Mostrar mensagens com a etiqueta Vila Franca de Xira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Vila Franca de Xira. Mostrar todas as mensagens

sábado, 2 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24909: Os nossos seres, saberes e lazeres (603): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (131): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
Aqui acaba a visita a uma exposição surpreendente, alvo de um catálogo de referência, num espaço arquitetónico único, concebido por Alcino Soutinho e onde se revela que Querubim Lapa é muito mais do que um grande ceramista azulejar, foi o nome maior da pintura neorrealista, a sua obra é a demonstração eloquente de que os neorrealistas não bebiam todos da mesma cartilha e como escreve o curador da exposição, David Santos, "Ao desenvolver um sentido poético da análise social do nosso país nas décadas de 1940 e 1950, Querubim Lapa realizou uma pintura singular, como poucas, soube conciliar o testemunho social com uma observação lírica da comunicação artística". No texto anterior, encetámos a viagem por esse Pós-Guerra em que uma nova geração, manifestamente congregada em oposição ao Estado Novo, assumia um compromisso entre a arte e a sociedade. Diga-se o que se disser, "os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíram-se como uma verdadeira alternativa cultural para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista - onde se inclui Querubim Lapa, nascido em 1925 - aqueles que na segunda metade dos anos 1940 frequentavam ativamente as escolas de belas artes, pressentindo no fim do conflito mundial a oportunidade de uma mudança política no nosso país". Iremos neste apontamento acompanhar a evolução do artista até se chegar a uma nítida fase de afastamento das formulações e inspirações usadas no período inicial, é quando chegamos ao distanciamento que se pode constatar como este artista plástico, atraído pela explosão da cor, e porventura pelas necessidades impostas pela vida, optou pela cerâmica azulejar, onde foi grão-mestre entre mestres.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (131):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (2)


Mário Beja Santos

É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, até 29 de outubro de 2023, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Esta observação social prolongar-se-á até à década de 1960, findo o arco temporal que justifica o título da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista.

Observa David Santos, diretor científico do Museu do Neo-Realismo, “Se hoje Querubim Lapa é pela história de arte identificado como um dos nomes mais decisivos da arte moderna em Portugal ao nível da cerâmica azulejar, ele deve ser igualmente reconhecido como um dos maiores pintores neorrealistas que o nosso país reconheceu”. Não nesta sua arte nada que se aparente com o cânone do realismo socialista, mas também não há folclore, o cômputo é uma poética de liberdade singular, não pelos temas, esses sim, recorrentes na obra destes jovens que partilhavam de uma oposição ao Estado Novo, cenas de trabalho, um mostruário da vida dos pobres, dos sacrificados, não faltando mesmo cenas circenses, uma das poucas ilusões de magia que era permitida aos marginalizados, os do fundo da pirâmide social; mas o que o distingue é o sopro lírico, os revérberos da luz, das cores, a filiação cultural ampla, ao longo da sua trajetória neste domínio das artes plásticas encontra-se a sua forte atração por temáticas do mundo antigo, na sua busca diferenciadora encontramos algo da iconografia russa, da influência bizantina, do gótico italiano, o que se exprime na postura dos corpos, na evidência das formas.

Também no estudo que David Santos preparou para este catálogo de referência se observa a atração de Querubim pelo espelho, o outro eu que atua como um reflexo, e o historiador tece considerações sobre o uso do espelho, já patente no seu autorretrato de 1949, no uso de elementos distrativos para confundir os códigos dos elementos que ele coloca na obra, que tanto pode ser a cor vermelha como o símbolo da alcachofra. Um crítico observou que Querubim era um guloso da cor, um trapezista da linha. Muito exigente na experiência, com o seu caminho próprio no realismo social, esgotados os filões perfilhados pelo uso da arte em que a forma devia estar ao serviço do conteúdo, Querubim, chegada a década de 1960, enveredará por outros rumos, tal como outros artistas da sua geração (caso de Jorge Vieira, Nikias Skapinakis, Rolando Sá Nogueira). Poder-se-á dizer, contudo, e volto a citar David Santos: “Querubim Lapa meter-se-á fiel, no essencial, a um compromisso pessoal que, não abdicando da esperança coletiva de uma sociedade, insistirá na realização de uma arte que exige de si própria um equilíbrio entre o humanismo das suas referências reais e iconográficas e a surpresa das descobertas determinadas pelo fazer artístico.” Há uma linha sequencial que vamos encontrar em cenas como a hora do almoço, o regresso do trabalho agrícola, as figuras das vendedeiras até à fase terminal desta poética neorrealista em que se representa o descanso, porventura em fainas agrícolas. É uma síntese dessas imagens que eu pretendo aqui mostrar para acicatar o desejo do leitor em vir visitar este esplêndido edifício concebido por Alcino Soutinho e percorrer dois andares para conhecer o pulsar do artista plástico, o seu compromisso, a sua estética humanista.

Vamos, pois, continuar a visita.

O tema do espelho, obsidiante na sua obra
As carquejeiras, o trabalho duro reservado aos mais humildes
As carquejeiras num contexto de atividades laborais que tanto podem ser a costura como a faina agrícola
O regresso do trabalho, a censura não terá gostado do motivo, a foice não engana, mas o contraste lírico não é menos pesado, aquele pai com o seu menino às cavalitas, com um furacão de luz ao fundo
A mulher omnipresente, no óleo, na tinta-da-china, na aguarela, lápis, o rosto inteiro, o perfil, em atividades laborais com outras, com o menino ao colo, com o espelho partido, em desespero, caçando borboletas, vendeira de peixe, com uma pomba em ambas as mãos… É a expressão mais evidente constante do compromisso do artista com observação social. Como, aliás, se escreve no catálogo: “De modo singular, Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica, uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno.”
Ousadia, irrequietude, a febre da experiência. Tendo como fundo uma volumetria que nos parece convocar para um castelo tipo São Jorge e a descida do casario numa geometria organizada, há depois um tropicalismo que parece saído do Brasil… É um choque, mas Querubim queria mesmo experimentar. Este quadro que não tem título, data de 1955, tenho para mim que o artista, já trabalhava em cerâmica azulejar, pesquisava novas formulações, aliás o final da exposição termina com o tópico “Memória e distanciamento”, atingira-se uma nova dimensão cromática e volumétrica, vamos por ali à volta desta atmosfera experimental e procuramos analogias que nos mostram os prelúdios do afastamento, o encontro com novos processos, no íntimo o visitante vê também a evolução de outros artistas, caso de Maria Keil, Rogério Ribeiro, Nikias Skapinakis. Mas a identidade de Querubim é inatacável, é como estar a ver Almada Negreiros e saber que é impossível não ser Almada Negreiros, ou Cruzeiro Seixas ou Raúl Perez
Exemplos dessa inventividade, temos agora uma paleta mais alegre, um novo tratamento das figuras, nota-se outros chamamentos de artistas figurativos seus contemporâneos, um deles, indubitavelmente, Marc Chagall.
O processo da cor está em alteração, esta vendedeira distancia-se das figuras criadas no Pós-Guerra
Este óleo dá pelo nome “O fardo”, é de 1963, a cromática é de Marc Chagall, a distância do processo neorrealista é insofismável.
“O descanso”, tema que apaixonou os naturalistas, os tardo-naturalistas, modernistas como Almada Negreiros, o que é marcante é a expressão lírica da obra, o apaziguamento, a manipulação magistral dos tons neutros e dos verdes e o poder da luz, como se houvesse um candeeiro a iluminar o repouso destes trabalhadores.
Obra icónica de Querubim Lapa na Pastelaria Mexicana, entre a Praça de Londres e a Avenida Guerra Junqueiro
Querubim Lapa na Avenida da Índia, Lisboa
____________

Notas do editor:

Vd. poste de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24886: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24900: Os nossos seres, saberes e lazeres (602): Abandono do Património Histórico (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

sábado, 25 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24886: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
Ignorava completamente a pintura e o desenho do jovem Querubim Lapa (1925-2016), rendi-me sempre à sua cerâmica azulejar e ainda hoje entro na pastelaria mexicana para me prantar em devoção perante o seu trabalho, aliás um dos seus ícones. A exposição patente no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira deixou-se de boca aberta. Primeiro pelo trabalho museográfico e museológico, de primeira água. O catálogo é de referência e até a brochura de distribuição gratuita é uma bela síntese de toda a atividade deste escultor, ceramista, pintor e desenhador. É uma viagem por uma poética neorrealista, Querubim foi um exímio observador e praticamente do realismo social, encontramos as suas filiações no realismo oitocentista, como mais adiante ele se sentirá atraído pela temática da arte antiga e até do expressionismo alemão.
Nesta primeira viagem vamos sentir o pulsar desse jovem observador e as suas preocupações transpostas numa fineza lírica bem singular. Como escreve David Santos, "Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno, desapossando em parte o discurso neorrealista da sua normativa mais comum nos anos 1940 e 1950, ligada à exposição e urgência de uma mensagem de denúncia social, para instaurar um compromisso com formas e espectros cromáticos de promessa lírica intemporal". Estou absolutamente convicto que ninguém se sentirá defraudado diante de tão ambiciosa exposição que revelará a muita gente o outro Querubim.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1)

Mário Beja Santos

É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Ele tinha uma grande vontade de participar na transformação social do país. O visitante tem à sua disposição uma bem fundamentada brochura gratuita e um catálogo de referência, pela sua elevada qualidade.

Respigo da brochura a leitura que o historiador de arte David Santos faz:
“No imediato Pós-Guerra, os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíam uma alternativa para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista, aqueles (como Querubim Lapa, nascido em 1925) que em 1945 frequentavam ativamente as escolas de belas-artes, pressentindo no fim do conflito mundial a esperança e a oportunidade de uma mudança política no nosso país.
Apesar do status quo desfavorável assente nos condicionalismos políticos impostos pelo Estado Novo, Querubim Lapa integra com empenho e consciência o movimento neorrealista português, ao desenvolver um trabalho que atinge a sua plenitude entre 1948 e 1951, firmando um processo estético muito particular, marcado pela conciliação entre valores sociais e a sua extraordinária expressão lírica. Sobre a importância do período neorrealista no seu percurso artístico, Querubim Lapa dirá muitos anos mais tarde: ‘Logo a seguir à guerra vivi intensamente o período neorrealista; participei em imensas exposições e os meus quadros eram, nessa fase, a expressão de uma experiência coletiva, muito rica sobre certos aspetos. Nessa época, a literatura, o teatro, o romance, a pintura, tentavam fazer o retrato de uma sociedade que urgia modificar. Não fomos ouvidos, calaram-nos a voz, mas o movimento neorrealista ficou como um dos períodos mais fecundos da arte portuguesa’.

Fundado no genuíno envolvimento de uma geração que teve de sobreviver ao Estado Novo, a um exercício quotidiano privado de liberdade política e de muitos outros aspetos da modernidade, o neorrealismo representou para quem o viveu um momento inesquecível de comunhão de valores em torno da transformação artística e social de um país. Por isso, num contexto criativo de vozes multidimensionais, o contributo de Querubim Lapa representa um dos mais singulares projetos de criatividade pictórica no Pós-Guerra.”


O visitante encontrará esta exposição em dois andares deste belo edifício concebido por Alcino Soutinho uma exposição onde estão representados os seus primeiros trabalhos, dar-se-á relevo à sua singularidade na poética social, a articulação entre o neorrealismo e outras experiências e, como é timbre de todos os movimentos artísticos, o que fica de memória e da sua transmissão nas correntes das artes plásticas que se seguem.

Tive a ventura de ir assistir a uma visita guiada pelo curador David Santos, um comunicador de primeira água e procuro hoje e nas semanas seguintes dar-vos conta de como esta exposição surpreendente é também uma janela sobre um tempo, uma homenagem a alguém que foi muito mais do que um grande ceramista escultor, isto na correnteza de movimentos artísticos do passado que Querubim conhecia e que pôde reelaborar na sua singularíssima pintura e desenho. A visita à exposição vai começar, oiço e interpreto à minha maneira.

Imagem da inauguração da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista
Querubim Lapa no trabalho que lhe deu notoriedade: a cerâmica azulejar, começou na Fábrica Viúva Lamego
Querubim Lapa na maturidade, junto de um dos seus trabalhos icónicos
Registo de gente humilde
As mulheres, as fainas, as crianças, um olhar desnudado e poético sobre a gente pobre
O circo será um tema atrativo dos artistas neorrealistas, é a magia e o sonho que fazem esquecer as durezas da vida
Os autorretratos, um certo olhar de viés como se estivesse a advertir que não lhe escapamos ao registo, um dia haverá essa oportunidade, era este um dos cânones do autorretrato do realismo social europeu
É um tema clássico, a espera do barco, mas num registo indeclinável de rutura com o tardo-naturalismo, nada de arrebiques na perspetiva entre a mulher, a criança e o barco, e temos em ênfase de desmesura de mãos e pés, a criança esquálida, as ameaças vêm do céu plúmbeo.
Para mim, um devoto incondicional da sua cerâmica azulejar, os motivos de tarefa destas mulheres já me parecem ir na aproximação do que será o seu trabalho de síntese, baseado na sua formação de escultor, de desenhador/pintor e ceramista, cores profundamente chamativas, este quadro de duas mulheres em conversa onde pode haver, ou não, a transmissão de segredos, tem uma organização notável, torna-se imponente com rodilha e canastra a obrigar-nos a especular sobre os motivos da conversa.
O historiador de arte David Santos analisa num dos textos do catálogo de referência dedicado à exposição as reminiscências de uma arte clássica, de posturas que lembram a ordenação pictórico e escultórica de períodos do mundo antigo, iremos encontrar outros artistas noutras partes do mundo que buscarão figurações e poses que aqui encontramos nestas três mulheres, ocorre-me, na disposição espacial desta mulher à direita a escultura de Henry Moore.
O artista evolui, mas não descura a essência do realismo social, à esquerda temos algo como o desespero e alguém que procura dar consolo, mantém-se o exagero em mãos e pés disformes, à direita é uma atmosfera de intimidade, alguém lê uma carta, alguém segue atentamente a leitura, confrontados os dois quadros veja-se a mestria no tratamento dos verdes, na habilidosa organização espacial e na luminosidade de ambos os quadros.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24862: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
É sempre com muito agrado que venho até à rua Alves Redol, n.º 45, em Vila Franca de Xira, não há museu como este, sobe-se e desce-se estas escadarias em estado de deslumbramento, independentemente do recheio sazonal, e com uma imagem que nos acompanha em todas as direções e uma obra belíssima de Júlio Pomar. O que não é sazonal é o que me traz cá hoje, conhecer a nova exposição de longa duração do Museu do Neo-Realismo, o título é fabuloso: "A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto", é um novo olhar interpretativo sobre a coleção de obras em depósito. Não que não permaneça vincada, como escrevem os curadores, a atenção aos mais desfavorecidos, uma forte leitura ao nível da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação. Aqui se desmonta aquele mantra de que se pintava, ou desenhava, ou esculpia, ou moldava de forma uniforme, como se todos os artistas plásticos vestissem a mesma fatiota e tocassem a música pela mesma pauta. Por engano, como aqui se pode ver. Muitas destas mulheres e destes homens enveredaram depois por outros caminhos, onde aqui havia um compromisso entre o figurativo e a dinâmica da modernidade, já se pressente em diferentes obras que se caminha para outros projetos, basta pensar a evolução de um dos pontífices do neorrealismo, Júlio Pomar, que se lançou gradualmente na arte não figurativa, e experimentou diferentes correntes. Em termos museológicos, a exposição é altamente atrativa, nunca perde a dimensão didática, como se uma ideia mestra presida a todo este itinerário: pensar, como contemplar, é divergir.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91):
A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto


Mário Beja Santos

Regresso sempre lesto e contente ao n.º 45 da rua Alves Redol, em Vila Franca de Xira, aqui se pranta o Museu do Neo-Realismo, a minha primeira saudação é sempre para esta obra magna de Alcino Soutinho, o arquiteto desenhou um espaço gerando volatilidade, o sentimento de que se sobe e desce sob o signo da luz graças à solução encontrada da escala destas escadarias correspondentes à ligação dos diferentes pisos, uma geometria de um fôlego quase aéreo, enfim, o prazer de por aqui deambular, sejam quais forem os bens culturais expostos.

O que me traz aqui, hoje? Venho ao encontro da exposição de longa duração que substitui outra que aqui se exibiu de 2007 (ano de inauguração do museu) até 2021, e que se intitulava “Batalha pelo Conteúdo”. E temos a promessa de que no piso abaixo, em 2024, irá continuar a renovação museológica, aqui se exibirá exposição complementar alusiva a um processo de reinterpretação do movimento literário, cívico e cultural do neorrealismo, não faltará uma ampla exposição documental, reza essa a promessa.

Recomenda-se ao visitante que adquira o catálogo, é uma obra de referência, não o fazendo tem mesmo assim ao seu dispor um folheto que ajuda a entender esta nova abordagem museológica. Para os não iniciados, recorda-se que este movimento estético, encetado na década de 1930, tinha berçário no realismo, estes artistas e escritores valorizavam a representação do humilde e do comum, buscavam inspiração no operário ou no camponês, mostravam cenas de família ou exibiam a miséria em que viviam os desabonados. O neorrealismo introduziu uma forte leitura da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação, concentrando no observador da obra de arte uma amplitude social até aí dominada pela expressão artística naturalista, todas as manifestações de arte em pintura, escultura, desenho, fotografia, gravura, ilustração e cerâmica foram base para o trabalho destes artistas. Um dos pontos altos a exposição é o de desmontar o estereótipo de que o neorrealismo era meramente apologético de uma arte ao serviço da luta de classes, uma espécie de Bíblia para fermento revolucionário, no percurso desta exposição de longa duração, o visitante vai ser confrontado com a versatilidade, tanto no conteúdo como na forma.

Aqui estou embasbacado no interior do museu, é sempre novo para mim, ainda por cima a tarde está ensolarada, releva-se este branco de cal como nas casas alentejanas, a luz é esplendente, vou subir, hoje há visita guiada pelos dois curadores da exposição, David Santos e Paula Loura Batista, e bem ilustrativa será nos seus comentários, posso assegurar.
A exposição desdobra-se em secções temáticas, os curadores advertem-nos no início do seu catálogo o que há por detrás deste título escolhido para a exposição: “Inspirados pelo provérbio chinês, podemos dizer que a arte é como uma gota de água que cai no deserto, pois nunca opera revoluções, nem uma ação imediata ou direta sobre a realidade, interpelando-nos, porém, o suficiente para nos fazer refletir, a partir de uma magia que nos espanta e influencia ao longo da vida.” E dizemos que é desejável aqui chegar ou daqui partir com este catálogo possuidor de textos primorosos que nos falam do compromisso dos neorrealistas, do que há de singular neste movimento estético, como ele é substantivo para o conhecimento histórico da oposição ao Estado Novo, como ele igualmente se confrontou, entre modernistas e surrealistas, conciliando o figurativismo e o abstracionismo.

É impossível aqui mostrar o conteúdo das diferentes secções temáticas, mas não resisto a entusiasmar o potencial visitante dizendo-lhe o que vai encontrar. Vai encontrar varinas, ferroviários, marinheiros e pescadores, camponeses, peixeiros, pastores, mulheres de empreita, mondadeiras, rendilheiras, e algo mais, é trabalho, de canastra à cabeça, a tocar o realejo, pescadores arranjando o cordame. E aqui o visitante seguramente terá surpresas neste caleidoscópio laboral, pontificam Júlio Pomar, Lima de Freitas, Alice Jorge, Victor Palla, Nuno San-Payo, é deste que se mostra um dos seus quadros.
Varinas no Cais, por Nuno San-Payo, 1950
Júlio Pomar, Estudos para o Ciclo do Arroz, 1953
A Mulher do Mar, Júlio Pomar, 1956.

Aqui detenho-me um pouco mais, é obra premiada em exposição da Gulbenkian, na temática de gravura, consta um exemplar cá em casa, o meu padrinho era sócio da Gravura, num meu qualquer aniversário mandou-me abrir uma pasta e escolher uma obra à vontade, esta Mulher do Mar tenho-a por companheira, espero por muitos anos e bons, Pomar é um dos meus ícones e o neorrealismo deve-lhe muito, e ele seguramente que ficou devedor a esses tempos de denúncia do Estado Novo.
Isto é o Haiti: escolhendo café, anos de 1940, por Byron Coroneos (?)

A segunda secção é dedicada à paisagem, o visitante será surpreendido por obras inebriantes de um Victor Palla, uma atmosfera de subúrbio de Nuno San-Payo, o porto de Portimão de Querubim Lapa ou uma paisagem descarnada de João Hogan. Daqui se prossegue para outra secção, a família, com obras, entre outros, de José Dias Coelho, Júlio Pomar ou Mário Dionísio. A nova temática é política, como escreve um dos curadores, David Santos: “Inspirada pelas vanguardas político-revolucionárias de meados do século XIX, a arte converter-se-ia num instrumento crítico de incidência direta sob a realidade social, com a intenção deliberada de a transformar.” Esta é a génese do que irá acontecer pelos anos de 1930 e 1940, o profundo compromisso entre a arte e a sociedade, o artista não irá abdicar de falar da guerra, da prisão, da censura, de mostrar de que lado está a operação, etc.
Desenhos originais para o livro Serranos de Mário Braga, por Cipriano Dourado, 1955

Tinha eu 16 anos quando acompanhei a minha mãe numa visita a Coimbra, aqui residia uma das suas maiores amigas, trabalhava igualmente na maternidade, junto à Sé Velha. O chefe dos serviços era o escritor Mário Braga, deve ter percebido que aquele adolescente se maravilhava com a matéria dos livros, e então ofereceu-lhe dois livros, um deles o livro de Contos Serranos onde estão estas ilustrações e outras mais de Cipriano Dourado, foi o princípio de uma grande estima, só morreu quando o grande contista se finou.
Prisioneiros políticos, por José Dias Coelho (1955-1961)
Ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, 1948

Muito impressiva é a secção sobre o retrato, aí o visitante encontrará obras revelando Soeiro Pereira Gomes, Orlando da Costa ou Alves Redol, entre outros. E chegamos ao lazer, com os seus saltimbancos, danças da roda, até um carrossel prodigioso, talvez um remate felicíssimo para esta exposição, aparece uma ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, de Manuel Ribeiro de Pavia.

Que belíssima exposição! Espero ter seduzido o leitor, pode muito bem acontecer que nos encontremos nos tempos mais próximos neste magnífico edifício concedido por Alcino Soutinho.
Saltimbancos, por Nuno San-Payo, 1951
Carrossel, por Rui Filipe, 1960-61
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23921: (In)citações (227): As cheias, estas e as outras (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)




Cheias de 1967 - Vila Franca de Xira - Rua Serpa Pinto

1.
Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS, TSF  (Piche e Bissau, 1970/72), com data de 24 de Dezembro de 2022, a propósito das últimas cheias em Lisboa e não só:



AS CHEIAS (estas e as outras)

Há alguns dias atrás, ocorreram o que agora se designam por “fenómenos extremos” originando, principalmente na zona de Lisboa (mas não só) um conjunto de circunstâncias das quais resultaram avultados estragos em estabelecimentos comerciais, em elevados prejuízos económicos, resultando ainda na morte de uma senhora.

Tudo isto é lamentável, e uma morte que seja, é sempre uma vida humana que se perde estupidamente.

Muito se falou. As televisões dedicaram largos períodos do seu dia a fazerem reportagens sobre as diversas peripécias dos acontecimentos, onde não faltarem as arengas dos “especialistas de tudo” que agora aparecem em todos os canais.

Foi tudo abordado: a construção em leitos de cheias, a impermeabilização dos solos, a falta de limpeza das sarjetas (claro que ninguém se responsabilizou pelo lixo que faz e deita para a rua), a falta de meios de intervenção (com o costumeiro “aqui ninguém apareceu”), o atraso ou ausência de informação sobre a possibilidade de chuvadas fortes (normalmente ninguém liga seriamente aos “avisos laranjas” e outros), etc..

Aqui e ali, de fugida, ainda houve algumas referências às “cheias de Novembro de 1967” mas rapidamente isso foi ultrapassado, diria submergido, pelo imediatismo do dia e pela publicidade das medidas previstas e já em curso, para a construção de túneis e reservatórios tendo em vista resolver, ou pelo menos minorar significativamente, a questão dos problemas de Lisboa. Passou-se então a discutir a paternidade e a antiguidade das soluções e o resto foi-se diluindo, tal qual a água foi vazando….

Aguardo com interesse o que se começará a dizer quando for mais conhecida a origem da tuneladora adquirida para os trabalhos de perfuração do solo com vista à construção dos tais túneis… é que os preconceitos com o material chinês devem dar para inúmeras reportagens!

Entretanto, uma foto dum artigo que um amigo me enviou, despertou a minha atenção e as recordações desses dias, começados a 26 de Novembro de 1967, assaltaram-me novamente.

Essa foto encabeça um artigo da “NiT” (que reproduzo com a devida vénia), a propósito dessas cheias de 67 e mostra a Rua Serpa Pinto, em Vila Franca de Xira. Essa rua era onde o meu pai e o sócio tinham o seu comércio/oficina de mobílias (nesse tempo alguns móveis ainda vinham “em branco”, sendo necessário trabalhá-los) e foi aí que que os “meus trabalhos” começaram. A loja ficava do lado direito, na foto, no piso térreo, onde se vêm pessoas numa varanda, e não posso garantir que o vulto que se vê, empurrando detritos, seja eu, mas também não desminto.

A manhã desse sábado apareceu chuvosa, aquela chuva miudinha, embora persistente e apanhei o comboio para Lisboa bem cedinho, pois tinha aulas às 08:00 da manhã.

A chuvinha continuava, umas vezes mais forte outras mais branda, mas sempre presente. Da parte da tarde começou a engrossar e quando regressei a casa, a Vila Franca, cerca das 19:00, estava desconfortável, foi só tomar banho para aquecer, jantar e, ao contrário do que era habitual, já não saí, indo para a cama muito mais cedo do que o costume.

Cerca das 5 da manhã de domingo tocam insistentemente à campainha a avisar que havia enxurradas, que as ruas eram um mar de água, lama e em alguns sítios com coisas a boiar (automóveis, caixotes, etc.), que a água saía das sarjetas pois a maré estava alta e, salvo erro, eram “águas grandes”. Na Serpa Pinto já tinham subido bastante e estavam a entrar para os estabelecimentos.

Claro que fomos logo para lá, tentar evitar o mais possível os estragos. Na foto já era de dia, o pior já tinha passado, já se estava, naquele local, no “rescaldo” mas, entretanto, começam a chegar as notícias do drama e do desastre (catástrofe) humanitário que tinha assolado a aldeia das Quintas, povoação que viu mais de metade dos seus habitantes perecerem, 89 de 150. Os corpos, resgatados pelos bombeiros foram sendo depositados nas capelas de Vila Franca e da Castanheira e começaram depois a surgir notícias de outros locais.

No dia seguinte, segunda-feira, fui para Alhandra dar apoio a colegas e seus familiares, para ajudar a limpar toda aquela desgraça de que foram alvo. Ali, em Alhandra, a desgraça, em termos de vítimas, não atingiu as proporções que eventualmente poderiam ter acontecido, devido a uma composição ferroviária de mercadorias estar estacionada onde a enxurrada investiu, vinda de São João dos Montes, evitando que tudo aquilo entrasse de supetão pelas ruas e casas da então vila. A atriz e encenadora Maria João Luís estava lá na ocasião, em casa de familiares, e ainda não deixa de ser com um frémito de emoção que exterioriza quando recorda esse episódio.

Durante essa 2.ª feira, o Movimento Estudantil de Lisboa, mobiliza-se para criar brigadas de apoio aos vários locais sinistrados nos concelhos de Vila Franca, Loures, Carenque e zonas de Lisboa, protagonizando (principalmente os alunos de Medicina) uma campanha de vacinação contra o tétano e outras possíveis infeções. Tal voluntarismo naturalmente que não foi bem aceite pelos poderes de então, pois não só lhes fugiu ao controlo como também permitiu um maior conhecimento das realidades, da tragédia em si, dos números das vítimas (coisa que o poder procurou minimizar), das condições de vida de largas franjas da população e foi um motor para a tomada de consciência da necessidade de mudança de muitos jovens de classes menos desfavorecidas que, até aí, estavam a “salvo” desses problemas.

Não é correto comparar coisas apenas parcialmente comparáveis. Tanto naquela altura como agora, choveu muito. A precipitação não foi igual mas, ainda assim, originou muitos problemas. Em termos de prejuízos materiais também há semelhanças. As causas foram diferentes, em alguns aspetos, mas muitos outros houve em que os velhos e eternos problemas estiveram presentes. A maior e principal diferença foi o número de vítimas mortais: 1 agora e mais de 700 então.

Já as questões sociais, não sendo iguais, também refletem semelhanças. Naqueles dias, passei uma noite com outros dois colegas, a imprimir uns panfletos onde se procurava demonstrar causas para a desgraça ocorrida e a apontar responsabilidades e, por via disso e para fazer chegar à população tal documento, saí de madrugada, de camioneta da carreira para Alenquer, onde fui fazendo a distribuição até já ser dia e perceber que a GNR estava a montar cerco para chegar ao autor da distribuição. Tendo percebido isso, tomei precauções, passei sem percalço pela barreira formada, tomei a camioneta de regresso a Vila Franca e essa aventura terminou sem consequências.

Portanto, o que se passou há 55 anos foi, em termos de vítimas, muito mais grave do que agora mas não se deve menorizar os atuais acontecimentos pois eles refletem a inércia das autoridades, dos poderes instituídos, a incapacidade ou falta de vontade política de enfrentar e resolver os problemas.

Por isso aqui deixo estas reflexões (e informações) que espero não sejam passíveis de repetição daqui a algum tempo (porventura pouco), devido à maior frequência e amplitude com que alguns “fenómenos extremos” vêm ocorrendo.

Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF

____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23916: (In)citações (226): "O pedinte da berma da estrada" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

sábado, 6 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21975: Os nossos seres, saberes e lazeres (439): Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Tinha saudades de percorrer a pé Vila Franca, sentir o vetusto, passear junto do Tejo e visitar núcleos artísticos tão interessantes, impressiona-me imenso a arquitetura da Fábrica das Palavras e do Museu do Neorrealismo, que conheço desde a primeira hora, visitei-o de alto a baixo na companhia de David Santos, um museólogo de gabarito, em qualquer parte do mundo. Perguntei pela atual diretora, Raquel Henriques da Silva, uma investigadora de truz, não estava, fica para a próxima. Sentei-me num jardim como igualmente me espequei numa varanda na Fábrica das Palavras, sempre com textos de Alves Redol e a literatura da guerra da Guiné do Álvaro Guerra a fazerem-me companhia. Deste pensei num romance posterior, Café Central, vou revê-lo antes de preparar o próximo passeio, sempre em segurança, ditame máximo da pandemia.

Um abraço do
Mário


Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa

Mário Beja Santos

Na roda da fortuna, aconteceu ter relido dois romances de Álvaro Guerra relacionados com a ambiência vilafranquense, li igualmente Avieiros, de Alves Redol, se bem que o seu livro que eu mais revisito é Barranco de Cegos, por minha conta e risco a sua obra-prima. Agora que sou portador de um cartão em que pago 20€ e posso visitar 19 concelhos da área metropolitana de Lisboa, ponderei uma visita segura a Vila Franca de Xira, estudei o que me interessava ver, almocei ao meio-dia, apanhei comboio em Roma-Areeiro, transbordo para o comboio do Carregado, entrei neste santuário de campinos ainda muita gente amesendava. A estação da CP é mais do que bonita, espelha aquela linha arquitetónica concebida pelo arquiteto Raúl Lino que acreditava na existência de uma casa portuguesa, com mansardas muito nossas, arrebiques nos telhados, varandas quase medievais. Ali fiquei especado a dimensionar o todo, e fui bisbilhotar a azulejaria de Jorge Colaço, um primor que se vai estendendo por muitas estações, havia o cuidado de azulejar tendo em consideração o local, veja-se a tipicidade do que ele forjou para esta estação, e digam lá se não é um regalo para os olhos.
Preparava-me para visitar o Núcleo de Arte Sacra que dá pelo nome de Núcleo do Mártir Santo, na Igreja de S. Sebastião, fundada em 1576 pelo dito jovem monarca, por voto à Peste Grande de 1569. Veio o Terramoto e foi reconstruída. Entre a estação e o templo religioso já passei por ruas de boa escala, vivendas familiares, outras rés-do-chão e primeiro andar, aqui e acolá a arquitetura dos anos 1950 e 1960, com todo o desengonço da escala. Não vi a Arte Sacra porque era terça-feira e só abre de quarta a domingo, postei o olhar na pedra de armas de D. João VI proveniente do antigo Palácio dos Sousas (Palácio da Vilafrancada, terá sido aqui que D. Miguel preparou o seu primeiro golpe que D. João VI ainda pôde travar).
O Museu do Neorrealismo tem farta história, evoluiu a partir de um centro de documentação, tive a dita de ir conhecendo o desenvolvimento graças a um companheiro de colégio, o António Mota Redol, a quem a cultura portuguesa muito deve. É um edifício inspirador, tem a assinatura de Alcino Soutinho, e o seu interior é todo do século XXI, percorrem-se aquelas linhas perfeitas, sobe-se ao terceiro andar e é sempre um gosto rever a exposição permanente intitulada “Batalha pelo conteúdo”, está ali o elementar de como nasceu este movimento de Artes Plásticas, influente entre as décadas 1930 e até ao final da década e 1950, abarcando todos os géneros literários, diferentes artes plásticas, ali se registam o que mais determinante se escreveu e se faz justiça a nomes como Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Virgílio Ferreira, Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa ou Alice Jorge. Por ali andarilhei, estava a ser montada uma exposição, desci ao rés-do-chão para visitar uma exposição alusiva à Biblioteca Cosmos, passei de raspão pelo auditório, tomei um café e fui namorar o recheio da livraria. Abençoada visita!
Museu do Neorrealismo, pormenor da fachada
Fachada lateral com fotografias de expoentes literários neorrealistas: Alves Redol, Carlos Oliveira, Manuel da Fonseca e Mário Dionísio
As linhas puras do interior do Museu do Neorrealismo, concebidas por Alcino Soutinho
Uma homenagem a um dos maiores artistas plásticos do século XX, que andou no neorrealismo, Júlio Pomar
A beleza da organização dos interiores do Museu

Chegou a hora de ir visitar o Museu Municipal, sedeado numa casa apalaçada setecentista, que não foi concluída, marcada por algum barroquismo. Consta que já foi tribunal, cadeia, escola, coletividade e agora é um museu. A pandemia alterou a vida cultural, vinha à espera de me deliciar com as coleções de pintura e gravura, altamente interessantes e com peças de mérito, vinha para ver uma exposição sobre o Oculista Nunes, uma das mais emblemáticas lojas de ótica do concelho, os herdeiros doaram esses objetos de trabalho que podemos agora admirar desde focómetros passando por óculos de ensaio para lentes astigmáticas, esferómetros e cravadeiras de ourives e ótica. Mas a grande surpresa foi a de que quando o imóvel foi recuperado e adaptado a espaço museológico convidou-se o pintor João Ribeiro a pintar 44 telas que foram colocadas junto ao arco da antiga igreja dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo. Tirei imagem desta bela porta vista do interior do museu. Olhei para o relógio, quero regressar no sentido inverso ao tráfego, hesito se não devo ir ao Celeiro da Patriarcal ver uma exposição de desenho de humor ou se devo ir diretamente para a Fábrica das Palavras, decidi prontamente por este itinerário porque a nova biblioteca, inaugurada em 2014, está junto do Passeio Ribeirinho, beija o Tejo e sugere que se volte em breve para ir a passear pelo menos até Alhandra, sempre com a campina exuberante, terreno fértil ali não falta. E fui maravilhar-me com a obra do arquiteto Miguel Arruda. Ora vejam.
Pus-me à varanda a ver o Tejo correr para o oceano, já congemino novo passeio, ainda tenho uma exposição do desenhador de humor António para ir visitar, chama-se entrelinhas. Como escreveu Arnaldo Saraiva a propósito deste desenhador que é presença permanente do Expresso: “As produções de António mostram bem que nenhum rosto é o que julgávamos ver ou desejávamos ver; há sempre um desconhecido ou um estranho onde julgávamos encontrar o familiar e o ‘normal’. E o que surpreendemos nos outros talvez seja o que ainda não surpreendemos em nós”. Saio da Fábrica das Palavras e contemplo este Álvaro Guerra de quem não me importaria vir um dia aqui falar da sua literatura da Guerra da Guiné, de que foi mestre e esteve entre os primeiros dos primeiros a descrever a tragédia que nós vivemos e que não esquecemos.
A luz começa a empalidecer, está na hora de regressar, desta feita despego-me do lado do Tejo, e o comboio depois inflete para Roma-Areeiro, sei que vou voltar depressa, e com muito prazer.
Fernando Pessoa
Álvaro Guerra
Álvaro Guerra a contemplar o Tejo, sempre com um sorriso
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21952: Os nossos seres, saberes e lazeres (438): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): (Mário Beja Santos)