segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
__________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Luis Graça, "Armazens do Povo", este termo para Amílcar Cabral e para os dirigentes do PAIGC, não era para ser um mito, embora difícil para pôr em prática pelo menos dentro das fronteiras da Guiné, faziam aqueles dirigentes os "possíveis e impossíveis" para, pelo menos aparentemente aos olhos de cubanos e soviéticos, fazer parte de toda a organização da luta.

Amílcar Cabral, e os caboverdeanos que dirigiam o PAIGC precisavam dos cubanos e soviéticos para sobreviver, tanto contra Spínola, como contra Skou Touré e mesmo Senghor e a França.

Tanto durante a luta e principalmente após a luta, os dirigentes do PAIGC, faziam tudo para pôr em prática as ideias comunistas.

Pois além de ser um reconhecimento pela ajuda total de Fidel Castro e os soviéticos, em armas, universidades cubanas e soviéticas à disposição dos jovens guineenses, continuou uma guerra enorme, maior ainda do que aquela contra Spínola, que psicologicamente este teve enorme sucesso, uma guerra que se desenvolveu durante 28 anos no país irmão, Angola.

E a Guiné era um dos pontos de apoio para essa guerra.

Daí ter continuado sempre a funcionar, mesmo com Nino Vieira, já sem os Cabrais, os tais Armazéns do Povo, embora já menos disfarçadamente.

Uma coisa que não passava abertamente pelos armazens do povo era o vinho de palma, o vinho de cajú, artesanato, e aguardente de cana.

Teoricamente os Armazens do Povo era para levar a sério, pois os guineenses e caboverdeanos sabiam que eram como uma religião para cubanos e soviéticos as ideias socialistas, e a presença dessa gente em Bissau, era constante e muito premente, eram militares, médicos, conselheiros com uma carreira semanal aérea Rússia/Bissau.

E ainda havia a literatura comunista semi-gratuita traduzida para português e publicada pela Caminho do nosso PCP que demonstrava por a mais b que estavamos a dois passos do socialismo em toda a África.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Diz o Rosinha, e está bem observado:

"Uma coisa que não passava abertamente pelos armazens do povo era o vinho de palma, o vinho de cajú, artesanato, e aguardente de cana"...

Afinal, o Zé Balanta não era tão parvo como o pintavam...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não há guerras sem álcool e drogas... Na "guerra da Ucrânia", o vodca é precioso a ponto de se tricar por gasolina e gasóleo...

É pena é não haver "estatísticas": na Guiné, consumiu-se muito uísque, cerveja, "água de Lisboa" e outras bebibas, do lado da nossa tropa; mas também vinho de palma, vinho de cajú, aguardente de cana, do lado dos combatentes do PAIGC, nomeadamente entre os animistas e cristãos... (Será que os muçulmanos, como os nalus e os mandingas, no mato, não bebiam ?)...

Valdemar Silva disse...

Ant. Rosinha, vamos lá ver uma coisa.
Então, com o fim da guerra e com a descolonização quem é que por lá ficou a "tomar conta" da comercialização da comidinha em geral?
Teria de haver uns Armazéns de distribuição do Estado, principalmente para os produtos essenciais como o arroz. Depois, esses Armazéns passaram a ser os "Armazéns do Povo" para o PAIGC ficar bem visto com os soviéticos e cubanos? Logicamente, seriam os próprios ideais políticos do PAIGC, cabo-verdianos e guineenses.
Evidentemente que estas coisas de comercialização da comidinha pelo Estado é muito complicada, e o 'agora vai ser tudo uma maravilha' nem com o plano Marshall funcionou plenamente nos primeiros anos na Alemanha.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, os armazens do povo a funcionar entre os combatentes, durante a luta, quer dentro das fronteiras ou fora dos limites da Guiné, acredito que até seria uma solução bem prática.

E Amílcar Cabral que pelo que escreveu vemos que era bem organizado, e assim soube muito bem aproveitar as oportunidades que lhe surgiram.

Assim, aproveitou até ao tutano a juda de Fidel Castro e dos soviéticos.

E esta dos Armazens do povo entre os combatentes do PAIGC, Amílcar teria levado mesmo a sério, pela simples razão que era um processo muito prático, naquela guerra.

Mas que se tornaria totalmente impraticável em qualquer aambiente tribal africano em tempo de paz.

Um Armazem comum para ser administrado por balantas, fulas, papeis, e mais umas tantas etnias?

A coisa funcionava assim, se chegava um barco com arroz oferecido, hoje, amanhã já estava vendido a comerciantes nacionais ou de países vizinhos, sem ninguém denunciar.

E depois até poderia aparecer a ser vendido no mercado negro clandestinamente.

Atenção que as fronteiras na Guiné são tremendamente porosas, porosas etnicamente, geograficamente os marcos estão lá na fronteira, mas não separam nada.

No tempo do contrabando na Europa as fronteiras eram para ser furadas, no caso do tabaco, café e minério em Portugal também era assim.

Valdemar, o PAIGC mesmo em paz teve que manter aquele sistema dos Armazens do Povo, apenas para manter o tal sistema do racionamento soviético e Cubano, que não funcionava e o povo, ou melhor, os povos não entendiam nem aceitavam.

E não colaborando, o povo não produzia nem arroz nem mancarra, e se produzia não entregava nesses armazens, e armazens vazios não podiam racionar nada.

O sistema comercial normal não existia, até que desistiram com a história da perestroica, e o comércio ficou livre e apareceu tudo.

Sabes Valdemar o que é não haver nada comestível à venda (a crédito, a dinheiro ou pago com trabalho ou pedir como esmola ou emprestado) desde o arroz, pão, cebolas e alhos e sal, carne, peixe e teres em casa uma duas ou mais bocas para alimentar?

Será como estar num deserto e não vermos nada em nenhuma direcção, será não ter esperança de nada?

Nós também sabemos que por cá havia casas onde havia a "sardinha para três", mas em geral nessas casas, o "copo de três" era só para um.

Era outra fome.





Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Como em tudo que diz respeito ao PAIGC e a sua "gloriosa luta de libertação", os Armazéns do povo não passou de mais um mito para Sueco ver. A rede que, aparentemente, funcionou durante a luta nas chamadas zonas libertadas, eram postos ou depósitos móveis para a distribuição das ajudas dos países Nórdicos com especial destaque para a Suécia que contribuía com ajuda humanitária. Estou em crer que, embora a propaganda do partido fale do povo e da comercialização através da permuta, a realidade dos factos diz-nos que os principais destinatários seriam os guerrilheiros das barracas do interior que, como se sabe, tinham muitas dificuldades de abastecimento.

Caso os famosos Armazéns tivessem funcionado bem no mato em plena guerra, era suposto o sucesso ser maior nas condições do pós-guerra, mas na verdade, os vícios do consumo gratuito e da gestão danosa e irresponsável não permitiram o florescimento desta rede de comércio nacional que estava destinada para substituir o comércio das lojas da casa Gouveia e Ultramarina em toda a extensão do território. Quando ocorreu o golpe de 14 de Novembro de 1980, embora os Suecos ainda continuassem a fornecer auxilio "humanitário" já com algumas contrapartidas, na verdade, já não restava nada destes Armazéns para além de prateleiras vazias e, de tal maneira que o regime que surgiu do golpe de Nino Vieira foi obrigado, para além de solicitar a ajuda do FMI, uma instituição do capitalismo outrora abominado, a proclamar a abertura ao comércio privado para que o país não morresse de fome.

De salientar que o Consulado do Gen. Spinola na Guiné tinha criado alguns hábitos de consumo, mormente, no meio da população urbana e não só, que os dirigentes do PAIGC queriam extirpar da raiz o que criou uma situação de fome e um ambiente explosivo de mal estar que acabou por desembocar na mudança do regime de Luís Cabral.

No que diz respeito ao abate de vacas por ocasião da morte dos donos como prática de "choros" entre os Fulas, referido no texto, quero esclarecer que o autor deve ter confundido com a prática animista de "toca Choros", prática que, na verdade, não acontece entre os Fulas, pois para além de Muçulmanos (não islamizados como frequentemente se refere nos textos de autores portugueses), não têm o hábito de matar mais que 1 ou 2 animais para consumo dos participantes por ocasião de cerimónias fúnebres de pessoas idosas e chefes de família.

Cordialmente,

Cherno Baldé