sábado, 18 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O avô sentiu-se feliz em passear-se por tal museu, tão cheio de olhares sobre a História de Portugal no plano artístico. Um trabalho que se impunha que a neta elaborasse, impressões de uma viagem e o significado deste ou daquele museu, deu livre curso a um dia bem passado olhando obras-primas de barristas, diferentes telas com motivos religiosos, até se falou um pouco sobre as doações de Calouste Gulbenkian e a conversa com duas restauradoras que ali prestam serviço em torno dos chamados Painéis do Infante deixaram a menina um tanto dececionada, como explicar em relatório que não se sabe ao certo quem pintou aquela obra-prima ímpar, quem a encomendou, quem são aquelas figuras, o significado das relíquias, sente-se que há ali por detrás uma influência flamenga, mas o mistério perpetua-se, é bem provável que não haja cabal chave explicativa, mas por ali ficamos estarrecidos, e muito feliz me senti com aquela curiosidade da jovem andando à volta da Custódia de Belém, mirando-a de todos os ângulos, não escondendo a plena admiração. Foi um dia em cheio, só espero que o trabalho da neta, porventura ajustadamente ilustrado, mereça o aplauso da turma.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2)


Mário Beja Santos

Feita a pausa, e com o estômago reconfortado, lançamo-nos nesse prato de substância da grande pintura internacional, o quadro de Bosch anda em exposição, mas advirto a neta que preparei uma seleção de telas que vale a pena ela pôr em relatório. Vamos começar.
S. Jerónimo, por Albrecht Dürer, século XVI

É um Dürer muito especial, ficas a saber que este alemão é o autor daquela gravura do rinoceronte que tu tanto aprecias. Quanto ao tema, versa uma questão central da Doutrina cristã, advertência sobre a vaidade, tudo vai acabar em ossadas, o melhor é fazer bem aos outros e amá-los como nós gostaríamos que os outros assim nos tratassem.
Retrato de Lucas Vosterman, o Velho, por Anton van Dyck, c. 1630

Este flamengo, habilíssimo retratista, enxameia vários museus europeus, gente poderosa, pela certa, de religião severa, também pela certa, o leitor que compare este van Dyck com outro retrato mais abaixo de Jacome Ratton, de Thomas Lawrence, veja-se a perícia no domínio total do espaço, o contraste entre o fundo e a figura, aquela barba fulva e aquele bigode retorcido, o rosto dominante e o chispar do olhar, de quem nada teme. Que grande retrato!
Natureza-morta com frutos, Antonio Pereda y Salgado, século XVII

Gosto muito de comparar Pereda com a nossa Josefa de Óbidos, ponho sempre esta a ganhar, mas tenho que admitir que Pereda tinha uma capacidade na reprodução dos elementos da natureza-morta como poucos outros dos seus contemporâneos, veja-se a linha da mesa, a faca e o fruto cortado, os utensílios cuja forma em nada obstruem a visão dos produtos da Natureza. Dá gosto estar aqui diante de Pereda e gabar-lhe o seu talento.
Depósito de Armas, David Teniers, século XVIII

Tenho sorte de conhecer uma boa parte da obra de David Teniers, em museus belgas. O que mais me cativa neste “Depósito de Armas” é a solução que o mestre encontrou no jato de luz à esquerda que nos permite ver com absoluta nitidez quem figura em primeiro plano e numa extraordinária escala, é preciso ter mão de soberbo artista para pôr tanta figura em curto espaço e com o domínio absoluto do claro-escuro.
Obras de Misericórdia, pintura de Peter Brueghel, o Jovem, século XVII

Há uns bons anos, tive o privilégio de ver em Bruxelas uma exposição sobre a Firma Brueghel, foi uma autêntica fábrica que durou gerações, clientela abastada cria cópias de telas passadas, trocavam-se ou afeitavam-se alguns pormenores e o cliente ficava regalado. Brueghel pinta exemplarmente o mundo do seu tempo, velhos e novos, gente com saúde e aleijados, cenas brejeiras, bêbedos delirantes, folias em festas de casamento, aqui o cliente encomendou algo de bastante comedido e vemos em primeiro plano agasalhar quem vinha nu e dar pão a quem precisa. Não escondo que prefiro Brueghel, o Velho, mas rendo-me a esta capacidade da fábrica e ao génio de pôr tanto movimento e colorido em tão curto espaço.
Homem Cozinhando, Jan Steen, século XVII

Há uma razão especial para ter completado demoradamente este homem em preparos de cozinha. Fui amigo de um notável artista, de nome Rolando Sá Nogueira, alguém que foi um porta-estandarte da contemporaneidade pelos temas a que aludiu, desde o consumo à questão racial. Ouviu frequentemente clamar que Jan Steen era um dos santos do seu culto, e neste preciso momento aqui o recordei, sabendo amargamente que não há amigos que possam substituir os amigos que perdemos.
Doação de Leão do período ptolemaico (Egito) feita por Calouste Gulbenkian ao Museu de Arte Antiga
“General William Keppel, Storming the Morro Castle”, Pintura de Joshua Reynolds, século XVIII, doação de Calouste Gulbenkian.

O Sr. 5 por cento do petróleo quis manifestar o seu reconhecimento a Portugal doando algumas das suas obras de arte, abrangendo pintura, escultura, artes decorativas e algo mais. Ele adquirira, nomeadamente no período londrino, um conjunto de obras de arte de que se ufanava, caso do Turner exposto no museu com o seu nome, quadro a óleo de irreprimível beleza. E ofereceu ao Museu Nacional de Arte Antiga um pequeno conjunto de telas britânicas de incontestável valor, é o caso deste quadro de Joshua Reynolds de que nos atrevemos abaixo a dar um pormenor que revela a altíssima perícia do mestre.
Quadro de Jacome Ratton, pintado por Sir Thomas Lawrence, faz parte da doação Gulbenkian.

Jacome Ratton viveu na Rua do Século, numa casa apalaçada que é hoje o Tribunal Constitucional. Grande empreendedor, vamos vê-lo envolvido em negócios de aviação em Tomar. A minha conversa com a neta tinha a ver com o contraste de cores e luminosidade, um fundo um tanto neutro que assegura a revelação da indumentária austera, Ratton olha-nos um tanto enviesadamente, todo ele é imponência, um semblante de triunfador.
Este quadro de Andrea Mantegna, um dos nomes mais sonantes do primeiro Renascimento italiano, está aqui exposto por empréstimo, vem de Verona, é uma tela pintada a têmpera de ovo, a Virgem e o Menino rodeados por figuras magnas da Igreja, parece levitar, a Virgem e as figuras insígnias trajam roupa recamada que acabam por dar a ilusão de que vão ascendendo acompanhando na ascensão a Virgem e o Deus Menino. É de ficar estupefacto com o controlo do comprimento, altura e profundidade e a subtileza que nos permite questionar que o conjunto se encaminha para os céus.
É um momento crucial da visita, estamos diante dos chamados Painéis do Infante, a neta quer saber os porquês de tanto mistério. Conto-lhe como dois homens de letras encontraram casualmente esta ímpar obra-prima da pintura europeia do século XV abandonadas em S. Vicente de Fora, a série infindável de teses e teorias desenvolvidas à volta dos painéis, houve até gente profundamente desavinda, alguém se suicidou, e estava nesta lengalenga que ia aguçando a curiosidade da neta, quando saíram duas senhoras lá dos fundos do restauro, não tive pudor em interpelá-las, vejam as senhoras que estou aqui a procurar dizer à minha neta que não se sabe ao certo se os painéis são de Nuno Gonçalves, onde foram pintados, em que templo foram expostos, se estão completos e até o significado das figuras, as próprias relíquias são altamente contestadas, não se sabe se a figura central é S. Vicente, andou-se a dizer que a figura do Infante D. Henrique é indiscutivelmente aquela com o seu chapéu peculiar, as senhoras sorriram e simpaticamente disseram à menina que está tudo em discussão mesmo com a espectrografia não se consegue apurar nada em concreto. O que para o caso importa é que não há na pintura europeia do século XV esta mole humana representada com tanta determinação, parece mesmo que Portugal entrara numa viragem, e o seu vigor aqui ficou plasmado para todo o sempre. É claro que a neta não ficou satisfeita, que resposta para tudo, e a História muitas vezes troca-nos as voltas.
A visita caminha para o fim e vejo a neta interessada numa escultura, toca de ver a legenda, é do evangelista São Marcos, o seu autor é Cornelis de Holanda, nem falta o leão a seus pés, é a defesa da Doutrina, o respeito pela Palavra.
Nunca resisto a contemplar este Cristo, muito mais do que a dor e a transfiguração é a proporção e o equilíbrio das formas, e quem aqui o fixou, em lugar de honra, sabia as regras de ouro da museografia, na ausência da cruz escolhe-se um ângulo que admite que o Cristo Homem já partiu para o Pai.
Antes de partir, no andar inferior, levo a neta a contemplar a Custódia de Belém, ela que é cética ou no mínimo circunspecta quando lhe mostro os meus objetos classificados como artes decorativas, aproximamo-nos deste resguardo em acrílico e peço-lhe a atenção para os pormenores, onde é que tu alguma vez viste esta renda, esta adoração de figuras ascendentes, a elegância das proporções, até ao pináculo e o somatório de todas as razões e crenças, que é a Cruz de Cristo.
Perto da saída, no alto da escadaria, está esta fonte barroca como não conheço outra igual, fizeram bem pô-la sobre uma peanha, olha, neta, para o tornear dos pés, a delicadeza de todo o corpo da fonte e a solução encontrada para fazer subir o corpo alteado que termina sob forma de voluta. Posso confessar que a neta estava verdadeiramente impressionada.
Esta sim, é a última imagem da nossa itinerância, três restauradoras limpavam este imponente quadro escultórico, a deposição de Cristo. Meti conversa, explicaram que estava tudo numa sujidade inimaginável, veja estas cores, há quantos anos ninguém as vira como quando foram pintadas, este conjunto não é uma grande beleza? E com a saudação e admiração por tão belo trabalho aqui nos despedimos até à próxima viagem.
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Nota do editor

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