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sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:

Queridos amigos,

O especial interesse desta edição é de incluir uma versão revista da tradução original do crioulo para o português e comentários de investigadores de craveira. O contexto da preparação deste seminário de quadros, que aconteceu em Conacri de 19 a 24 de novembro de 1969, é muito bem apresentado por Carlos Cardoso e Raúl Mendes Fernandes, o PAIGC vivia enormes tensões e a política de Spínola cavara divisões profundas nesses quadros, ao relevar que o desenvolvimento que se pretendia na Guiné era para os guinéus, num pleno respeito pelas tradições e pela melhoria das condições de vida. Foi uma ação psicológica que deu frutos e face à qual Cabral encontrou o seu golpe de asa para mobilizar duas gerações de quadros. Leem-se estas intervenções e é indubitável o vigor do seu génio, estamos perante o construtor de um país.

Um abraço do
Mário



Quando um líder revolucionário, posto à prova, lembrou a verdade da luta do PAIGC

Mário Beja Santos

Esta edição revista e comentada de uma obra basilar para entender o pensamento e ação de Amílcar Cabral, edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, "Análise de Alguns Tipos de Resistência", 2020, aparece muito bem contextualizada por dois investigadores que procedem a uma leitura analítica sobre tudo o que Cabral disse no Seminário de Quadros de novembro de 1969, em Conacri, dirigindo-se a um conjunto bastante expressivo de participantes, são eles Carlos Cardoso e Raúl Mendes Fernandes. Vale talvez a pena, por isso mesmo, sintetizar as suas observações.

Era um período de graves tensões internas dentro do PAIGC, a direção política e o seu líder encontravam-se numa situação de grande fragilidade, Cabral era contestado, havia o diferendo entre cabo-verdianos e guineenses, rumores e intrigas, o inevitável cansaço dos combatentes devido à longa duração da guerra. E as inovações introduzidas pelo novo governador, António Spínola: campanha de guerra psicológica devastadora, arvorando a causa do desenvolvimento sempre em prol dos guinéus; a africanização da guerra formando uma tropa de elite, os Comandos, seriam o embrião das Forças Armadas da Guiné independente; a propaganda para uma Guiné autónoma, em que as etnias seriam ouvidas regularmente no Congresso do Povo, tudo numa estreita aliança com o chefado tradicional e sobrepondo-se a qualquer tensão religiosa, as peregrinações a Meca ganham insistência. Tudo era difundido e ouvido tanto em Conacri como no mato.

Para rebater quaisquer dúvidas sobre a natureza da luta do PAIGC, Cabral organiza um conjunto de exposições visando a consciencialização dos militantes do PAIGC, dentro de uma lógica que os participantes se iriam transformar em multiplicadores. Como observam estes dois investigadores, a escolha dos participantes procurava uma combinação de duas gerações. 

“Amílcar Cabral tinha uma conceção de luta de longa duração. Esta conceção contrariava as expetativas dos chefes de guerra que ambicionavam uma guerra de curta duração. O Seminário de Quadros foi, por todas as razões apontadas, um fórum estratégico crucial e as intervenções sobre a forma de resistência podem ser consideradas o seu núcleo central”

O que se apresenta nesta edição é uma tradução para português de um conjunto de palestras em crioulo proferidas entre 19 e 24 de novembro.

Ressalta, antes de mais, a assombrosa comunicação pedagógica, com conceitos apresentados de forma simples e sempre com exemplos, nunca descurando a complexidade da explicação. A ideia de transformação histórica longa ligada à luta prolongada tinha a ver com a estratégia de longo prazo, Cabral não tinha ilusões que era imperioso haver tempo para a transformação social, ele próprio ao longo de toda a sua narrativa aponta sem ambiguidades múltiplos erros no seio dos militantes do PAIGC, é severo com quem rouba, com quem maltrata, com o quadro das superstições, por exemplo. 

“Cabral chamava a atenção dos seus camaradas para a necessidade de ter sempre em mente a situação da luta em cada momento. Era, por assim dizer, o bê-á-bá da conduta do militante, tal como ele o concebia”

E daí a perspetiva de “pensar para agir e agir para poder pensar melhor”, uma consigna positiva para estimular o trabalho político, a luta contra o analfabetismo, a intervenção sem medo nos debates, o respeito pela dignidade da mulher e temos depois o corolário lógico de que a resistência é política, é armada, é económica, é cultural, faz apologia a pensar pelas próprias cabeças, a privilegiar a independência de pensamento e as redes de participação. E concluem: 

“Ele continua a fornecer instrumentos úteis para a compreensão de problemas de diferente natureza (política, económica e cultural) enfrentados hoje pelas periferias ou semiperiferias, fios de esperança indispensáveis aos muitos desafios que o atual processo de globalização propõe para as sociedades".

Em torno do conceito de resistência, Cabral vai constituir um poliedro, lança advertências que continuam prementes, muito provavelmente descuradas pelas elites atuais: 

(,,,) “Não podemos aceitar na nossa terra os abusos e os privilégios de grupos ou grupinhos, se de facto queremos libertar o nosso povo. Não vãos libertar o nosso povo só dos colonialistas, mas de tudo quanto o prejudique no caminho do progresso. Temos de eliminar a ignorância, a falta de saúde, e toda a espécie de medo, gradualmente. A maior pressão que existe sobre um povo é o medo. Medo de passar fome, de não ter trabalho, de doenças, de pancada, de ser deportado para S. Tomé, ser preso injustamente. Mas ainda mais, medo de curandeiros, dos que deitam sortes, da conversa dos mouros, do irã, do mato escuro, dos raios, dos relâmpagos. Um povo que tem medo é um povo escravo”

Define a resistência política, há que acabar com todos os abusos, mas também isolar o inimigo.

Afirma-se contra a brutalidade e os horrores da guerra gratuitos: 

“No começo da nossa luta, houve camaradas que nos sugeriram cometer certas atrocidades, mas recusámos. Na nossa luta não há dessas coisas que se passaram noutras terras em África, como matar mulheres e crianças brancas só porque são brancas. Queremos fazer uma resistência política para servir o nosso povo, não queremos que o nosso povo seja sanguinário”

Dirá ao longo de todas as suas intervenções verdades muito incómodas, faz permanentemente apelo aos processos de autossubsistência, fazer-se o reconhecimento daqueles que trabalham a terra e simultaneamente combatem, exige um pleno respeito pela forma como se trata a ajuda internacional, desde a gasolina aos medicamentos, quando necessário ele próprio faz autocrítica, um exemplo: 

“Um erro grave que cometemos na nossa terra foi não cobrar imposto a ninguém depois de a sua área ser libertada. Isso foi um erro. Nós devíamos ser capazes de, depois de libertar uma área como Cubucaré, estabelecer imediatamente o imposto que o povo devia pagar. O imposto, não sendo em dinheiro, podia ser em produtos, para o nosso povo não perder o hábito de pagar impostos e não pensar que, quando tomarmos a nossa terra, não vai haver impostos. Não há terra nenhuma que possa avançar sem pagar impostos”.

É um permanente apelo à mobilização, recorre a fórmulas de orgulho cultural, adianta que a luta que se trava é ela própria o sedimento de uma cultura nova, lembra aos militantes que essa cultura deve desenvolver-se numa base científica, sem crendices. Apela à pontualidade, à discussão, exalta a língua portuguesa. E espraia-se sobre a resistência armada, não poupa as tentações do neocolonialismo e o ponto mais elevado desta pedagogia é estar sempre a apontar para o futuro, demorasse a luta o tempo que fosse necessário, que todos advertissem as populações e multiplicassem a esperança que se estava a construir a História do nosso tempo, havia que manter acesa a esperança de que amanhã se irá viver no progresso.

Repete-se que é um documento basilar para entender o pensamento e a liderança de Cabral e como observam neste livro os seus comentadores é bem patente a pertinência atual da sua narrativa tal como ele expôs em Conacri, em tempos particularmente turvados.

De leitura obrigatória para quem queira entender o que foi o sonho daquele PAIGC que morreu com o seu líder carismático.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24523: Notas de leitura (1602): "Aldeia Mágica", por Alexandre Faria; Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24280: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte VI: Sexo, álcool e amuletos... A maldição ou a premonição do Amílcar Cabral ?..."Só nós somos capazes de destruir o Partido" (Boké, Guiné-Conacri, finais de 1970)


Guiné-Bissau (sic) > PAIGC > s/l > Março-abril de 1974 > Mulher com criança /Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 29 - Life in the Liberated Areas, Guinea-Bissau - Woman with child - 1974.tif

Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)






1. A seguir à invasão de Conacri por tropas portuguesas e forças da oposição ao governo de Sékou Touré, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde), Amílcar Cabral (AC) reuniu as cúpulas do PAIGC em Boké, na Guiné-Conacri, próximo da fronteira sul com o território da então Guiné Portuguesa, em data que não podemos precisar mas sabemos, pelo testemunho de Luís Cabral (LC) ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984, 464 pp.), que foi ainda em 1970, por volta do final desse  ano. (*)

AC aproveitou para fazer o balanço da "bárbara agressão do inimigo contra a capital da República da Guiné", segundo o relato do seu mano, LC (pág. 373).

Difícil para ambos  era compreender "a traição de muitos dos principais colaboradores do presidente Sékou Touré" (sic) (pág. 374). 

Naturalmente o AC não revelou,  aos seus  colaboradores mais próximos,  as tremendas dificuldades  (económicas, politicas,  sociais, etc.) por que estava a passar a Guiné-Conacri nem ele alguma vez denunciou a natureza ditatorial do regime de Sékou Touré. Obviamente, não iria cuspir na sopa nem dizer mal dos seus hóspedes.... e aliados. 

Amílcar Cabral (e o seu estado-maior) estava nas mãos do "camarada" Sékou Touré (em relação ao qual, de resto, havia um temor reverencial, visível na maneira como o LC se  referiu a ele da primeira vez que o conheceu, à distância, chegando na sua viatura presidencial ao aeroporto da capital).

Mas não deixou, o AC,  de avançar com a sua própria teoria espontânea  sobre os riscos que estava a correr o próprio PAIGC, cujas sementes de destruição não eram exógenas (ou seja, vindas do exterior) mas endógenas (geradas a partir de dentro), insistindo repetidas vezes que "só nós" (sic) (...) "estávamos em condições de destruir o Partido" (pág, 375). Uma premonição, quiçá, do seu próporio assassinato dois anos mais tarde, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973, e onde a participação do Sékou Touré, como autor moral,  está  ainda por esclarecer, bem como a de dirigentes do PAIGC como o Osvaldo Vieira, primo do 'Nino'.

E contou, o AC, para gáudio geral da audiência,   a história ou a fábula do bode que, numa pequena terra se havia celebrizado pela sua extraordinária capacidade de procriação, até ao dia em que o presidente do município local se apressou a comprá-lo e instalá-lo num estábulo-modelo, promovendo-o a "bode municipal"...

A partir daí, bem comido e melhor dormido, o bode desinteressou-se totalmente das cabras. Quando o seu antigo proprietário, indignado, lhe pediu explicações, face às reclamações do seu novo dono (o presidente do município). o bode limitou-se a responder, cinicamente: "Agora sou funcionário público." (pág. 376).

A mensagem que o AC quis transmitir  aos seus "generais", depois da prova de fogos  que fora, para todos aqueles que  lá estavam, a invasão de Conacri e a tentativa de derrube do regime de Sékou Touré, era clara: ninguém nos destrói,  a partir de fora, a começar pelos "tugas", se continuarmos de mãos dadas a certar fileiras... Mas nós podemos destruir-nos uns aos outros...

Foi nesta reunião de Boké que apareceu, pela primeira vez, a figura do Partido-Estado. Foi criado o Conselho Superior de Luta no seio do qual era eleito o Conselho Executivo da Luta (pág. 377). Foi também nesta reunião que passaram a fazer parte das Forças Armadas, "as forças regulares - o Exército Popular, a Marinha Nacional e, mais tarde, a Aviação Militar" (pág. 378). Por seu lado, "a Guerrilha e a Milícia foram juntas numa única organização, as Forças Armadas Locais (FAL)", cabendo a sua direção ao Comité Nacional das Regiões Libertadas (sic).

E chegamos ao ponto que nos interessa. No final da reunião, o AC punha mais uma vez o dedo na ferida, manifestando as suas reiteradas preocupações com a "vida pessoal dos quadros e dirigentes do Partido" (pág. 378).

Escreve o irmão, LC:

"Sei bem quanto era doloroso para o Amílcar ter de abordar sempre esta questão delicada cuja origem nascia do comportamento de alguns dos dirigentes da luta" (Negritos nossos)...

E o LC exemplifica, com algum prurido, duas condutas altamente perniciosas para um partido que se pretendia "libertador": 

(i) "o consumo exagerado da bebida alcoólica" (pp. 378/379); 

e (ii) a prostituição, o assédio sexual, a poligamia (pp. 380/383), 

e (iii) implicitamente a cultura do "cabra-macho"... (Claro que ele nunca usa as palavras prostituição, assédio sexual e cabra-macho..).

As questões do álcool e do sexo eram extremamente incómodas e até fracturantes num  "partido revolucionário", de inspiração marxista, como o PAIGC, que se queria exemplar, frugal, puritano, impoluto. 

Os dirigentes e os quadros sabiam quem eram os visados pelas palavras de AC. Um deles seria o Osvaldo Veira, grande apreciador da "água de Lisboa", acrescentamos nós. 

No caso do álcool, LC conta que havia dirigentes que se davam ao luxo de ter os seus "furadores" privativos (!) para extraírem o vinho de palma, bebida que rareava no mato tal como as bebidas alcoólicas que eram importadas (e disputadas em Conacri).

A questão da "violência sexual" (outra expressão que nunca é usada, por falso moralismo) era outro grave problema que já vinha de trás. Diversos "senhores da guerra" haviam sido denunciados, julgados e condenados à morte, em Cassacá, no I Congresso do PAIGC, em fevereiro de 1964, acusados de brutais abusos sexuais e atrocidades para com a população, e nomeadamente para com as  raparigas e outras mulheres jovens (mas também contra os que os que se opunham a estas práticas horrendas). 

LC só volta a referir a persistência deste problema por ocasião da reunião de Boké, em finais de 1970.  Isto significa que ele nunca fora resolvido ao longo daqueles anos todos...

"Todos os homens normais gostam de mulheres, dizia ele [ o Amílcar Cabral] (...). No auge do seu desespero em ter de abordar esta questão uma vez mais, o Amílcar acrescentou, elevando ligeiramente a voz: 'Se pensam que são mais machos do que nós, estão enganados, se quiserem podemos ir ao quarto ao lado e fazer a experiência! Temos as nossas mulheres, a nossa família, e sabemos a responsabilidade que nos cabe nesta fase da vida do nosso povo`".(...) (pág. 382). 

O que estava em causa era a cultura, então dominante no seio do PAIGC, do "cabra-macho", de peito feito às balas, de "peito vermelho", aguerrido, corajoso, mas também violento, machão, predador sexual...

Umas terceira preocupação do AC (e do LC) era o uso e abuso de amuletos, já abordado nas pp. 166/167. LC revela que os dirigentes do PAIGC, no mato, "tinham sempre um combatente muito jovem, que transportava,  num saco, os variados amuletos a que cada um tinha direito, dada a sua condição de chefia" (pág, 166). 

No caso do 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate,  sem o seu arsenal de amuletos, e de pelo menos dois ajudantes (!),  que os carregavam, além de um bigrupo reforçado,  segundo o testemunho (suspeito) do Bobo Queita (que não gostava dele, e ainda mais depois do golpe de Estado de 14 de novembro de 1940).    [ In: Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita". Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197.)

O AC, de formação católica, filho de ex-padre e professor primário (todavia, sexualmente muito promíscuo, com muitos filhos de várias mulheres), não apreciava também estes "aspectos menos racionais" do comportamento dos seus homens... Mas teve que engolir este e muitos  outros sapos (como, por exemplo,  a "mutilação genital feminina" praticada pelos povos "islamizados" da Guiné: não me lembro de ele alguma vez se ter pronunciado, ou pelo menos escrito, sobre este problema, ele que, de resto,  era pai de duas meninas, filhas de uma portuguesa... que foi alegadamente o "amor da sua vida").

"O amuleto - mezinho, como lhe chamávamos - era uma fraqueza que foi transformada em força pelo Partido" (pág. 166). Quando ainda não havia armas para se defenderem, "o Amílcar entregava-lhe(s) o dinheiro necessário para mandar fazer o mezinho - algumas citações do Corão, escritas em caracteres árabes" (...), amuleto que depois era "cuidadosamente forrado de cabedal, e que tinha a virtude de reforçar no combatente a confiança em si próprio, trazendo-lhe a confiança psíquica indispensável ao bom cumprimento da sua missão (pág. 167).

Umas páginas à frente, LC conta a história caricata de um grupo de estrangeiros, o sociólogo sueco Rolf Gustavson e uma equipa de cineastas e fotógrafos franceses, constituída por Michel Honorim, Giles Caron e Michel Carbeau" (pág. 385). Os franceses vinham do Biafra e queriam ver cenas de guerra e sangue...

Isto passa-se entre Farim e Jumbembem, quase nas barbas das NT. Face ao risco de serem apanhados por uma emboscada das tropas portuguesas, LC deu ordem à escolta, comandada por Bobo Queita, para fazer uma "retirada forçada" até à fronteira... Não tendo nada de interessante para filmar (nem sequer umas tabancas em ruínas, carbonizadas pelo napalm dos colonialistas... ), "o chefe da equipa francesa disse em voz alta que éramos um bando de mentirosos" (sic).

Apesar da desculpa do cansaço físico e da tensão acumulada, o LC é obrigado a ameaçar confiscar-lhe as películas há utilizadas. Resultado: 

"Do documentário que devia ser feito das filmagens de Michel Carbeau, pelo realizador Michel Honorim, chefe da equipa, nunca tivemos notícias" (pág. 387). 

Restou o fotógrafo Gilles Caron que terá feito, mesmo assim, algumas belas imagens dos sítios por onde passou...

Destes (e doutros nomes que andaram pelas "áreas libertadas" a documentar a luta do PAIGC) há escassíssimas referências na Net: vd. Journal of Film Preservation, 77/78, october 2008.

sábado, 15 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)



Guiné > s/l > 1ª CCmds Africanos > c. 1970 > Da esquerda para a direita, em pé, os então alferes graduados 'cmds' Saiegh e Sisseco, o major inf Leal de Almeida, o tenente graduado 'cmd' João Bacar Jaló e outro alferes. Em baixo, o ex-fur mil pil Ramos, e o alferes graduado 'cmd Justo Nascimento. Foto reproduzida no livro, pág. 167. A foto é do Jorge Caiano, ex-1º cabo especialista, melec/av (Bissalanca, BA12, 1969/70), a residir desde 1974 no Canadá (Poste P3897). 

Foto (e legenda): © Jorge Caiano (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.

[Floto à direita > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual vai participafr

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  



Guiné > Região de Gabu > Carta de Paunca (1957) ( Escala 1/50 mil > Posição relativa de Paunca e do rio Xaianga (ou Geba Estreito) que vem do Senegal, atravessando a fronteira no marco 74

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas fa Guiné (2023)



Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV:  
 

As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas


Em setembro
 [de 1970] , na última saída da companhia para os lados do rio Xaianga, quando estávamos a regressar a Paunca [1], um guarda da administração civil, de nome Sore Bombeiro, viu-nos passar nas viaturas. Esse homem viveu muitos anos com o capitão João Bacar Jaló, na vila de Catió. Quando me viu, fez-me sinal para eu ir ter com ele.

Mal a coluna entrou no aquartelamento de Paunca, fui procurá-lo e vi-o a falar com um homem também meu conhecido, o adivinho Mamadu Candé.

Quando eu e o capitão João Bacar, em feve
reiro [de 1970] , tínhamos vindo de Bissau para Fá Mandinga, para formarmos a CCmds da Guiné, o capitão Barbosa Henriques  [o instrutor]   deixou-nos em Bambadinca para tratarmos da situação das nossas famílias. E foi nessa ocasião que, em casa de um companheiro de João Bacar, encontrei esse tal homem, o Mamadu Candé, um Homem Grande e adivinho muito respeitado.

Pois, então, em Paunca, quando o encontrei, Mamadu Candé disse-me, solenemente, para eu avisar o capitão João Bacar que fizesse tudo por tudo para que a nossa companhia não fosse deslocada para ocidente de Fá Mandinga. Que nos ajudava a tratar de nos mantermos no leste, que a nossa fama já era grande e que, assim, o leste não seria conquistado. E disse mais: que nas suas previsões nos tinha visto a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e que nessa cidade íamos começar a sofrer muitas baixas.

Quando lhe perguntei que cidade era essa, se ficava na Europa ou em África, ele respondeu que não sabia. Eu acho que ele sabia muito bem qual era a cidade, não queria era dizer-nos.

Depois de acabarmos a conversa corri para uma viatura da coluna e seguimos em direcção a Bajocunda e, só à noite, quando chegámos contei a conversa ao João Bacar, mas ele não deu qualquer resposta.

Em finais de outubro de 1970, estava eu e o furriel Talabio a regressar a Fá Mandinga, tive conhecimento que o capitão João Bacar ia estar trinta dias de férias. Chegado o dia, ele e o Talabio foram para Bissau com o major Leal de Almeida, o supervisor da nossa companhia.

Nessa data, dois grupos nossos partiram para o Enxalé[2] e eu fui com um dos grupos. Os outros grupos da companhia ficaram em Fá.

Já no Enxalé, quando estávamos a regressar da primeira saída[3], chegou uma mensagem para recolhermos todas as unidades o mais rapidamente possível. Nem houve tempo para descansar da saída, arrumámos as nossas bagagens e corremos para o porto, para apanhar o barco para o Xime. Aqui chegados entrámos para as viaturas e rumámos para . Depois de pousarmos as armas e os equipamentos seguimos para Bafatá.

Eu, logo de manhã fui ao mercado ver gente conhecida. Havia muito peixe nas bancas e comprei uma cabeça de bicuda, que a minha mulher levou para casa para fazerem uma caldeirada, enquanto fiquei a conversar com os meus amigos.

A certa altura, um soldado chegou ao pé de mim e, fazendo-me a continência, eu era furriel então, disse que queria falar comigo em particular. O que tinha para me dizer era que a companhia estava a ser recolhida, por ordem de Bissau. Perguntei-lhe pelo major Leal de Almeida, ele não sabia a resposta, perguntei-lhe quem tinha dado a ordem e ele também não tinha resposta para dar.

Então, tomei o meu lugar na viatura e dirigi-me para casa. Quando cheguei a comida ainda não estava pronta, mudei outra vez de roupa e despedi-me da família, com grande pena minha e deles. A minha mãe perguntou se eu não esperava pelo almoço e eu respondi que não tinha tempo para esperar, que ia sair com fome. Uma facada no coração da minha mãe, foi o que ela deve ter sentido.

Quando voltei a ver a minha mãe, quase um mês depois, vi-a muito magra. Quando me abraçou, senti o seu coração bater de amor e sentimento que ela tinha por mim. Sei que a minha mãe só comeu à vontade, a partir desse dia. 

Continua: vd. poste P233804 (**).

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parènteses rectos com notas /  Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: desde 26 Julho 1970, guarnecida com a CCaç 2658 e, desde 15 Agosto 1970, com a CArt 11 / CTIG.

[2] Nota do editor: destacamento da CArt 2715.

[3] Nota do editor: 30 Outubro/07 Novembro 1970.
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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 6 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24204: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII: Na 1ª CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC

(**) Vd. poste de 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23097: Notas de leitura (1430): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um conjunto de súmulas referentes às intervenções de Amílcar Cabral num seminário de quadros que foi um facto importante na história do PAIGC. A Direção do Partido entendera chegar a hora de convocar os quadros mais antigos e mais novos, fazer notificar a história da luta armada, fazer o seu balanço, proceder a críticas, rever processos organizacionais, discutir a ideologia, a democracia revolucionária, traçar as perspetivas para a luta que esperava o Partido tanto na Guiné como em Cabo Verde. É um documento único, várias centenas de páginas em que o líder de forma esquematizada fala com todos os seus quadros e responde às suas questões. Como nota curiosa, observe-se que os livros que hoje se podem comprar de Amílcar Cabral em alfarrabistas são coletâneas de discursos e documentos avulsos, neste livro está a prova comprovada da organização mental de Amílcar Cabral, da sua lucidez, o peso das suas convicções. Dou este livro como obra de leitura obrigatória para quem quer aprofundar o papel de Cabral na vida do PAIGC.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (5/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral manterá sempre uma narrativa ambígua sobre o que entende por socialismo, a luta anti-imperialista, o quadro fixo dos seus aliados. Reconheça-se no entanto que sempre exprimiu a vontade de que o partido-Estado contemplasse as suas obrigações de solidariedade com as outras colónias portuguesas e neste seminário, em que fala do futuro, lembra aos quadros do PAIGC que há que estreitar as alianças no continente africano. Falando das forças armadas, volta à tónica da crítica, aqui não há ambiguidades: 

“Não devemos esquecer que há erros, faltas e atrasos nas nossas Forças Armadas: muitas emboscadas mal feitas, muito atraso em chegar ao ponto onde se deve chegar, muita falta de vigilância nos rios, apesar de terem boas armas nas mãos para atirar contra os barcos, falta de coragem para atirar contra os aviões, apesar de sabermos que quantos mais tiros der contra os aviões mais medo têm os aviadores. Não temos feito reconhecimento como deve ser, antes dos ataques. O resultado é que muitas vezes vamos fazer ataques e caímos nas minas. Não temos sabido fazer planos corretos, na prática concreta de um ataque, porque o dirigente pode fazer um plano geral para um ataque, mas na situação real de colocar os homens no terreno, no momento do ataque, alguns comandantes não o têm sabido fazer. Devemos, por exemplo, reconhecer que, até hoje, só em dois ataques a quartéis inimigos é que prendemos tugas, em Catancunda e em Bissássema. Ora isso é muito pouco com tantos ataques a quartéis”

E desvia o raciocínio para as melhorias que são necessárias introduzir na logística, e volta a falar em erros: 

“Há pouco tempo, por causa de um erro do nosso camarada José da Silva, na frente norte, mas erro também de todos os camaradas que lá estavam, os tugas apanharam-nos uma quantidade importante de material. O José da Silva e outros cometeram erros tão grandes que os tugas vieram apanhar esse material e talvez tenha havido conluio entre eles. Não podemos permitir que, com tanta canseira para levar material de guerra da fronteira para o norte da nossa terra, venham os tugas apanhar material em Faquina, Biambi, Bula, no chão dos Manjacos, etc. Isso não pode ser”.

 As observações seguintes são sobre a disciplina, o trabalho político nos centros urbanos, insiste que as forças armadas devem dar golpes mais duros e decisivos aos colonialistas.

Agora a conversa muda de azimute, é preciso elevar a consciência política dos estudantes do Partido, levanta a questão delicada de relações familiares com elementos de outros países e não se escusa a afrontar a questão dos quadros técnicos ao nível da meritocracia: 

“Numa terra pobre como a Guiné e Cabo Verde, os quadros técnicos, científicos, etc., por mais que não queiramos, vão viver melhor que a maioria do povo em geral, porque não é possível que um doutor de leis faça devidamente o seu trabalho morando numa palhota cheia de mosquitos, com lama no chão, etc. Não faz sentido um arquiteto, um engenheiro, um médico, ou mesmo um especialista de mecânica ou eletricidade ter, de manhã, de encher a boca de água para borrifar o chão da sua palhota para este ficar duro, como faz normalmente o nosso povo. Queiramos ou não, no começo da nossa vida, os quadros que se estão a formar vão ter algumas vantagens em relação ao povo em geral”.

Finda esta sucessão de intervenções que se prolongaram de 19 a 24 de novembro, o último dia foi reservado a debate e a conclusões. Como seria de prever, Cabral respondeu a questões muito dispersas como a situação da luta na região de Nhacra e nos centros urbanos, focou a situação dos camponeses na Guiné e em Cabo Verde, procurou clarificar o que era uma direção coletiva e o centralismo democrático, como se estava a processar a justiça militar e como funciona a democracia revolucionária; puseram-se questões como o uso de algemas, o tratamento a dar aos ladrões de vacas, o abastecimento dos internatos, como agir se os colonialistas vierem a dar independência à Guiné sem Cabo Verde, como responderá o PAIGC. Aqui é categórico: 

“Não paramos enquanto não libertarmos os dois. Isto tem de ser, esse é o nosso caminho e o nosso juramento. Podemos usar todas as táticas que quisermos com o inimigo, mas não deixemos o inimigo desviar-nos para questões que nos lança apenas como diversão, para afastar a nossa atenção das coisas importantes. Importante é o seguinte: lutar cada dia com mais força na Guiné, com mais tiros contra a tropa tuga; em Cabo Verde, fazer o máximo para o mais depressa possível começarmos a dar tiros. Entretanto, faça-se barulho político por todo o lado, mesmo que vá muita gente para a prisão”.

Não se escusa de abordar questões delicadas como a posição do PAIGC face às declarações de Rafael Barbosa, desvia a conversa para a assistência sanitária à população e ao funcionamento dos tribunais populares, como receber as populações que vêm às áreas libertadas, como e porque se deve fazer a cobrança de impostos, o que constitui a crítica e a autocrítica e alertou os presentes para os falsos amigos e as infiltrações, exemplificando: 

“Há camaradas da segurança do Partido que passam a vida com um indivíduo de origem libanesa que reside em Zinguinchor. Os camaradas apresentaram-me esse libanês como sendo um grande amigo do Partido. Cheguei a realizar uma reunião em Zinguinchor com os camaradas e convidei-o a sentar-se ao meu lado, acreditando que era um amigo do Partido. Pois, certo dia, agentes nossos informaram-nos de que o tal libanês trabalhava para os portugueses e alertei o Luís Cabral. O Luís nunca o visitou, mas havia elementos da nossa segurança que passavam a vida em casa dele. Certo dia, fomos informados da chegada de uma pessoa com correspondência da PIDE para esse libanês. Como não o podíamos deter no Senegal, os nossos camaradas fizeram um bom trabalho, combinando com a polícia para parar e revistar o carro. Mandaram parar o automóvel, revistaram o passageiro e encontraram a correspondência destinada ao libanês, provando que ele é, efetivamente, um agente dos colonialistas”.

Nas conclusões, ele recorda: 

“Elogiei a nossa luta como jamais alguém poderá elogiá-la, mostrei as nossas vitórias com a maior clareza possível, as vantagens, a coragem da nossa gente. Mas também vos falei com toda a franqueza das nossas misérias, das muitas sujidades que ainda temos no nosso seio e temos de limpar depressa, se queremos de facto estar à altura do nosso valor”

E despede-se assim: 

“Durante seis dias, como vosso dirigente, trabalhei, cumpri o meu dever como tenho cumprido chefiando a luta no plano militar, no plano político e em todos os planos. Estas são as minhas palavras, com um grande agradecimento pelo triunfo que representou este nosso seminário. Tenho a certeza de que, se cada filho da nossa terra, homem ou mulher, mantiver esse interesse em saber sempre mais e em pôr em prática, concretamente, aquilo que sabe, nada nos pode parar no caminho certo da vitória na nossa luta, no caminho do progresso, da paz e da felicidade da nossa gente”.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Nestas suas intervenções num Seminário de Quadros que fez história na justa medida em que o líder fundador do PAIGC passou minuciosamente em revista os princípios do Partido, os tipos de resistência que o Partido enfrentava e as perspetivas da luta nos próximos tempos, fica bem claro que Amílcar Cabral era um marxista heterodoxo, tinha ideias assentes sobre a economia de uma Guiné independente, reprovava todo e qualquer comportamento que lesasse a harmonia possível entre as populações sob controlo do PAIGC e as suas unidades militares. Ficamos igualmente a saber que Amílcar Cabral era a favor da construção de uma cultura embebida na própria luta da libertação, é nesta intervenção que ele se mostra acérrimo defensor da língua portuguesa como uma língua que iria dar coesão ao novo Estado soberano. 

Era um comunicador sem rival, altamente pedagógico, revelava-se maleável e aberto a aprender com os erros, sempre a advertir para os perigos do oportunismo e do carreirismo. Deixamos para o próximo texto a sua alocução sobre os desafios que eram postos nos próximos tempos, tanto na luta de libertação como nos grandes princípios que deviam nortear o novo Estado soberano com que ele tanto sonhava.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (4/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral dá como adquirido que a destruição do Estado Colonial pressupõe a criação de um novo Estado assente numa economia própria e alerta os seus quadros dizendo:

“Há muitas culturas agrícolas que nunca se fizeram e não será durante esta guerra que as poderemos fazer rapidamente. Mas devíamos ser capazes de começar a fazer algumas delas. Não podemos abastecer-nos a nós próprios com medicamentos, mesmo medicamentos simples, mas há coisas que podemos fazer como aumentar a produção de arroz, da mandioca, da batata e de outros produtos alimentares e garantir a produção em todas as áreas que controlamos. Devemos também procurar desenvolver o nosso artesanato: potes, esteiras, panos, bandas, etc. Alguns responsáveis do Partido esqueceram as palavras de ordem ‘desenvolver e aumentar a produção, multiplicar ou diversificar os produtos agrícolas’. 

Um golpe grande na nossa resistência económica foi e continua a ser a saída de grande número de gente para o Senegal. É um golpe na nossa resistência económica, porque são braços capazes de trabalhar nas condições das nossas regiões libertadas e que vão trabalhar no Senegal, aumentando a economia desse país e diminuindo a nossa. Devemos dizer claramente que alguns dirigentes e responsáveis do Partido de todos os níveis não têm dado a importância devida à nossa resistência económica. 

Devemos dizer aos camaradas que, se temos que alimentar os combatentes no fundo do mato, para podermos lutar contra os colonialistas portugueses, então estes ficam na nossa terra mais cem anos. Isso seria o resultado, sobretudo, da falta dos camaradas responsáveis que não foram capazes de pôr os combatentes a lavrar a terra, na altura em que era preciso”.

E elenca um conjunto de advertências para que haja condições de se preparar uma verdadeira revolução agrícola. E quanto ao que fazer no imediato não hesita em dar exemplos:

“No tempo das chuvas não se pode cultivar cebola, mas no tempo seco, como agora em Novembro, qualquer unidade do Exército pode cultivar cebola e alho num pequeno terreno da sua área. Basta indicar dois camaradas para vigiarem perto do rio e regarem como deve ser. Pode-se cultivar tanto no Corubal como no Canjambari ou perto de uma fonte no Sul, em Cubisseco, Quínara, ou em qualquer outro lugar.

Demoradamente, fala na necessidade de melhorar as relações entre as populações e os combatentes, passa depois para a resistência cultural, e usa da franqueza:

“A nossa cultura deve desenvolver-se numa base científica, sem crendices. Amanhã, deve evitar que qualquer um de nós pense que o relâmpago é sinal de que Deus se enraiveceu e a trovoada é a voz do céu ou do irã furioso. Toda a gente tem que saber que a trovoada e o relâmpago são provocados por duas nuvens que se chocam, uma carregada de eletricidade positiva e outra de eletricidade negativa, e produzem uma faísca, que é o relâmpago, e um barulho, que é a trovoada. Camaradas, temos de basear a nossa cultura na ciência, retirar da nossa cultura tudo quanto é anticientífico, não hoje ainda, mas amanhã. A nossa cultura tem de ser popular, uma cultura de massas, ou seja, à qual toda a gente tem direito, e que respeite os valores culturais do nosso povo. Devemos ter bem em mente a situação na cidade e no campo, comparativamente”.

É neste contexto que ele produz uma declaração que se revelará fundamental, sobre a importância da língua portuguesa:

“Agora, a nossa língua escrita é o português. Por isso, vale a pena falar-se aqui tanto o português como o crioulo. Não somos mais filhos da nossa terra pelo facto de falarmos crioulo. Tenhamos um sentido real da nossa cultura. A língua portuguesa é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram, porque a língua não é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, um meio para exprimirem as realidades da vida e do mundo. A língua dos portugueses avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas relativas, por exemplo, a ciência. Nós dizemos: ‘A Lua é um satélite natural da Terra’. Digam ‘satélite’ em balanta ou em mancanha. Isto só é possível falando muito, enquanto que em português se trata apenas de uma palavra que outros povos podem entender”.

Passando para o tema da resistência armada recordou que esta é também uma expressão da resistência cultural, na luta nega-se a condição de portugueses de segunda classe, na luta adquire-se a consciência de que se pertence ao continente africano, luta-se em defesa da dignidade de ser livre e tomar nas suas próprias mãos a resolução dos problemas do país. Faz uma síntese histórica do colonialismo, retoma a questão da organização e explica porquê:

“À medida que a luta avança, o partido vem transformando as estruturas de guerra. Os camaradas devem lembrar-se bem do início da luta. A pouco e pouco, modificámos os grupos de guerrilha, criámos os corpos ou unidades do Exército, criámos os Comandos e começámos a coordenar a luta por zonas, em regiões diferentes. Dantes, por exemplo, o Comando das Forças Armadas era exercido pelo comité do Partido, mas, à medida que as nossas Forças Armadas foram crescendo, a guerra tornou-se mais complexa e tivemos de separar a direção das Forças Armadas da direção local do Partido. Ao longo da luta chegámos à conclusão de que, nas condições da Guiné e para este tipo de guerra, é mais eficaz combater com poucos efetivos organizados em pequenos grupos. A comprovar isto está o recente ataque a Piche, dirigido pelo camarada Baro Seidi e o seu comissário político Buonte Na Sansa, realizado com dois grupos de dezoito combatentes. Temos a certeza de que nesta luta é mais eficaz lutar com pequenos grupos tirando o máximo proveito das nossas armas, sobretudo as ligeiras”.

E de novo insiste num quadro de desanuviamento entre os militares e as populações que o PAIGC controla:

“Nesta luta temos de combater todas as ideias erradas e oportunistas e defender intransigentemente a linha do Partido. Vários camaradas das Forças Armadas e até mesmo responsáveis têm prejudicado muito o Partido e a nossa luta com o seu comportamento, fazendo deteriorar as relações entre a população e as nossas Forças Armadas. Isso equivale a um crime de traição, é servir os colonialistas. Digo-vos que por maior que seja a força do nosso Partido, se não promovermos quotidianamente as boas relações com a nossa gente, a nossa luta está condenada ao fracasso”.

E termina esta alocução recordando uma vez mais o objetivo de toda a guerra de libertação:

“O objetivo é sentarmo-nos frente a frente com o inimigo para ele concordar que temos razão e entregar-nos a nossa terra. Por isso é que temos de saber para onde é que vamos com a nossa guerra. Nunca é demais repetirmos que o objetivo fundamental da nossa resistência armada é realizar aquilo que não conseguimos só com a política. É abrir novas perspetivas para o nosso povo, na independência, na paz, no trabalho e na justiça, no caminho do progresso. É esta a nossa missão”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23077: Notas de leitura (1428): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23068: Notas de leitura (1427): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Para quem pretende estudar ou aprofundar conhecimentos sobre o pensamento, a ideologia, as qualidades de liderança de Amílcar Cabral, este punhado de intervenções feitas num Seminário de Quadros, que decorreu em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969, é uma excelente oportunidade até pelo leque de temas contemplados. Revela-se um comunicador de primeiríssima água, não se desvia dos temas mais polémicos como a unidade e luta, trata-o como vital para pôr termo ao colonialismo na Guiné e Cabo Verde, não ilude igualmente a base leninista que orienta a sua ideia de Partido, democracia revolucionária sim mas de acordo com a fidelidade aos princípios do Partido que ele consagrou com um grupo de fiéis, que igualmente não o contestam. Em poucos dias, e com vigor notável, desfia temas, conta histórias, motiva, insiste na tecla do combate ao oportunismo e aos corruptos. Quando se lê e relê esta sua obra é mesmo de questionar se para além dos estudiosos não devia ser tratado como um manual político indispensável pelo PAIGC atual.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (2/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral do Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Após a calorosa saudação proferida e analisada a situação da luta ao tempo, fez questão de, nem sempre com uma inteira frontalidade, de ir direito ao tema polémico da unidade e luta. Paulatinamente, começa por discretear sobre o conceito de unidade e de luta, observa os termos da distinção da divisão em Cabo Verde e na Guiné, filosofa dizendo que a luta é uma condição normal de todos os seres do mundo, bem conhecedor de que não podia falar de idênticos parâmetros de colonialismo para a Guiné e para Cabo Verde, enunciou a fragmentação étnica guineense, a natureza da propriedade em Cabo Verde e disse que nenhum movimento que se tenha afirmado só a favor da Guiné ou só a favor de Cabo Verde tinha progredido. Deu o exemplo de um caso de unidade africana, a Tanzânia, resultado da união da Tanganica com o Zanzibar, mas não aludiu a todas as tentativas de unidade até então falhadas.

E então declarou: 

“Não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso”.

E como fosse necessário um exemplo bem-sucedido do valor da unidade, referiu que na primeira fornada de gente que fora para a cadeia havia guineenses e cabo-verdianos juntos. Adiantou que o PAIGC não podia aceitar a independência da Guiné sem Cabo Verde. E a questão de unidade e luta ficou arrumada. 

Debruçou-se seguidamente sobre os problemas de organização, recordou os dados da realidade geográfica, da realidade económica, social e cultural. Relendo estes textos décadas depois de que foram proferidas, é extremamente difícil acreditar que a plateia assimilasse os conceitos que iam exclusivamente na cabeça do líder, era ciência infusa, aquela plateia era constituída por jovens que não ignoravam o passado, o peso das hierarquias, a natureza do colonialismo com a sua ponta de lança de quadros cabo-verdianos, por vezes muito mais cruéis e incontestavelmente racistas comparativamente com o branco. 

Mas Cabral urdira estes tópicos com engenho e arte, de forma abreviada, tinha um discurso exaltador na manga que veio imediatamente, dirigiu-se aos melhores filhos do povo, à honestidade, à verdade, à responsabilidade, pontuando de vez em quando com “os melhores filhos da nossa terra é que devem dirigir o nosso partido e o nosso povo”.

E lançou alguns tópicos de modernidade para a força revolucionária de que ele era mentor:

“Há alguns camaradas homens que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, que soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso e que a força do nosso Partido vale mais na medida em que as nossas mulheres se empenharem para o dirigirem também”

Também criticou a mentalidade daqueles que não davam oportunidades aos jovens para assumirem mais responsabilidade, e uma vez mais advertiu que o oportunismo era uma séria ameaça para a vida do PAIGC: 

“No nosso meio, há também oportunistas que, sabendo que a nossa direção exige, para dirigir, os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer ao máximo os seus responsáveis, para estes os proporem como dirigentes ou como responsáveis. Temos de ter cuidado com isso, temos de os desmascarar, de os combater”

Era o sinal de que estava aberta a guerra ao carreirismo, aos ambiciosos, à gente mesquinha, à bajulice.E espantoso comunicador como sempre se mostrou, foi buscar uma história para rematar o tema que versava:

“Há um filme de que nunca me esqueço, porque foi uma grande lição para mim. Era a respeito de um rapazinho que foi educado num colégio de padres e que acreditava muito em milagres. Não conhecia nada da vida, porque fizera a sua vida no colégio e saiu de lá homem, com vinte e um anos. Todas as injustiças que ele verificava eram um mal; não entendia que, de um lado havia a miséria, gente que sofre, do outro, os ricos.

Mas ele conseguiu encontrar uma pomba que fazia milagres. E então, porque o seu pensamento estava ligado ao sofrimento dos outros, resolveu fazer tudo para ajudar os outros, para não haver fome, nem frio, para todos terem casas para morar, e cada um realizar os seus desejos; ele não pensava em si mesmo, mas pedia à pomba para fazer milagres para os outros. A pomba aparecia-lhe e sentava-se na sua mão. Ele dizia ‘Pomba, dá casas para aqueles pobres’, e apareciam as casas com tudo dentro. ‘Dá comida àqueles famintos’, e aparecia a comida, boa comida. Chegava mesmo a chamar as pessoas para perguntar o que é que queriam e pedia à pomba para lhes dar.

Até que, um dia, arranjou uma namorada e sentou-se com ela. A namorada pedia-lhe uma coisa e ele dava. Outras pessoas também pediam, mas ele já não tinha tempo, agora era tudo para a namorada.
Repentinamente, a pomba voou e foi-se embora. Acabaram-se os milagres e tudo o que ele tinha feito como milagre tornou a desaparecer. Mesmo com a pomba na mão, os milagres acabaram. Ele já não podia fazer nada pelos outros, porque só pensava na sua ‘badjuda’, na sua barriga.

Esta é uma grande lição.

Na medida em que formos capazes de pensar nos nossos problemas comuns, nos problemas do nosso povo, da nossa gente, pondo no devido nível e, se necessário, sacrificando os nossos interesses pessoais, seremos capazes de fazer milagres.

Assim devem ser todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido, ao serviço da liberdade, e do progresso do nosso povo”
.

E mudou de azimute, perguntando: contra quem está o nosso povo a lutar, para responder que os filhos do mato e agora combatentes não deviam esquecer, por um momento que fosse, o maior respeito e a maior dedicação pelas populações, a começar pelas áreas libertadas. 

“Tudo quanto se possa fazer para tirar a confiança da população em nós, castigando a população, mostrando falta de consideração por ela, roubando os seus bens, abusando dos seus filhos, constitui o maior crime que um camarada combatente ou responsável pode fazer, prejudicando o nosso Partido, prejudicando o futuro e o presente da nossa terra. É melhor sermos poucos, mas incapazes de fazer qualquer mal que seja à população da nossa terra, do que sermos muitos, mas com gente capaz de fazer mal”.

E deixou bem sublinhado que a luta era contra o imperialismo e os seus agentes e as forças materiais ou ideias que pudessem levantar-se no caminho da liberdade, caso dos procedimentos que pudessem prejudicar a imagem de verdade e rigor do PAIGC.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23055: Notas de leitura (1426): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22946: Notas de leitura (1414): Depoimentos de combatentes cabo-verdianos na Guiné: André Corsino Tolentino e outros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
Para contextualizar, factualizar, documentar e interpretar a guerra da Guiné, com bases no rigor científico da hermenêutica e heurística, é indispensável obtermos os múltiplos depoimentos das hostes cabo-verdianas que combateram na Guiné. Há recolhas já efetuadas, recordo que Leopoldo Amado juntou um acervo de testemunhos a propósito do livro sobre Aristides Pereira, em que colaborou. José Vicente Lopes, jornalista e escritor cabo-verdiano, procedeu ao estudo do movimento subversivo no interior do arquipélago, das tensões e frustrações aí existentes, cria-se uma luta armada que não vinha. E os depoimentos são vários, mas são peças soltas, infelizmente. Por isso mesmo, é de toda a utilidade visitarmos sites como este, são outras abordagens, outras clarificações, contributos para um poliedro, esse sim, poderá ter a capacidade de ajudar a compreender o todo que anda por aí fragmentado.

Um abraço do
Mário



Depoimentos de combatentes cabo-verdianos na Guiné:
André Corsino Tolentino e outros


Beja Santos

André Corsino Tolentino viu os seus livros apreendidos no Lar dos Estudantes Ultramarinos, em 1967. Foi expulso e anos depois passou a dedicar-se inteiramente à luta como dirigente do PAIGC. Regressou a Cabo Verde em 1974, exerceu funções ministeriais e atualmente é administrador não-executivo da Fundação Amílcar Cabral.

Neste site podemos ler a sua entrevista mas também a de outros cabo-verdianos que combateram na Guiné como Pedro Pires, antigo Presidente de Cabo Verde e que liderou a delegação que negociou com Portugal o reconhecimento da independência da Guiné e depois de Cabo Verde; Carlos Reis, que ensinou na escola-piloto do PAIGC e que estava em Conacri aquando da invasão portuguesa em 1970, e da morte de Amílcar Cabral; Lilica Boal, escolhida por Amílcar Cabral para dirigir, em Conacri, a escola que preparava os filhos dos combatentes para a independência; e Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal.
André Corsino Tolentino conta como depois da sua expulsão seguiu para França, passou pela Suíça até chegar à Bélgica. Guarda boas recordações da Universidade de Lovaina e da comunidade cabo-verdiana como também do grupo de professores que apoiava os estudantes das colónias. E observa:
“Esta comunidade de estudantes já tinha uma relação com a comunidade vizinha, principalmente com a França e a Holanda. Havia até um certo intercâmbio cultural entre esses estudantes e os emigrantes daquela região. O primeiro objetivo era conseguir mobilizar alguns jovens emigrantes cabo-verdianos. Os obstáculos e preconceitos nesta mobilização eram enormes: Nós éramos terroristas para o regime salazarista, mas éramos também uma espécie de mensageiros do comunismo. E do comunismo no seu pior, daquele comunismo que chega e redistribui tudo o que se tem, desde o mais íntimo. Havia que desfazer essa ideia, o que era relativamente fácil, quando as pessoas conheciam a realidade, os interlocutores. Por exemplo, quando eu falava com as pessoas da ilha de Santo Antão era relativamente fácil desmontar esta propaganda. Para os meus colegas da ilha de Santiago, de São Vicente ou da ilha da Boavista era igualmente fácil, mas o encontro tinha de acontecer e a conversa tinha de ocorrer também para que isso fosse possível”.

Recebeu treino militar em Madina do Boé, e esteve durante um ano na Escola de Marinha em Odessa, no ano seguinte. Perguntado se acreditava realmente que algum dia seria possível em Cabo Verde a luta de guerrilha, André Corsino Tolentino elogiou a estratégia de Amílcar Cabral por este ter pensado e conseguido formar o PAIGC com guineenses e cabo-verdianos, mas não ilude a questão da frustração dos cabo-verdianos dentro do próprio PAIGC e da emigração. “Só depois viemos a saber que, de facto, era muito difícil em termos militares, sobreviver a um desembarque nas ilhas de Cabo Verde. Era altamente perigoso porque podia haver um fácil aniquilamento nos guerrilheiros. Houve discórdia entre Amílcar Cabral e Che Guevara na altura, porque Guevara defendia o princípio dos focos. Dizia que desde que as pessoas se instalem e tenham armas e o abastecimento garantido do exterior, a guerrilha poderá depois mobilizar a base e avançar. E Cabral defendia que a guerrilha só vinga se emergir da população local”.
Questionado sobre a sua viagem de Conacri para o interior da Guiné, depois de maio de 1964, respondeu:
“Houve uma explosão de alegria. A guerra durou muito tempo, mais de dez anos. Este cansaço manifestava-se através de conspirações, da desistência de operações, falta de apoio das populações ou através da deserção para o inimigo. Estávamos todos cansados da guerra, quer as tropas coloniais quer a resistência. Por conseguinte, a substituição do poder em Portugal e as declarações seguintes de predisposição para realizar a Descolonização, a Democracia e o Desenvolvimento só podiam ser bem-vindas. É neste contexto que o ambiente muda radicalmente”.

Para saber mais sobre estes combatentes cabo-verdianos, ver o site https://www.dw.com/pt-002/est%C3%A1vamos-todos-cansados-da-guerra-lembra-corsino-tolentino/a-17759520.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22937: Notas de leitura (1413): A utopia de André Álvares d’Almada, Revista Sintidus, nº. 1, de 2018 (Mário Beja Santos)