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sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de um dos mais escabrosos ditadores africanos, Idi Amin, e da tragédia do Ruanda. Desta, recordo-me perfeitamente, trouxe-me a convicção absoluta que naquele ano de 1994 eu já estava a viver, na plenitude, a civilização do espetáculo, mediada por talk shows, reality shows, arraiais de futilidades, mexeriquices, a morte em direto. Tinha ido fazer uma pós-graduação na Universidade de Lovaina a Nova, enquanto comíamos, tanto ao almoço como ao jantar, os ecrãs exibiam filas intermináveis de seres humanos em fuga, tudo sem comentários. Ninguém conversava enquanto levava à comida à boca, a olhar os tais caminhantes exaustos, esqueletos em movimento, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados e submissos, como os descreve Ryszard Kapuscinski. Talvez por pudor, o eminente jornalista polaco não revela que os esqueletos por vezes se transformavam em cadáveres, e era assim que partilhávamos a morte em direto, em estradas em direção ao Zaire.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2)

Beja Santos

Em “Ébano”, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, escreve este magistral jornalista a propósito de Idi Amin: “É o ditador mais conhecido em toda a História da África moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo”. É preciso entender a identidade do monstro, e o autor é minucioso a descrever o seu percurso até se tornar, graças às promoções dos ingleses, general. Chega ao poder por golpe de Estado acompanhado de massacre, criam-se câmaras de tortura. Um mês depois do golpe, Amin autonomeou-se presidente, depois marechal, depois marechal de campo e, por último, tornou este título vitalício. Oiçamos Kapuscinski: “O carro em que se deslocava era escolhido em função do uniforme que envergava. Ao uniforme de gala correspondia o Mercedes preto, ao fato de treino para um passeio o Maserati, e ao uniforme de campo um Range Rover do Exército. Este último carro parecia um automóvel saído de um filme de ficção-científica: estava equipado com uma verdadeira floresta de antenas, arames de todos os tipos, tubos, faróis. No interior carregava granadas, pistolas e facas. Era um ditador que não confiava em ninguém, dormia cada noite em paradeiros diferentes. Era ele que entrava em contato com os seus ajudantes, era ele que decidia com quem falava, quem queria ver. Quando queria dar a conhecer remodelações no Governo transmitia-as via rádio. O seu poder era monopolístico, a comunicação centrava-se nele”.

E assim finda este currículo nefasto: “O domínio de Amin durou oito anos. De acordo com diversas fontes, o marechal terá assassinado durante a sua vida entre 150 mil a 300 mil pessoas. Depois foi ele quem se conduziu a si próprio para o abismo. Uma das suas obsessões era o ódio ao presidente da vizinha Tanzânia, Julius Nyerere. Em finais de 1978, atacou aquele país. O exército da Tanzânia reagiu. Os soldados de Nyerere invadiram o Uganda. Amin fugiu para a Líbia, depois instalou-se na Arábia Saudita, que o recompensou pelo seu esforço de divulgação do Islão. O exército de Amin desfez-se uma parte voltou para casa, a outra parte a viver de assaltos. Nessa guerra, o que perdeu o exército da Tanzânia: um tanque”. E Kapuscinski elenca o drama desse Uganda flagelado por ditadores e guerras tribais.

Não menos impressionante é o que ele escreve sobre o Ruanda, onde em 1994 ocorreu um monstruoso genocídio. Tenha-se em conta a descrição do jornalista:
“O Ruanda é um país montanhoso. Embora o continente africano se caracterize mais pelas planícies e pelos planaltos, no Ruanda predominam as montanhas. Algumas atingem os 2,3 mil metros de altitude e até mais. É por isso que, muitas vezes, se faz referência a este país como sendo o Tibete de África. Enquanto as populações dos estados africanos são geralmente compostas por membros de diversas tribos (no Congo, vivem 300 tribos, na Nigéria 250), no Ruanda existe apenas uma comunidade, a nação dos banyaruandas, dividida tradicionalmente em três castas: a casta dos proprietários das manadas de vacas – os tutsis (14% da população) –, a casta dos camponeses – os hutus (85%) – e a casta dos servos e criados – os twas (1%). Este sistema de castas (com algumas analogias em relação à Índia foi criado há séculos, mas é ainda hoje controversa a sua origem. Discute-se se terá sido no século XII ou XV, porque não existem fontes escritas sobre esta matéria”.

Era uma colónia pouco apetecível, o Ruanda tinha sido atribuído à Alemanha, facto que os ruandeses ignoraram, e os alemães nunca manifestaram grande interesse por esta colónia que passou para as mãos da Bélgica, depois da II Guerra Mundial, que também não mostrou muito entusiasmo, visto que o Ruanda ficava longe da costa e era na época um país pobre em matérias-primas. Por todas estas circunstâncias, o sistema social secular dos banyaruandas manteve-se intato até à segunda metade do século XX. Os ruandeses eram governados por um monarca, a vaca servia de medida para tudo, os tutsis eram proprietários de manadas por serem uma casta dominante, e os hutus formavam a casta dos camponeses. O autor explica o relacionamento interétnico: “Entre tutsis e hutus existiam relações de vassalagem; o tutsi tinha ascendente sobre o hutus, seu criado. Os hutus eram a clientelados tutsis. Eram camponeses que viviam do cultivo das terras. Uma parte das colheitas era entregue ao senhor, que os protegia e lhes dava uma vaca. Tudo como no feudalismo”. Em meados do século XX, vai crescendo a natureza do conflito, ambas as etnias precisam de terra, precisam de mais espaço e o país tem dimensões diminutas. Em 1959 rebenta no Ruanda uma revolta de camponeses que culminou com a destituição do rei, a gironda e o terror.

“Multidões de camponeses, massas de hutus libertados avançam armados com catanas, picaretas e lanças contra os seus senhores e mestres, os tutsis. Dá-se um enorme massacre, a que há muito já não se assistia em África, incendeiam-se propriedades, cortam-se cabeças. Fugiram dezenas de milhares de tutsis e os camponeses hutus tomaram o poder. Depois destes acontecimentos, a nação ficou dividida em dois campos inimigos. Os tutsis planeiam vingança, em 1963 atacam a partir do Sul, do vizinho Burundi. Dois anos mais tarde, dá-se uma nova invasão dos tutsis, segue-se um enorme massacre contra os tutsis pelo exército dos hutus. Há quem diga que 50 mil tutsis foram eliminados pelos hutus". Mas ao lado está o Burundi e Kapuscinski descreve alterações no regime político, e também no Uganda, onde se estava a formar um exército experiente de tutsis desejosos de vingança. Na noite de 30 de setembro de 1990, saem dos quarteis do exército ugandês e entram no Ruanda ao romper da aurora. Vai começar o genocídio, a França intrometeu-se, mandou paraquedistas, o país parecia dividido, era um estranhíssimo compasso de espera. Os estados africanos forçaram o entendimento entre o governo legítimo e a guerrilha, a Frente Nacional do Ruanda. Em abril de 1994 é abatido, não se sabe bem por quem, um avião que se fazia à pista do aeroporto de Kigali, a capital, onde vinha o presidente. Foi o sinal para o início do massacre dos opositores do regime. Estima-se entre meio e um milhão de mortos, uma chacina sistemática durante três meses. “A maioria das pessoas não morreu por causa das bombas e das metralhadoras, mas atacada por armas muito primitivas – catanas, martelos, lanças e paus; morreu espancada e triturada”.

E as multidões puseram-se em fuga, tornaram-se um acontecimento televisivo. E as observações de Kapuscinski terminam num elevado grau de acidez:
“Enquanto durante o nacional-socialismo e o estalinismo eram os membros de instituições especiais – SS ou NKVD – que matavam, e os crimes cometidos por estas brigadas eram cometidos longe dos olhares indiscretos, no Ruanda era importante que todos matassem, que o crime se tornasse produto de uma revolta popular maciça, quase espontânea, para que não restasse alguém que não tivesse as mãos manchadas de sangue daqueles que eram tidos como inimigos do regime. Os hutus fugiram depois de serem derrotados para o Zaire. As pessoas na Europa, que viam as intermináveis colunas de pessoas, não conseguiam perceber que força era aquela que movia estes caminhantes exaustos, o que é que ordenava àqueles esqueletos que estivessem em constante movimento, em longas e densas filas, sem parar, sem comer nem beber, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados, submissos e medindo com o seu olhar vazio o caminho-fantasma de culpa e dor”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Quando surgiu este livro em 1998, foi um murro no estômago para muita gente. Uma das figuras gradas do jornalismo mundial que acompanhara sistematicamente os eventos do continente africano durante mais de quatro décadas, punha a nu novas e velhas tiranias de regimes exclusivamente africanos, com a sua encenação de massacres, genocídios, lideres paranoicos e corruptos. É impossível não sentir um calafrio a ver quilómetros de sucata soviética posta ao serviço de um terrível conflito no Corno de África. Como ele escreve: "Não é um livro sobre África, mas sim sobre algumas pessoas de lá. É um continente demasiado grande para poder ser descrito. É um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico. É apenas por uma questão de simplicidade e de comodidade que falamos de 'África'. De facto, essa África não existe sequer, a não ser como conceito geográfico".

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1)

Beja Santos

Ryszard Kapuscinski é reconhecido como um dos nomes maiores do jornalismo moderno, um repórter inigualável na cena mundial. Foi um observador direto do início do fim da era da colonização e nos quarenta anos seguintes aqui voltou, deixando testemunhos marcantes de golpes de Estado, massacres hediondos, desvelamento de estranhíssimas guerras tribais e a emergência do racismo. Para quem quer saber o que se tem passado nessa África independente é fundamental conhecer esta obra-prima do jornalismo: “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/ Porto Editora, 2018.

Tudo começa no Gana, em 1958, tempo impulsivo e de inocência, Kwame Nkrumah ainda é tratado como um semideus. E vai anotando, para que o leitor europeu saiba diferenciar em vez de minimizar ou ridicularizar:
“Os europeus e os africanos têm noções de tempo completamente distintas. A perceção que têm do tempo é diferente, como é diferente a relação que com ele mantêm. O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objetiva e com uma natureza mensurável e linear. O europeu vê-se a si próprio como um escravo do tempo, está dependente dele, é-lhe submisso. Para poder existir e funcionar tem de respeitar as suas leis férreas e imutáveis, as suas regras e princípios inflexíveis. Os africanos vêem o tempo de modo diferente. O tempo é para eles uma categoria bastante ligeira, elástica, subjetiva. O homem influencia a configuração do tempo, o modo como ele decorre e o ritmo (obviamente só o homem que vive em boas relações com os seus antepassados e com os deuses o consegue). Uma inversão completa do pensamento europeu. Daí que um africano, depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se no lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida – à espera”.

E segue-se outra observação, que se deve atrelar à anterior: “O problema de África é a contradição entre o homem e o ambiente, entre a imensidão africana e o homem indefeso, descalço e pobre que é o seu habitante. Para onde quer que nos voltemos, a paisagem é sempre imensa, tudo está vazio, sem ninguém a perder de vista. Antigamente tinham de se percorrer centenas, até milhares de quilómetros para se encontrar outras pessoas. Não havia informação, saber, progresso técnico, riqueza, mercadorias, experiências diferentes – tudo isto se mantinha longe, não chegava até ali, porque não encontrava o caminho”.

O jornalista viaja, está agora em Kampala, o Uganda dentro de dias será independente. E ele comenta:
“A política interna africana e a dos seus estados é complicada e difícil de perceber. Tal situação deve-se, sobretudo, ao facto de, aquando da partilha de África entre eles, os colonizadores europeus terem reduzido a pouco mais de quarenta colónias os cerca de dez mil pequenos reinados, federações e associações de tribos não estatais, mas independentes, que existiam neste continente na segunda metade do século XIX. Muitos desses reinos e associações tinham um longo historial de conflitos e guerras entre si. E, de repente, viram-se forçados, sem que ninguém lhes pedisse a sua opinião, a integrar a mesma colónia, sendo regidos pela mesma potência (estrangeira) e pelas mesmas leis. Mas tinha começado a era da descolonização. As antigas relações interétnicas, que tinham sido congeladas ou pura e simplesmente ignoradas pelas potências estrangeiras, ressuscitavam, tornando-se de novo ativas. Surgia a oportunidade de libertação, mas uma libertação sob a condição de que os inimigos de outrora formassem agora um estado comum, ao qual servissem em conjunto, económica, patriótica e militarmente”.

Um grande repórter é forçosamente um observador subtil, de cultura aprimorada e dotado para a escrita como escritor maior. Veja-se como Kapuscinski nos apresenta a Etiópia:
“A Etiópia Central é um planalto vasto e grandioso, atravessado por numerosos vales e desfiladeiros. Na época das chuvas, surgem imensos rios no fundo destes enormes despenhadeiros. Nos meses de verão, a maioria seca e desaparece, deixando à mostra o solo seco e gretado e fazendo com que o vento levante nuvens negras de lama, transformada em cinza pelo sol. Ao longo deste planalto, existem montes com três mil metros de altura, que em nada fazem lembrar os graníticos Alpes cobertos de neve, os Andes ou os Cárpatos. Estes são compostos por rocha cor de cobre e bronze, exposta à erosão com os cumes achatados e tão planos que poderiam até servir de aeroportos naturais”.

Apresentada a geografia, informa-nos sobre uma situação bélica descomunal:
“Estamos em meados dos anos setenta. África encontra-se no limiar de duas décadas de maior seca da sua história. Guerras civis, golpes de Estado, massacres e ainda a fome que passavam milhões de pessoas na zona do Sahel (África Ocidental) e na África Oriental (sobretudo no Sudão, no Chade, na Etiópia e na Somália) – eram algumas das facetas da crise. A maioria dos países do continente tinha sacudido o colonialismo e iniciado a sua existência de Estados independentes. Nas ciências políticas e económicas prevalecia naquela altura a convicção de que a liberdade trazia o bem-estar, de que a liberdade iria transformar, da noite para o dia, regiões miseráveis num mundo onde corressem, com abundância, leite e mel. Mas a realidade provou ser muito diferente. Nos novos países africanos, estalaram lutas pelo poder, em que ninguém olhava a meios: conflitos tribais e tensões étnicas, o poder do Exército, as tentações de corrupção, ameaças de morte. Simultaneamente, os Estados davam provas de fraqueza e incapacidade de cumprir as suas principais funções. E tudo isto numa época em que o mundo estava sob o domínio da Guerra Fria, transportada para África tanto pelo Ocidente como pelo Leste. Uma caraterística marcante da Guerra Fria consistia em ignorar pura e simplesmente os problemas e interesses dos Estados fracos e dependentes, encarando os seus dramas e acontecimentos apenas na perspetiva dos interesses próprios, sem lhes atribuir uma importância específica”.

E assim chegamos a Idi Amin, o ditador mais conhecido em toda a história da África Moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)