remoaldo Tendeiro. Entrego o relatório ao comandante, todo pimpão, olhou-me com circunspeção e ditou-me a sentença: “Estamos satisfeitos, mas muito preocupados com as informações que nos trouxe. Fica proibido de dizer seja a quem for que vamos agora continuar com duas operações na região, a Jaqueta Lisa e o Colete Encarnado. E está na altura de V. pensar que vamos voltar à região do Cuor, o nosso major já escolheu um título, em sua homenagem, Tigre Vadio. Depois falamos, vá à sua vida, tem muito que fazer”.
É assim, minha adorada Annette, que vais ouvir falar de operações em março e abril, e depois dou baixa ao Hospital de Bissau, não era sem tempo.
(continua)
Para se entender melhor a Operação Rinoceronte Temível atenda-se ao que está escrito neste extrato da carta. Saiu-se de madrugada do Xime, contornou-se Ponta Varela e seguiu-se o itinerário considerado impensável: entrou-se na bolanha do Poidom, seguiram-se as informações disponíveis das imagens aéreas, procurou-se entrar diretamente num acampamento do PAIGC, onde se previa haver depósitos de arroz. O que veio a acontecer, no lusco-fusco a coluna de cerca de 200 homens foi detetada, pôs-se a funcionar dois morteiros 81, foi um alarido completamente inesperado, entrou-se numa rede de estradas, depósitos de arroz e camaratas de quem ali trabalhava. Arrasou-se o que foi possível, e para ludibriar quem nos podia emboscar, viemos sempre junto ao Corubal, voltámos a contornar Ponta Varela, infletiu-se para o rio Geba, o PAIGC gostava de emboscar em Madina Colhido, nesse dia tiverem deceção, passámos ao largo, entrámos manhã alta no Xime, cansados e eu particularmente feliz, sem uma beliscadura, deixando aquele grupo do PAIGC na dúvida da nossa progressão, confusos pelo estrondear daqueles morteiros, de uso improvável em lamaçal. Pois assim aconteceu.
Peço a Deus que, quando estiver a fechar os olhos na vez derradeira, volte o meu espírito para todos aqueles que eu amei do fundo da minha alma, pedirei sentidamente perdão pelos meus pecados e possa ter acesso a esta imagem que tantas vezes tive a sorte de contemplar em Mato de Cão, que ela aflua a quem parte deste mundo para me recordar o privilégio da força combativa dos meus soldados, a fidelidade daquela gente que me votou um respeito incondicional e de quem guardo uma irmandade até ao fim dos tempos.
Há muito mais de dez anos fotografei este escombro, bem me arranhei nos arbustos afiados do tarrafo para aqui chegar, enlameado até aos tornozelos, mas era impossível daqui sair sem esta recordação do exato local quase diariamente percorrido, exigindo manhas no percurso para não haver minas nem emboscadas. O que felizmente aconteceu. Este é o ponto de Mato de Cão de vigilância obrigatória para que a navegabilidade do Geba não pudesse ser posta em causa, como nunca foi.
Da minha viagem em 2010, para me despedir dos meus bravos soldados, era indispensável fazer um dos itinerários mais belos do mundo, a estrada do Xime até à Ponta do Inglês, fi-lo em estado de êxtase na motoreta de Lânsana Sori, que ziguezagueou entre poças de lama esverdeada, sempre a ouvir o fluxo trepidante do Corubal, e pouco antes de chegarmos ao povoado digo-lhe para contemplar a foz do rio no exato ponto onde as embarcações traziam os abastecimentos para o destacamento da Ponta do Inglês, quando se deixou de usar a estrada, tal o caudal de minas. E daqui se vê longe Tombali, aqui fiquei especado a pensar em tanto sofrimento que aqui houve, com tal natureza pródiga à volta.
Desse povoado e desse destacamento, que era um embaraço para as culturas do arroz do PAIGC na Ponta Luís Dias, no alegado chão libertado de Tabacutá, Mina, Fiofioli e Galo Corubal, de onde pacificamente o PAIGC fazia trânsito pelas pirogas entre as duas margens, restam escassos vestígios, esta era a casa de comércio, logo abandonada no início da guerra e que os contingentes militares nunca usaram por ser um alvo plenamente a descoberto. Será que o tempo inclemente tudo derruiu?
____________
Nota do editor
Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 >
Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória