segunda-feira, 31 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24523: Notas de leitura (1602): "Aldeia Mágica", por Alexandre Faria; Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Generosidade não falta a quem escreve esta obra, é entranhado o seu profundo afeto por Bolama, dela mantém gratas recordações e até colabora com a ONG Pró-Bolama. É generoso e didático, para quem se embrenha nesta viagem e nesta utopia teremos súmulas históricas: Cascais, a presença portuguesa em Marrocos, a Mauritânia, a Gâmbia, o Senegal, a Guiné antes da presença portuguesa e depois, os reinos e a cultura Bijagó, as lutas pela independência, dirão que é uma cultura de almanaque, mas para quem pela primeira vez percorre estes itinerários, vai encontrando algumas chaves explicativas e melhor se acompanha um autor devotado a uma causa, é bem patente o seu estado de rendição às gentes e à natureza. E não se ensaia a falar na verdade desse miserando tráfico de drogas que põe a Guiné-Bissau como um Estado internacionalmente desrespeitado, com uma classe política corrupta e insensível à ânsia de desenvolvimento humano que todo o povo reclama.

Um abraço do
Mário



Homenagem a Bolama, uma elegia utópica e a maldita cocaína

Mário Beja Santos

Aldeia Mágica, por Alexandre Faria, Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz, é um romance de afetos, prenhe de informação sobre diferentes lugares, desde Cascais a lugares guineenses e ao seu passado. O seu autor, que é advogado e presidente do Estoril Praia, de há muito tem uma relação enamorada com Bolama, decidiu brindar essa ternura acumulada com um romance, uma utopia e a denúncia da maldição que persegue a Guiné-Bissau, imiscuída numa rota de drogas, que é um segredo de polichinelo.

Teresa e Daniel constituíam um casal muito feliz, bem posicionado na vida, vivem em Cascais, onde o autor foi autarca durante 20 anos e aproveita a circunstância para dela nos falar e dar uma súmula histórica. Daniel é surpreendido pela notícia da gravidez de Teresa e num instante a devastação de um acidente rodoviário põe termo a esse quadro de harmonia, houvera um violento embate, o condutor responsável desaparecera, a vida de Daniel é um túnel de pesadelo. Bem instalado na sua profissão de consultor, negoceia a sua saída, colocou a casa à venda.

E começa uma viagem sem rumo, procura alívio descobrindo novos horizontes. Segue de Faro para Sevilha, depois de se despedir dos sogros, adquiriu bilhete para Tanger, nova abordagem histórica do relacionamento de Portugal com Marrocos, sente-se atraído pelo deserto, como se tivesse sentido um chamamento espiritual, encaminha-se para o Sara, entra na Mauritânia, lançou-se na autoestrada que o irá conduzir a Nouakchott, abre-se a porta para o Senegal, mas antes teremos mais informação sobre a História da Mauritânia. Atravessou o Parte Natural Diawling perto da fronteira do Senegal e daqui segue para Dacar. Num caminho encontra um cão, será o seu companheiro a partir de agora, chama-lhe Dacar, passa pela Gâmbia e como sempre faz com uma nova localidade dá-nos um resumo dessa antiga colónia britânica. E entra na Guiné-Bissau a partir de São Domingos. E viaja até Bissau.

Instala-se no Hotel Azalai 24 de Setembro, no dia seguinte ruma para Mansoa, sente-se atraído pelo Parque Natural das Lagoas de Cufada, janta em Fulacunda, na mesa ao lado dois pescadores conversam e criticam a atividade devastadora do estaleiro da cooperação japonesa. Metem conversa com Daniel e sugerem-lhe a ida a Bolama. Alexandre Faria tudo descreve com simplicidade, não esconde o fascínio que aquela natureza lhe provoca: “O caminho de Fulacunda até ao final da zona continental empolgou-o pela beleza que exibia, vendo com frequência as entradas de água que se aproximavam da estrada, que permanecia envolta na vegetação autóctone e selvagem, vibrante, parecendo surpreendida pela passagem de uma viatura por ali. Por vezes, a lama adensava-se e a força-motriz do carro era posta à prova”.

Tem agora a ilha em frente, avança, sente-se intrigado com aqueles edifícios com vários séculos de história, degradados há muito, entrega a um certo Emílio a encomenda que lhe fora dada por um daqueles marinheiros com quem conversara, segue-se uma descrição de Bolama, com um claro elogio aos seus recursos naturais e estrondosa beleza. Começa a explorar a ilha, quer compreendê-la, entender os motivos pelo fascínio que ela exerce sobre ele. E começa a nascer a utopia, a organização de uma aldeia feita de cooperação e de entendimento, de justa repartição dos recursos e dos proventos, vão sendo ouvidos anciãos, atraídos os jovens com capacidade organizativa, Daniel vai a Bissau e temos novo aporte histórico, por razões desconhecidas atribui a Bissau o papel de capital em 1836 e 1915, o que é rigorosamente uma falsidade, mas romance é romance, segue-se uma descrição do passado da Guiné do século XII em diante, regressa a Bolama com os jovens João e Vasco definem a localização dos principais edifícios da aldeia para a qual já existe população aderente entusiasta.

Encurtando razões, como quando nos encaminhamos para o melhor dos mundos possíveis, naquele lugar mágico chega um grupo de colombianos, no entretanto o leitor recebeu lauta informação sobre os reinos e a cultura Bijagó. A ameaça desenha-se no horizonte, os colombianos fazem uma proposta, bem sinistra: exigem silêncio total sobre o comércio de drogas que passa ali ao lado e darão apoios como contrapartida, os dinheiros de Daniel caminham para a extinção. Há decisões horríveis para tomar nessa aldeia onde já se alcançou a harmonia social, as crianças vão à escola e os pescadores e agricultores vivem as doçuras de uma economia comunalista. Um comerciante libanês, Saad, que presta ajuda à construção da Aldeia Mágica, pede a Daniel que leve Mateus, uma antiga criança-guerreiro, muito traumatizada.

E Alexandre Faria detalha o negócio da droga:
“A Guiné-Bissau funcionava como uma espécie de entreposto entre a América do Sul e a Europa. As dispersas ilhas dos Bijagós, muitas delas desabitadas, aliadas à falta de meios da polícia marítima guineense, criavam a tempestade perfeita. Pelas informações que circulavam pela capital, cada grama de cocaína podia render cerca de 20€ a um jovem guineense, metade do valor que eventualmente ganhava num mês inteiro de trabalho. Este montante podia aumentar se fosse derretida para a versão cristalizada de crack, mas a principal intenção residia no trampolim da América do Sul para o mundo. Chegada por via aérea até à Guiné-Bissau, cada pequeno avião clandestino transportava cerca de 500 a 600 quilos de droga por carga que pousavam onde podiam. Existindo alguns relatos sobre a presença de elementos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, FARC, os quilos de droga eram posteriormente dissimulados nas arcas frigoríficas e transportados para a capital, prontos para a viagem intercontinental”.

Daniel e os anciãos e os jovens colaboradores vivem este trágico dilema. Quando parecem prontos para capitular, Daniel janta com Pablo, o interlocutor colombiano, é aí que ele sabe quem foi o responsável pela morte de Teresa, e num ímpeto executa o cobarde condutor que fugiu às suas responsabilidades. Vai seguir-se a defesa da aldeia, os colombianos não irão deixar de responder. O autor dá-nos uma resposta bem imaginativa para a resistência guineense, aquela gente desarmada que enfrenta com engenho e arte os bem equipados colombianos, haverá refregas, os traficantes serão forçados a recuar temporariamente, o autor aproveita a circunstância para nos dar uns parágrafos sobre a história da luta armada para justificar certamente a resiliência daqueles velhos que passaram tantos anos a combater de um lado e do outro, aquela resistência a um autêntico exercício de guerrilha que lembra o passado que precedeu a independência da Guiné-Bissau.

Há bastante lucidez nesta gente da Aldeia Mágica, leva consigo um protocolo que todos respeitam, a Carta da Aldeia, os painéis solares e os depósitos de água mais pequenos, tudo é transportado num êxodo, vão-se esconder junto a Buba. Daniel pertence imparavelmente a este projeto, acompanha com satisfação estes guineenses ansiosos de paz e de harmonia e que acreditam piamente na utopia da Aldeia Mágica.

Romance de ternura, como se vê, e onde não se esconde como a Guiné tem todos os requisitos de um Estado-pária, mas onde ainda é possível sonhar que as crianças viverão num futuro melhor.

Monumento dedicado aos pilotos italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama, em janeiro de 1931, uma bela fotografia de Francisco Nogueira que deu a capa do livro Bijagós: Património Arquitetónico, Edições Tinta-da-China, 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JULHO DE 2023 > AGuiné 61/74 - P24512: Notas de leitura (1601): "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina; Âncora Editora, 2020 (Mário Beja Santos)

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