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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Guiné 761/74 - P27508': (D)o outro lado do combate (69): O "herói do Komo", o Pansau Na Isna (1938-1970), em registo de "conto popular africano"“: tuga ka pudi anda na lama (M'bana N'tchigna)




A Pátria não se esqueceu do seu herói,  Pansau na Isna (Ilhéu de  N' Fanta, 1938 - Nhacra, 1970) (*). O verdadeiro herói da "batalha do Como" não foi 'Nino' Vieira, mas este  balanta carismático, camponês, analfabeto, excêntrico. 

Morreu cedo, aos 32 anos, em combate. Já não viu estas notas de 50 pesos,  emitidas pelo Banco Nacional da Guiné-Bissau em 1976 (mas com data de 24 de setembro de 1975, segundo aniversário da proclamação unilateral da independência), e que circularam enter 1976 e 1997.  O Banco Nacional da Guiné-Bissau resultou da nacionalizou do BNU - Banco NacionalUltramarino, e foi o antecessor do Banco Central da Guiné-Bissau, segundo nos relata  o australiano Peter Symes, especialiusta em emissões bancárias (**).

Até ao fim do peso, em 1997 (que deu lugar ao franco CFA), circularam as seguintes notas (ao longpo de 3 emissões) (1976, 1983 e 1984):  notas de  50 (com a efígie de Pansau Na Isna), 100 pesos (Domingos Ramos)  500 pesos (Amílcar Cabral), 1000 (Amílcar Cabral).  500 (Francisco Mendes) (1983), 5000 (Amílcar Cabral)  e 100000 (Amíçcar Cabral).

São relativamente raras as versões, públicas, disponíveis na Net, de antigos combatentes do PAIGC sobre a "luta de libertação".  E menos ainda sobre a mítica "batalha do Como"...Não vamos aqui, ,para já,  comparar versões dos acontecimentos.  Os combatentes de um lado e do outro têm direito a contar e a publicar a sua história, sujeitando-se naturalmente ao contraditório (***)

No nosso blogue temos já cerca de 90 referèncuas sobre a Op Tridente, incluindo o testemunho de quem lá esteve e lutou como os nossos camaradas Mário Dias,   Armor Pires MotaJosé Álvaro CarvalhoVassalo Miranda e outros (sem esquecer o J. L. Mendes Gomes,  os "bravos do Cachil", da CCAÇ 557, o José Colaço, o Rogério Leitão, o José Augusto Rocha, etc.).





Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, comandao pelo alf mil Maurício Saraiva  fotografados  durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG (1964/66).

Da esquerda para a direita, (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1º cabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo;

Em cima, (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco. (Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A História de Kpänsau Na Ysna: Como combatente N’tchaagň Conta a Uma Criança


por M’bana N’tchigna


− Vem cá, meu filho, senta aqui pertinho. Vou te contar a história de um homem muito corajoso, um daqueles que a gente não encontra todo dia. O nome dele era Kpänsau Na Ysna, mas muitos o chamavam de Pansau na Isna.

Kpänsau nasceu lá no ano de 1938 [no Ilhéu de N’fandá], numa família camponesa da etnia B’ráassa [Brassa] , os Balanta, gente trabalhadora e forte. Ele era um homem alto, de pescoço bem firme, e que gostava de deixar o cabelo crescer, porque tinha muito, muito mesmo. Quando o vento soprava, parecia até que o cabelo dele dançava.

Ele vivia no sul da Guiné-Bissau, ajudando a família e aprendendo a vida do campo. Mas, um dia, ele percebeu que o seu povo sofria injustiças do colonialismo português. E, olha, M’bana…, quando Kpänsau via injustiça, o coração dele esquentava como fogo. Ele não gostava de ver ninguém oprimido, não.

Então decidiu entrar para a luta armada, bem jovem ainda. E sabe o que aconteceu? Ah, meu filho… ele logo mostrou que era daqueles que não se escondem. Era valente, corajoso, decidido. Eu estava e lutei lado ao lado numa das batalha, Köm [ilha de Como, Op Tridente, jan-mar 1964] . Quando Kpänsau entrava numa batalha, até os mais medrosos se enchiam de força só de olhar para ele.

A maior prova disso aconteceu na batalha de Köm, a ilha de Como, que ele ajudou a libertar. Naquele tempo ele tinha só 26 anos, imagine! Tão jovem… Mas já era visto como um grande combatente.

Passaram-se alguns anos, e Kpänsau continuou a defender o seu povo com o mesmo coração firme de sempre. Até que, em 1970, quando tinha apenas 32 anos, ele morreu em combate, lá em Nhagkrá-Mores na vila de Bumar [sector de Bissau] . Morreu lutando, como viveu.

E você sabe por que eu te conto essa história? Porque homens como Kpänsau Na Ysna não vão embora de verdade. Eles ficam na memória do povo, ficam no peito da gente. Ele lutou para que hoje vivêssemos num lugar mais livre, mais justo.

Então, sempre que você ouvir alguém falar de coragem, lembre-se de Kpänsau. Ele foi um herói de verdade. E heróis assim… ah, meu filho M’bana, esses nunca são esquecidos.


O Significado do Nome Kpänsau Na Ysna na Língua Brassa

Mas afinal, qual é o significado do nome Kpänsau Na Ysna na língua B’ráassa?

Como quase todos os nomes B’ráassa, Kpänsau carrega em si um sentido profundo. Ao pé da letra, significa “Morança acabou” ou “Desmoronou”, e pode ser estendido para expressões como: “a geração acabou”, “minha gente acabou”, “meus parentes acabaram”.

É um nome que evoca o desaparecimento, a perda e, ao mesmo tempo, a força de quem resiste diante da morte ou da destruição.

A preposição “Na” tem papel especial na língua de B’ráassa. Ela equivale às preposições portuguesas “de”, “da” ou “do”, e serve para apontar o clã a que o indivíduo pertence.


Entre os B’ráassa de Ñakrá, raramente se usa o nome do pai junto ao próprio nome; o filho é do clã, e não do pai. Essa escolha revela a horizontalidade e o espírito de democracia e de harmonia de nosso povo.

Um exemplo disso é Dába Na Walna, uma das grandes referências intelectuais da Guiné-Bissau, embora ele próprio não se vê como tal. [É hoje brigadeiro-general.]


Eu nunca conheci o nome do pai biológico dele, e, que eu saiba, “Na Walna” não se refere ao pai. A preposição indica o clã, a morança ou a tabanca à qual a pessoa pertence. O mesmo se aplica ao meu sobrenome, “Na Tchigna”, e a muitos. outros.

Assim, o nome Kpänsau Na Ysna não é apenas um conjunto de palavras: é história, memória e identidade. Ele lembra a coragem, a luta e a resistência de um povo que enfrentou a opressão e o perigo com coração firme.

Faço questão de homenageá-lo neste mês de janeiro de 2018, quando a libertação de Köm completa 54 anos. Foi nesse mês, em 1964, que Köm viu seu valente filho defendê-la como terra indivisível entre guineenses e colonialistas.

E eu o homenageio não apenas porque seu nome batiza uma avenida de Bissau, onde hoje se situa o Hospital Simão Mendes, mas porque sua vida e sua memória merecem ser celebradas, lembradas e honradas para sempre.

Quando criança, sempre fui um menino curioso e amante de histórias. Mas não de qualquer história: gostava de ouvir fatos verídicos, aqueles que carregam sangue, suor e coragem.

Foi assim que, ainda pequeno, fui contado sobre a batalha de Köm, quando Kpänsau Na Ysna, em vida, era comandante de Baraka Garandi [barraca grande.] , o quartel-general daquela ilha.

Eu tinha apenas 10 anos, em 1980, quando ouvi, hipnotizado, meu tio N’tchaagň, um dos guerrilheiros e testemunha ocular da batalha, relatar-me os acontecimentos de Köm. Minha pergunta foi simples, mas carregava a curiosidade de uma criança:

− N’tchaagn, abala a ba hër a Köm? (“N’tchaagň, como foi a guerra de Köm?”)

Depois de um jantar simples, numa cabana, com arroz e peixe, ele tomou seu vinho de cíbi [cibe, palma] , feito artesanalmente pelos anciões B’ráassa, e retrucou-me com voz firme:

− M’bana Bláthë, Köm key won nhunthë! (“Bláthë, não deve lembrar-se de Köm.”)

Olhou para o espaço, como se carregasse toda a fúria e a dor da memória. Ficou alguns segundos em silêncio, pensativo, e então começou o conto.

Com seu sotaque Brassa, disse:

− Köm... Köm e Kation...[Como e Catió]

Percebia que precisava de explicação: ele continuou, com paciência:

− Como você ainda não sabe, Köm é um dos setores de Kation. Ou seja, Catió. Do porto de Köm até aos nossos esconderijos distam apenas 7 km.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram Köm como uma ilha maldita; para outros, uma ilha que fazia os cabelos de qualquer um ficarem em pé, disse tio N’tchaagň, com olhar distante, lembrando-se dos horrores e da coragem vivida.

− De Kation até a ilha, eu não sei ao certo. Mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E… como os portugueses estavam aquartelados em Catió, não podiam tolerar a presença de ‘terroristas’ — como nos chamavam, nós do PAIGC, naquela época pelos portugueses − prosseguiu o tio N’tchaagň.

Era uma afronta para o exército português conviver lado a lado com um inimigo indesejável. Além disso, Brandão [Manuel de Pinho Brandão] , um comerciante português, tinha um comércio florescente, quase sem concorrência, ao contrário dos comerciantes libaneses que dominavam boa parte da Guiné-Portuguesa. Portanto, era interesse dos portugueses nos expulsar de Köm definitivamente, para assegurar sua hegemonia.

Tio N’tchaagň deu uma pausa, tomou um gole do seu vinho de cíbi, e se calou. Eu, criança curiosa, olhava para ele ansioso, esperando que continuasse o conto. Ele percebeu meu olhar e, com um leve suspiro, retomou:

− E, o comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Além dos informantes que nos alertavam sobre os movimentos e intenções dos tugas na ilha, ele próprio era um homem inteligente, estrategista de guerra, guerreiro nato, corajoso como poucos que já conheci e intransigente quando se tratava de defender nossa posição. Não gostava de perder.

Eu, N’tchaagňs, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tinha seu jeito de comandar, mas Kpänsau permanece uma lenda em minha mente até hoje − disse, com a voz sufocada, tentando disfarçar as lágrimas que brilhavam entre suas pálpebras avermelhadas de emoção.

Eu, sensível como sempre, ao vê-lo tomado pela emoção, senti minhas próprias lágrimas brotarem.

− Bláthë! — chamou-me carinhosamente pelo codinome e prosseguiu:

− Kpänsau não estava dentro de Köm no pré-anúncio da batalha. Estava em missão fora da ilha. Pelo que sei, não muito claro, ele se encontrava próximo a M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém [Jemberém].

De lá, sabendo que Köm seria atacada pelo exército português, apressou-se a voltar, andando na maioria das vezes à noite, atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün e, ainda, pântanos e bolanhas — os campos agrícolas — até chegar dentro de Köm.

Quando Kpänsau finalmente chegou, M’bana, a guerra já havia começado, no dia 14 de janeiro, uma terça-feira. Comandante N’Dìnè Na Abarrna já foi atingido e morto. Mas comandante Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha, asseguraram as rédeas da guerra como líderes de grupos que já estavam na ilha.

Mas, misteriosamente, Kpänsau caiu enfermo. Suas pernas incharam, e ele não conseguiu andar por duas semanas. Para não criar alarde ou pânico entre os soldados — e muito menos entre os inimigos — ninguém sabia da sua doença. Apenas Biohctá Na M’bátcha e alguns outros líderes conheciam o segredo do lendário comandante.

Perguntaram a ele se seria melhor evacuá-lo de Köm, mas ele esbravejou com voz determinante:


− N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu. (“Não saio daqui. Quem tem que ir embora são os portugueses. Köm é nosso.”)

Pouco depois de duas semanas, recuperou-se do inchaço e estava pronto, invicto, para uma missão que parecia quase impossível de realizar.

Não podemos dizer que Kpänsau fez tudo sozinho, M’bana. Reconhecemos três nomes que foram fundamentais: o próprio Kpänsau, Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha — bravos colegas que sempre estiveram por perto, obedecendo ou questionando quando necessário. Contudo, as decisões partiam dele, como comandante em chefe.

Ao entardecer, quando o crepúsculo começava, chamava Biohctá Na M’bátcha para tomar vinho de palma, aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar as ações já desencadeadas e preparar-se para o dia seguinte.

Tio N’tchaagn parou e me pediu que levasse vinho de cíbi ao seu primo, na varanda da casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinham se passado 16 anos desde que a batalha havia ocorrido, mas o homem combatente, N’tchaagň, como contador nato de histórias, lembrava com detalhes cada episódio dirigido por Kpänsau Na Ysna.

Continuou, com a voz firme:

− O exército português batizou a guerra contra Köm de ‘Operação Tridente’. Nas suas imaginações, queriam recuperar não só Köm, mas também Katugn, Cayar — onde ficava o batalhão da força portuguesa, fornecendo reforços a qualquer pelotão — e até se instalaram em Kônghan.

Estrategicamente, posicionaram-se no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan — onde se instalou o general português que dirigia a operação. Mas nada disso intimidou o lendário, pois os portugueses desconheciam, e ainda subestimavam, o poderio e o grau de organização de Kpänsau Na Ysna com seus homens, já bem posicionados, sobretudo na tática móvel, que ele dominava como poucos.

Tio N’tchaagň já estava cansado. Passavam das 23 horas, e, tomado pela embriaguez, pediu para interromper o relato. Parou, e eu fui dormir. Empurrei a porta e minha mãe perguntou:

− Você ainda não dormiu, M’bana?

Não respondi, com medo de levar um açoite, e passei silencioso para o quarto. Minha mente ruminava todas as palavras, percorrendo a história inteira, até que o sono me venceu.

Dois dias depois, tio N’tchaagň pediu que eu relatasse novamente tudo o que havia ouvido sobre Kpänsau. Repiti tudo. Ele aprovou e disse:

− Ótimo, bom menino. Guarde bem, para que ninguém te conte outra história que não seja esta.

Prosseguiu:

− Kpänsau organizou seus homens em dois grupos diferentes.

O primeiro grupo era armado de guerrilha e fixo em áreas territoriais específicas. Esse grupo defendia o espaço aéreo de Köm, instalava a defesa antiaérea e improvisava um hospital subterrâneo. Possuíam armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivéssemos.

Ao todo, éramos 300 guerrilheiros contra mais de 800 homens da força portuguesa. Uma desigualdade evidente, claro, com vantagem para os tugas. Além de números superiores, eles tinham armas de maior quantidade e qualidade, aviões, navios e pequenas embarcações para se deslocarem à vontade — facilidades que nós não possuíamos.

− Nós tínhamos armas que começavam a se igualar a algumas deles. Mas a distância entre nós e as armas, que ficavam na fronteira de Conakry, era enorme. Transportá-las até nós era uma dificuldade enorme. O único transporte disponível eram pessoas dispostas — ou obrigadas — a ir a pé buscar armas e munições na fronteira com a Guiné-Conakry.

A viagem para buscar munições durava quatro a cinco dias, se o grupo não encontrasse tugas no caminho. O percurso saía de Köm e passava por: Wedë-Kaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng — até a fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta é de aproximadamente 160 a 200 km, mas, como os viajantes precisavam contornar rios, pântanos e territórios hostis, acredito que percorram 200 a 230 km.

Imagina, M’bana, percorrer essa distância carregando munições pesadas na cabeça… às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano dissolvido em água? Não posso deixar de mencionar Kidèlé Na Arítchgň, herói desta história. Devo contar um pouco sobre ele, nessa situação das munições.

Quando as munições chegavam ao porto, introduzi-las na ilha era ainda mais difícil do que a própria luta. Os tugas vigiavam toda a volta de Köm, dia e noite, atentos a qualquer tentativa de reforço. Literalmente, ninguém se atrevia a atravessar o mar para a ilha.

Foi aí que surgiu Kidèlé Na Arítchgň. Ele carregava as munições numa B’sahë Në Brassa — a canoa tradicional Brassa/Balanta — e remava atravessando um mar perigoso, vigiado incessantemente pelas tropas inimigas.

Kidèlé conseguiu atravessar o mar várias vezes, sem jamais ser flagrado pelos tugas. A pergunta que não se cala até hoje é: “Como nunca encontrou tugas?” Será milagre? Coincidência? Talvez. Não é à toa que seus pais o chamaram de Kidèlé, que em Brassa significa literalmente 'Milagre'. E, de fato, um verdadeiro milagre aconteceu no abastecimento da guerra da ilha, graças a ele.

Kpänsau sabia da força do inimigo. Admitia a inferioridade numérica e material antes de encarar a batalha, mas soube provocar os tugas, desgastando-os física e materialmente. Até mesmo simples silhuetas de soldados falsos, colocadas na escuridão da noite, faziam os tugas gastarem munições desnecessárias.”

− Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois ou três guerrilheiros. Seduzia e deslocava a marinha portuguesa para desembarcar de um lado, quando, na verdade, nós, homens de Kpänsau, estávamos posicionados do outro.

No tabuleiro de guerra, procurava sempre deixar as peças do adversário vulneráveis, para obter vantagem. Por exemplo, fazia com que os fuzileiros tugas desembarcassem ilusoriamente em pântanos enlodados, que dificultavam sua movimentação, ou em caminhos estreitos de mata densa, através de alarmes falsos. Quando os tugas caíam nessas armadilhas, era hora de nós, homens de Kpänsau, tirarmos vantagem, derrotando e danificando o maior número possível de inimigos ou de seu armamento. Daí surgiu a expressão: “tuga ka pudi anda na lama” — os tugas não sabem andar no lodo.

Kpänsau conhecia todos os espaços favoráveis a nós. Por isso, não admitia que a marinha portuguesa se aproximasse ou controlasse esses locais. Sempre atraímos os tugas para o lado do lodo, mangue, traves fechadas e clareiras seguidas de mato denso, onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados.

Sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a dispararem contra embarcações portuguesas que ousassem avançar pelos rios da floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça, resultado dos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E por terra, homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados pelo lendário Kpänsau Na Ysna, não arredavam pé de onde estavam.

A população de Köm sofreu. Mães com crianças de colo amamentavam enquanto tentavam sobreviver. Quando os bebês choravam, a força portuguesa respondia sem piedade, metralhando ou lançando morteiros e bombas napalm contra o local, matando civis indiscriminadamente.

O povo de Köm viveu situação desumana por 75 dias. Djigân (bicho de pé) e lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos das pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desacreditados, chamando Kpänsau de “Balanta teimoso”, acreditando que não venceria a guerra contra os brancos.

Chegaram relatos dizendo que Amílcar Cabral pediu que Kpänsau e os guerrilheiros em Köm abandonassem a luta, para poupar a população civil do massacre que as tropas coloniais praticavam. Mas Kpänsau, intransigente, meneou a cabeça e dizia: “Wisaguë Kanã” (não acredito nisso). Ignorou a ordem e prosseguiu seu trabalho, certo de que a vitória estava próxima.

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste no dia 19 de fevereiro, quarta-feira de 1964: os tugas queimavam deliberadamente o arroz do Brassa, para impedir a persistência dos guerrilheiros do PAIGC. Sabiam que nós, Balanta, éramos mais de 90% da guerrilha, e produtores de arroz de excelência, essenciais para alimentar os combatentes.

− O que eu, N’tchaagň ?!− esbravejei com lamento.

− ‘Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú… bë thëd malu ni Brassa tida! Hack, Bëbábm match bu! Weñan miin yá ki Brassa a bi ka hera.’ ("Meu Deus! Ignoraram impanpan de Fulas, Biafadas de Quinára e de Tombaly… só queimam arroz dos Brassa! Então, os tugas nos detestam! Já está claro que declararam guerra a nós, Brassa!") [Impampan ou pampan, em crioulo, arroz de sequeiro] − dizia N’tchaagň, horrorizado, lembrando daquele episódio.

No dia 20 de março, sexta-feira de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais uma informação: os tugas estavam matando bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era destruição clara, com a intenção de causar prejuízo ao nosso povo.

Sempre, durante a guerra, as vacas e os bois dos Brassa serviam de alimento para eles. Sempre que invadiam terras Brassa, pilhavam, saqueavam, matavam, mas escolhiam os melhores animais para consumo em seus quartéis. Agora, ao perderem a guerra, matavam sem levar nada. N’tchaagň se horrorizava contando isso para mim.

Nunca foram aos povoados de outros grupos étnicos para cometer tal destruição, pois representavam pouco valor para o abastecimento dos guerrilheiros do PAIGC.

Mas, num só dia, M’bana, antes mesmo de você nascer, o exército português queimou arroz nas tabankas de: Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, Saráck-Djaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãnthä, N’dala-Yièll e até o arroz do pai de Kpänsau em Banta-Sillá.

Ou seja, 14 aldeias dos Brassa sofreram perdas enormes, por serem tabancas que abrigavam armazéns e produzam arroz em larga escala para abastecer os guerrilheiros.

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau, que permaneceu em silêncio por um instante antes de responder ao informante:

−Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu. ("Por que não vêm nos combater? Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que têm que sair da nossa terra.")

O abuso que as tropas coloniais cometiam ao matar civis doía profundamente em Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica, pregada pelos homens de Salazar, para intimidá-lo e fazê-lo abandonar as armas.

Kpänsau não se abateu e manteve firme seu propósito de libertar o povo. Circulava pessoalmente pela linha de frente, observando cada detalhe da batalha. Não era um comandante que apenas dava ordens do quartel-general. Ao chegar à linha de frente, via alguns combatentes famintos, que não comiam há dias, misturando apenas açúcar cubano com água para continuar entrincheirados.

Encorajava-os com palavras de coragem:

− ‘Herá, botche-bo win! ("Lutemos, a terra é nossa!")

O dia de Kpänsau começava entre 5h e 6h da manhã, quando toda movimentação para mais um dia sangrento se iniciava. Instalado na Baranka Garandi — quartel-general do PAIGC — elaborava planos e decretava ordens para missões quase impossíveis.

No plano espiritual, Kpänsau era animista. Reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi, buscando proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardião da ilha de Köm), os sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam o Baloba, enquanto as sacerdotisas, ladeadas por seu povo, murmuravam palavras inaudíveis, pedindo proteção para Kpänsau e seus guerrilheiros, que combatiam os tugas ferozmente.

As árvores, M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo o que hoje te conto. Assim foram os dias de 14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) de 1964, na ilha de Köm.

Antes de terminar, [eu, M’bana N’tchigna] faço um pequeno esclarecimento.

Vamos escrever a nossa história como ela realmente aconteceu. Já ouvi muitas pessoas tentando associar a vitória de Köm ao ex-presidente Nino Vieira. Uma coisa é verdadeira: general Nino Vieira foi comandante de frente Sul, sim, por um período.

Mas, de acordo com relatos de vários combatentes, Nino não lutou na batalha de Köm. Estava em Conakry. Perguntei a N’tchaagň, que confirmou: realmente não viu Comandante Nino Vieira em Köm durante os 75 dias de combates, e não soube precisar o que Nino estava fazendo em Conakry, afirmando apenas que ouviu dizer que ele estava internado por motivo de doença.

Com todo respeito aos meus leitores: não sou dono da verdade absoluta. Se alguém tiver outra versão sobre Köm, em que Nino realmente participou e dirigiu a luta, entre em contato comigo. Eu, M’bana N’tchigna, transferirei essa homenagem a ele, pois o justo é justo.


Conclusão:

Enquanto isso, só posso concluir, em breves linhas, que render homenagem a Kpänsau Na Ysna é mais do que homenagem. É devolver louros a quem realmente merece. E é, sobretudo, um olhar profundo em direção ao resgate da nossa história.


M’bana N’tchigna, Mestre em Políticas Públicas.

Fonte: página pessoal de M’bana N’tchigna, no Facebook.

(Revisão / fixação de texto, links, parênteses  retos: LG)


2. Comentário do editor LG:

M'bana N'tchigna é um "intelectual balanta da diáspora", que estudou e vive no Brasil.

(i) Perfil académico e profissional: Formação: possui licenciatura  em Filosofia, bacharelado em Teologia e mestrado em Políticas Públicas (Dissertação de 2017: A educação no processo de libertação da Guiné-Bissau: a percepção de Amílcar Lopes Cabral);

(ii) Atividade Principal: é professor do Ensino Médio, onde leciona a disciplna de Filosofia;

(iii) Residência: Vive em Vitória, Brasil. 

(iv) Temas de interesse: Etnia Balanta: é um notável representante da etnia Balanta na diáspora, sendo autor do blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora"; tem escrito sobre o tribalismo, a cultura,a  história, e as questões sociopolíticas que afetam os Balantas e a Guiné-Bissau.

(v) História e memória: M'bana N'tchigna procurado preseravr  em preservar a história e as histórias, não escritas, do seu povo,como esta, sobre Kpänsau Na Ysna  oi Pansau Na Isna (1938-1970),  um dos  heróis da liberdade da Pátria" cujos restos mortais repousam no panteão nacional, na Fortaleza da Amura. (A sua principal fonte de informação sobre neste caso foi o  seu tio N'tcháagnň, que lutou ao ao lado de Pansau na Isna, na ilha do Como, falecei em 2006).

(vi) Questões nacionais: Tem analisado e escrito sobre temas cruciais para a Guiné-Bissau, como a produção agrícola (nomeadamente o arroz) e a necessidade de erguer diques de contenção para erradicar a fome e a pobreza.

M’bana N’tchigna  tem utilizado as redes sociais  para dizer o que pensa do  futuro e d os desafios políticos, económicos e sociais do seu país. Tem pãgina no Facebook.página no Facebook, Mbana Ntchigna (donde reproduzimos esta versão, mais recente, sobre o  "herói do Komo",   em registo de "conto popular  africano") (*****)
_________________

Notas do editor LG:

(*)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (1938-1970) (Luís Graça)


(**) Vd. Symes, Peter (2000). «The Bank Notes of Guinea-Bissau») (ogionalmente publicado nio International Bank Note Society Journal, .Volume 39, No.1, 2000). (Revisto e atualizado em novembro de 2000).

domingo, 5 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27286: Efemérides (468): Faz agora 54 anos: em 1 de outubro de 1971, a CCS/BCAÇ 2912 e a CCAÇ 2700 sofrem uma emboscada, num patrulhanento auto noturno a aldeias em A/D, na picada Duas Fontes-Bangacia, de que resultaram 8 mortos (5 no local, 3 no HM 241). Mais uma vez a CECA não reportou este revés das NT, no livro sobre a atividade operacional de 1971.



Foto do álbum do Américo Estanqueiro, com a devida vénia ao autor e à editora, a Fundação Mário Soares (*). 

 Na foto, alinham-se os caixões que hão-de levar os restos mortais das vítimas...Cinco, na sequência da emboscada, e mais três, dos evacuados para  o HM 241, em Bissau, com ferimentos graves (e que acabaram por morrer, uns dias a seguir). 

Mais uma vez a CECA não reportou este revés das NT,  no livro  sobre a  atividade operacional (neste caso do ano de 1971).

Fonte: Américo Estanqueiro (2007) / Fundação Mário Soares


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá, Sector L5 > Galomaro > CCS / BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72) e CCAÇ 2700 (Dulombi, 19670/72) >

Em 1 de outubro de 1971, por volta das 20h30, duas secções da CCS / BCAÇ 2912, reforçadas por uma secção da CCAÇ 2700, em coluna auto, sofreram uma violenta emboscada, na estrada Galomaro-Duas Fontes (Bangacia), de que resultaram de imediato 5 mortos e vários feridos graves, da CCS / BCAÇ 2912, do CCAÇ 2700 e do Pel Mil 288.

Bangacia (ou Duas Fontes) ficava a meio caminho entre Galomaro e Dulombi, a sul de Bafatá, a sudeste de Bambadinca, a oeste do Xitole, a sudoeste do Saltinho. Com a retirada de Madina do Boé, em 6/2/1969, o sector L5 tornou-se mais vulnerável a incursões do PAIGC.
 





1. Foi há 54 anos. Não há registo desta trágica ocorrência no livro da CECA sobre a atividade operacional no ano de 1971. Apenas no livro dos mortos.  

No passado dia 1 de outubro, às 20:06, na sua página do Facebook,  o nosso grão-tabanqueiro António Tavarese que vive no Porto veio lembrar,  oportunamente, esta efeméride:

"Emboscada em Duas Fontes/Bangacia

Pelas 20h30 do dia 01 de outubro de 1971 (há 54 anos) uma coluna de Patrulhamento Auto por todas as Autodefesas da CCS/BCaç 2912 foi emboscada em Duas Fontes/Bangacia.

No local faleceram cinco militares continentais e houve quatro feridos graves.
Passadas poucas horas a rádio da 'Maria Turra' anunciou a morte de seis militares na emboscada. Errou.

Dos evacuados para o HMR 241, em Bissau, faleceram posteriormente mais três militares. (...) Descansem em paz."


Antóno Tavares 
ex-fur mil SAM, 
CCS/BCAÇ 2912, 

2. Foram 8 os militares (incluindo 1 milícia) mortos nesta emboscada (5 no local,  e posteriormente, mais 3  no HM 241, em resultado dos ferimentos em combate). 


(i) 2 militares da CCAÇ 2700, Dulombi
  •  sold at inf, José Guedes Monteiro, solteiro, natural de São João da Folhada, Marco de Canaveses (foi inumado no cemitério da sua terra);
  • 1º cabo at inf, Rogério António Soares, casado, natural de Canas de Senhorim,  Nelas (inumado no cemitério paroquial de Oliveira do Conde - Carregal do Sal).

(ii) 5 militares da CCS / BCAÇ 2912, Galomaro (dos quais dois já no HM 241, Bissau, dias depois)

  • 1º cabo bate-chapas , Alfredo Tomás Laranjinha, solteiro, natural de Lumiar, Lisboa (inumado no cemitério paroquial de Pombais, Odivelas);
  • sold mecânico auto Leonel José da Conceição Barreto, solteiro, natural de Guia, Albufeira (inumado no cemitério da sua terra natal);
  • sold trms, José Peralta de Oliveira, solteiro, natural de Souto da Casa, Fundão (inumado no cemitério da Covilhã);
  • sold apontador de metralhadora, Luís Vasco Fernandes, solteiro, natural de São João da Pesqueira (inumado no cemitério Paroquial de Pereiros; ferido em 1 de outubro de 1971, vindo a morrer a 5, no HM 241, Bissau);
  • sold sapador, José Ferreira, casado, natural de Longos, Guimarães (inumado no cemitério da sua terra natal; ferido em 1 de outubro de 1971, vindo a morrer,a 6, no HM 241, Bissau).
(iii) 1 milícia, do Pel Mil 288 / CMil 30, Dulombi
  • sold milícia, Iderissa Candé, casado, natural de  Jemjelém,  Galomaro, Bafatá (inumado em Galomaro: falecido a 20 de outubro).
  •  
Repare-se que dos 8 mortos acima listados, só três são atiradores ou operacionais p.d, sendo os restantes (i) um bate-chapas, (ii)  um mecânico auto, (iii) um operador de transmissões, (iv) um sapador e (v) um milícia.

 Voltaremos, oportunamente, a falar desta emboscada que afetou profundamente, na altura, o moral do pessoal da CCS/BCAÇ 2912. 

Terá havido erros no planeamento e execução deste patrulhamento auto, à noite. Um atividade de rotina, ao que parece, mas feita em parte por pessoal "atiruense", sem desprimor para ninguém.  A coluna, de duas viaturas (1 Unimog 404 e 1 Unimog 411), levava 1 secção da CCAÇ 2700 e 2 secções da CCS/BCAÇ 2912.   


2. Comunicado do PAIGC de 7/10/1971 assinado por Constantino dos Santos Teixeira (Tchutchu) sobre a emboscada de 1/10/1971
 


O Constantino dos Santos Teixeira (nome de guerra, "Tchutchu"), um dos históricos "comandantes" do PAIGC, formados na Academia Militar de Nanquim, China: distinguiu-se na Frente Sul; em finais de 1971 liderava a Frente Bafatá / Gabu Sul. 

Foto; John Sheppard & Granada TV, in Liberation of Guinea, Basil Davidson. Acedido em: A Brief History of PAIGC (com a devida vénia...).

Recorde-se que o "Tchutchu" frequentou, em 1960, o 1º Curso de Sargentos Milicianos, juntamente com o Domingos Ramos e outros futuros combatentes do PAIGC, e ainda  com o nosso Mário Dias. Deve ter desertado já como 1º cabo miliciano, tal como Domingos Ramos.

 Depois da independência da Guiné-Bissau, Teixeira desempenhou várias funções governamentais: (i) foi ministro do Interior, no tempo de Luís Cabral; e (ii) após a morte de Francisco Mendes (que era Primeiro-Ministro) a 7 de julho de 1978, Teixeira assumiu temporariamente o cargo de Primeiro-Ministro: por pouco tempo, de 7 de julho até 28 de setembro de 1978, quando João Bernardo Vieira foi nomeado Primeiro-Ministro.

Após o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, o "Tchutchu", uma figura prestigiada do PAIGC,  também caiu em desgraça, como outros elementos próximos de Luís Cabral, tendo ficado em prisão domiciliária em Bolama; morreu em 1988 ("apareceu morto dentro do carro em Bissau", diz o Mário Dias, que foi seu colega de recruta).



Fonte: (1971), "Comunicado de guerra [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40550 (2025-10-4)


Guiné > PAIGC > Comando da Frente Bafatá > Gabu Sul > 1971 > Comunicado, assinado por Constantino dos Santos Teixeira ("Tchutchu"), sobre os resultados da emboscada montada pela guerrilha a forças do BCAÇ 2912 (CCS e CCAÇ 2700) na estrada Galomaro - Bangacia (ou Duas Fontes, em 1 de outubro de 1971.

O documento original é do Arquivo de Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, reproduzido, na página 67, no catálogo da exposição de fotografia do Américo Estanqueiro (*).

É um notável documento, objectivo, seco, brutal, sucinto, escrito em português (quase perfeito), e revelador dos valores, da organização e da disciplina (revolucionária) dos combatentes do PAIGC... O resultado do "saque" (despojos dos mortos foi devidamente, burocraticamente, discriminado e reportado a Conacri, onde estava estado-maior do Partido).


Reprodução do documento (LG);

Comando Frente Bafatá. Gabu Sul, 7/10/71

Comunicado

Dia 10/1/71, os nossos combatentes numa emboscada
feita na estrada Galomaro-Bangacia,
conseguiram destruir dois camiões militar[es], 
maioria dos ocupantes liquidados; 
deixaram no terreno 6 mortos confirmado[s] pelo nosso c/ [camarada],
e apanharam 5 espingardas G-3
e alguns carregadores da mesma arma,
e apanharam 2 relógios, 
(302$50) trezentos e dois escudos e cinquenta centavos
 e nove (9) vacas
onde mandaram 5 para Quembera [ou Kambera] **, e ficaram com 4 no interior do país.

O c/ [comarada] Paulo Maló mandou-me dizer para pedir à direcção do Partido, 
para que o c/ [camarada], M’ Font Tchuda (?) N’ Lona estava sem relógio[;], 
resolveram deixá-lo com um dos dois relógios apanhados durante a acção. 
Também trouxeram um prisioneiro, ele encontra-se con[n]osco.

Durante a operação tivemos dois feridos não grave[s], 
são eles Canseira Sambu, N’ Dankena (?) N’Hada.

Segue[m] com o portador as 5 espingradas G-3 apanhadas ao inimigo, 
e os outros objectos.

Saudações combativa[s].

Constantino dos Santos Teixeira (Tchutchu)



3.. Ficaram ecos desta terrível emboscada na memória dos vindouros. Leia-se por exemplo este excerto de um poste do nosso camarada Juvenal Amado (CCS/BCAÇ 3873, Galomaro, 1972/74)

"Duas Fontes: local onde abastecíamos de água perto de Bangacia. Era um local que inspirava confiança, mas não podemos esquecer que essa mesma confiança custou a vida a seis camaradas do Batalhão antigo [,BCAÇ 2912, 1970/72,] que ali foram emboscados.

Bangacia foi também destruída por um ataque durante a nossa comissão. Nós reconstruímos a povoação com ordenamento tipo Baixa Pombalina, com escola, posto médico e o PAIGC nunca mais atacou. Deve ter considerado que era uma coisa boa a manter para quando a paz chegasse. E tinham toda a razão".

domingo, 1 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25901: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata! " (ten cor Fernando Cavaleiro, cmdt da Op Tridente)



Foto à direita: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita



1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez , por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).

2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à BAC (Bateria de Artilharia de Campanha) (ou ao BCAÇ 600, estamos na dúvida).

Este Pel Art participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos  na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964). O texto que se segue, será completado por um apontamento do Mário Dias sobre o "alferes Carvalhinho" como comandante do Pel Art que apoiou as NT no Como.

 
Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > O sargento do Pel Art / BAC obus 8.8, comandando pelo alf mil art José Álvaro Carvalho. O obus .8,8 cm m/943.possuía uma plataforma circular,  fazia tiro empregando munições de carga variada (granada explosiva 11,3 kg e granada de fumos) tnha em alcance de 12250 metros a + 44º.  Peso: 1796 kg (incluindo reparo). Tracção por tractor de rodas. Na Op Tridente terão sido disparadas c. 1200 granadas de obus 8,8.


Fotos  (e legendas): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (*)


Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata"



Era noite e o alf mil art Carvalho, cmdt do Pel Art 8.8,  preparava-se para dormir quando foi chamado ao comando do batalhão porque o rádio emitia preocupantes pedidos de socorro, que partiam dum pelotão estacionado a cerca de 7 km que estava a ser atacado por um grupo numeroso de guerrilheiros impossíveis de conter sem ajuda.

A água, a lama e a mata cerrada que na zona crescia tornavam impossível enviar reforços à noite,  só de manhã. Mandaram-lhe ver o que conseguia fazer com os obuses. 

O pelotão a cerca de 7 kms de distância, encontrava-se entre os atacantes e um canal e rodeado de mata com lama exceto por onde estava a ser atacado. Só havia a possibilidade de fazer fogo de barreira para trás dos atacantes e começar a rodar os tubos na direcção do pelotão, havendo sempre o perigo de com algum descuido lhe acertar. As pontarias em direcção eram mais delicadas que em alcance. No rádio, os pedidos de socorro sucediam-se cada vez com mais insistência.

O alferes decidiu trabalhar só com um obus e verificar pessoalmente as pontarias. Disse ao sargento para carregar sempre e só o primeiro obus e só disparasse por sua ordem depois da pontaria ser por si verificada.

− Alça 8000 jardas, direcção 81º.

Verificou os elementos introduzidos pelo apontador e ordenou:

− Fogo!

A primeira granada partiu. Disparou mais 3 granadas com alcances intervalados de 300 jardas.

Ouviu-se no rádio :

− Mais para cá. Estão a cair longe. Mais para cá!

Sempre junto do apontador disse-lhe :

− Alça 7500 jardas, direção 80º. 

Verificou os elementos e ordenou:

− Fogo!

Mandou disparar mais 2 granadas com alcances de 300 jardas para mais e para menos.

No rádio ouviu-se:

− Está melhor. O ataque diminuiu. Mas mais para cá.

A voz já estava menos assustada mas pedia granadas para junto de si próprio. A preocupação que tinha de acertar no pelotão aumentou.

− Alça 7200 jardas, direção 79.5º. 

Verificou de novo os elementos e ordenou:

− Fogo!

No rádio ouviu-se:

− O ataque continua a diminuir. Mas mais para cá! Mais para cá!

Mandou disparar outras 2 granadas com a diferença no alcance de mais e menos 300 jardas. O rádio continuou a pedi-las mais próximas, tendo chegado á direção de 79º. Àquela distância,  1º representava muitos metros. Daqui a sua preocupação. Continuou a disparar granadas de flagelação para a zona com direções diferenciadas em alguns minutos até o operador rádio dizer:

− Obrigado, o ataque terminou por agora.

A preocupação que teve nesta operação fê-lo desprezar a necessidade de abrir a boca quando de cada disparo, o que lhe originou a perfuração dum tímpano com infeção e dores violentas nos dias que se seguiram. O médico começou a dar-lhe injeções de penicilina 2 vezes por dia e só passadas 2 semanas conseguiu entrar de novo em operações com o ouvido muito protegido e afastado das zonas de disparo tanto quanto possível .

No dia seguinte o comandante do batalhão visitou o local de helicóptero e verificou que tinham rebentado granadas a cerca de 150m do sítio onde o pelotão se encontrava estacionado.

(Revisão / fixação de texto/ título e subtítulo: LG)



2. Excerto do poste P356 (**),  de Mário Dias, ex-srgt 'comando' (Brá, 1963/66), que participou na Op Tridente, integrando o Gr Comds do alf mil 'cmd' Maurício Saraiva

(...) A Base Logística onde também funcionava o posto de comando, estava ampliada e melhorada. Pousavam lá os aviões ligeiros (Auster e Dornier) bem como helicópteros desde que a maré não estivesse totalmente cheia. A areia molhada formava uma excelente pista de aterragem. 

Também já lá estavam duas bocas de fogo de obus 8,8cm, comandadas pelo alf mil Carvalhinho, exímio tocador de guitarra e igualmente exímio tocador de garrafa de cerveja que nunca abandonava.

Uma tarde, depois de almoço, estava eu a descansar um pouco e ouvi um tiro de obus. Fui ver. O alferes Carvalinho, de calções, tronco nu, indispensável cerveja na mão, alguns passos atrás das peças ia ordenando ao apontador:

 Pá, levanta um bocadinho… não, foi demais, baixa… um pouco para a direita… está bom. Fogo!

E a granada partiu rumo ao seu destino. Salta de lá o tenente-coronel  Fernando Cavaleiro, comandante da Op Tridente:

 
− Ó Carvalinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata!

 
− Calma,  meu tenente coronel, isto vai ter aonde eu quero . 

E continuou:

 Eh pá, baixa um pouco… está bom. Fogo! 

E foi assim até disparar 4 granadas. Acercando-me dele perguntei:

− Meu alferes, para onde foram esses tiros? 

Mostrando-me a carta,  indicou:

 Para o cruzamento destes caminhos. 

E apontou um cruzamento de um caminho com a picada de Cassaca.

Não é que, alguns dias depois, ao passar pelo referido local, lá estavam, muito próximos uns dos outros, os 4 impactos das granadas?!

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG)
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25830: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VI: dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, e carne e ovos de tartaruga

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25860: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte I (Mário Dias / Armor Pires Mota)










Croquis da Op Tridente (1964),  


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)



Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos,  fotografados a 24 de Setembro de 2005, durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG  (1964/66). 

Da esquerda para a direita: 

(i) sold João Firmino Martins Correia; 

(ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; 

(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; 

(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; 

(v) fur Mário F. Roseira Dias; 

(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco 

(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Havia, na região de Tombali, pelo menos dois Pinho Brandão, o Afonso (em Catió) e o Manuel (no Como,  e depois Catió e mais tarde em  Ganjolá). Julgamos que fossem irmãos. Seriam oriundos de Arouca, onde este apelido, Pinho Brandão, é comum.

O Afonso foi morto logo no princípio da guerra,  em 1962/1963, por balantas de Catió, que lhe queriam assaltar (e apropriar-se de) a sua casa. 


Era pai da nossa amiga, tabanqueira, Gilda Pinho Brandão (ou Gilda Brás) (foto à direita, cortesia da própria), filha de mãe fula; foi trazida para Portugal, aos 7 anos, em 1969, passando a viver   numa família de acolhimento.

O Afonso era também do engº agr. Carlos Pinho Brandão, colega, no Instituto Superior de Agronomia / Universidade Técnica de Lisboa,  do nosso grande e saudoso amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014).

O Manuel de Pinho Brandão (o da ilha do Como) foi, a par do Álvaro Boaventura Camacho (Cufar) (cabo-verdiano de origem madeirense), um dos grandes proprietários agrícolas da região de Tombali, e conhecidos produtores (e comerciantes) de arroz... Enfim, seria um dos poucos colonos brancos existentes no território. Resta-nos saber a história do seu passado.

É pena, de facto,  não haver histórias de vida destes homens. Com a ocupação da ilha do Como em 1963, pelo PAIGC, o Manuel terá ido para Catió (vivia lá no tempo do J. L. Mendes Gomes, em 1964) e depois para Ganjolá (segundo o Victor Condeço, 1967). 

Aqui havia um pelotão destacado (e foi lá que morreu o meu primo José António Canoa Nogueira, o primeiro lourinhanense a morrer no CTIG, em 23 janeiro de 1965).

O Manuel terá sido desterrado para a Guiné possivelmente no final dos anos 20 ou princípíos dos anos 30 (ainda não encontrámos fonte segura que comprove este facto). De qualquer modo, naquela época a Guiné e Timor eram os piores lugares de desterro, usados tanto pela República como pela Ditadura Militar.

Há várias referências a esta figura,  o Manuel Pinho Brandão, cuja casa na ilha do Como  ficou popularizada pela Op Tridente, com a reocupação pelas NT  (em janeiro-março de 1964).  O Mário Dias (que foi para a Guiné com 14 anos, na década de 50), ainda o conheceu, pelo menos de vista,  em Bissau.

Vejamos algumas referências a este arouquense, desterrado no sul da Guiné, que era também o celeiro do território, antes do início da guerra.
 
 (i) Mário Dias [ex-fur mil 'cmd',  
Cmds do CTIG, 1963/64] (*)


(...) A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória.

Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. (...)

(...) A tabanca de Cauane, bem como as restantes, estava praticamente destruída assim como a casa do comerciante Brandão, ali bem próxima. 

Meses antes, já a aviação havia actuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil. 

Tarefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras. 

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)
   
(...) Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, ten cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23h30 do dia 20 de março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. 

Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02h30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas. (...)

(...) Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como. (...)



Guiné > Regiáo de Tombali >  Janeiro de 1964 > Op Tridente >  Desembarque das forças do BCAV 490 na Ilha do Como... Percebse-se, por esta foto, que as praias do Como podiam mter centenas de metro de areal e tarrafo na maré-baixa.

Foto (e legenda): © Armor Pires Mota  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(ii) Armor Pires Mota [ex-alf mil at inf, 
CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66] (**)

Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali,  em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna. 

Ele casara com a filha da rainha  dos Bijagós e vivia agora  em Catió. O filho,  que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).

(...) Como, 17 de fevereiro de 1964

A missão,  naquela manhãm  era destruir o poço que fovava na tabanca junto ao caminho que já tinha uma história de lutas encarniçadas.

Saímos cedo para criar surpresa. Passámos calmamente por detrás da casa do Brandão, onde já estavam instalados os morteiros para possível apoio (...).

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
_______________

Notas do editor:

 (*)  Vd. postes de:


16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

domingo, 18 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25856: Humor de caserna (69): Na Op Tridente, entre ferozes combates, também havia lugar para a boa disposição e até para se fazer uns piqueniques na praia, com uns bons nacos de vitela, uma boa perna de cabrito ou uns ovos mexidos de tartaruga (Excerto de Armor Pires Mota, "Tarrafo", 1965, pp. 52/53)


Guiné > Região de Tombali >  NRP Fragata Nuno Tristão > 14 de janeiro de 1964 > A caminho da ilha do Como, a "ilha maldita".
Foi utilizada em apoio de fogo e posto de comando das forças empenhadas na Operação Tridente (jan-mar 1964)  para reocupação da ilha de Como.



Guiné > Região do Oio > Jumbembem >c. 1964/65 > CCAV 488 / BCAV 489 (Bissau, Ilha do Como, Jumbembem, 1963/65) > A padaria


Fotos (e legendas): © Armor Pires Mota  (201). Todos os direitos [Edição e legendagem complementar : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Armor Pires Mota, que nos honra com a sua presença na Tabanca Grande,  tem no nosso blogue 100 referências. Para além de ter sido camarada nosso, é um hoje um escritor consagrado, com cerca de 3 dezenas de títulos, entre crónica, poesia, romance e ensaio, um parte dos quais sobre a sua experiência humana e operacional  no T0 da Guiné, entre junho de 1963 e junho de 1965. 


Alguns dados biográficos do autor:

(i) nasceu a 4 de setembro de 1939, em Águas Boas, freguesia de Oiã, Olivceira do Bairro;

(ii) estudou no Seminário de Aveiro, tendo chegado a cursar teologia;

(iii) abandonou a carreira eclesiástica, em 1961, ano em que revelou o seu talento lietrário com o livro Cidade Perdida;

(iv) enquanto frequentava o ensino liceal em Sangalhos, foi chamado a cumprir o serviço militar;

(v) foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, em 1963, sendo alferes miliciano  da CCAV 488/BCAV 489 (Bissau, Ilha do Como, Jumbembem, 1963/65);

(vi) ainda na Guiné começou a publicar no Jornal da Bairrada o seu diário de guerra, sob a forma de crónicas, que, em 1965, iiria reunir em livro, Tarrafo, que a censura mandou rapidamente retirar do mercado (a guerra é retratada com demasiada crueza);

(vii) em 1974, tornou-se pequeno empresário, depois de trabalhar em várias empresas (Caves Aliança e Handy), mas continuou a escrever, colaborando em diversos jornais e revistas. (Fonte: adapt de Palimage)

Alguns dos seus melhores livros, além de Tarrafo - Crónica de Um Alfe5rs na Guiné (2013): A Cubana que Dançava Flamenco (2008); Estranha Noiva de Guerra (2010).



2. Em  Tarrafo: crónica de uma guerra (edição de 1965)  ele relata, na primeira pessoa do singular, o seu quotidiano como alferes miliciano, da CCAV 488/BCAV 489 (1963/65), primeiro na região do Oio (parte 1), depois na Ilha do Como, durante a Op Tridente (parte 2) e por fim na região de Farim (parte 3). Ninguém até então, como combatente, tinha tido a ousadia de o fazer, combater, escrever e publicar no jornal da terra,

Cotejámos, em tempos, as duas edições de Tarrafo (1965 e 1970):  a nossa preferência foi, inequivocamente,  para a primeira, para a sua escrita espontânea, potente, telúrica, de cronista de primeira água, sem autocensura, que voltou a ser publicad na íntegra na Palimage (dem 2013).

Na edição de 1970, revista, o autor foi obrigado a aceitar  os "cortes" impostos pelos censores da época. A 2ª edição (autorizada) perde em vigor, garra, frescura, autenticidade. 

Uma e outra estiveram esgotadas durante anos. Por isso já aqui publicámos, com a devida autorização do autor,  uma parte de Tarrafo [imagem da capa, no lado direito; edição de 1965].


3. Segundo o nosso camarada Mário Dias, outro cronista da Op Tridente, a luta pela reocupação da Ilha do Como travou-se entre 14 de janeiro e 24 de março de 1964. A ilha, onde não havia qualquer autoridade administrativa portuguesa, fora  ocupada pelo PAIGC logo em 1963.

(...) As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

"Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha". (...)


Reproduzimos hoje duas páginas deliciosas da edição de 1965 (pp. 52/53), em que o Armor Pires Mota também revela o seu talento como humorista... Afinal, no decurso da Op Tridente, entre ferozes combates, também havia lugar para a boa disposição e até para se fazer uns piqueniques, com uns bons nacos de vitela,  uma boa perna de cabrito ou uns ovos mexidos de tartaruga...Nem tudo foi só guerra na ilha do Como que o PAIGC, com a sua habitual lata, chegou a proclamar como território da República Independente da Ilha do Como.





E, às vezes, até dá para rir.

              − Agarra! Pega essa!


Fonte: In: Armor Pires Mota: Tarrafo: crónica de guerra. Aveiro, 1965, edição de autor (livro retirado do mercado, por ordem da censura), 
pp. 52-53. Excerto da parte 2 [Operação Tridente, Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964].  Cortesia do autor.

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