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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9966: Efemérides (98): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (4): O Regresso (António Dâmaso)

1. Quarta e última parte da narrativa da "Operação Mamute Doido", de autoria do nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista da CCP 121/BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária)  que participou nesta operação levada a efeito no fatídico mês de Maio de 1973.

Fotografia de alguns elementos do 3.º Pelotão da CCP 121, tirada dias antes de partir para Guidage

Legenda:
1 - Cabo Gonçalves, foi ferido no ataque ao Navio Patrulha em 20MAI73
2 - Soldado António das Neves Vitoriano, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
3 - Soldado José de Jesus Lourenço, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
4 - Soldado A Ferreira Carvalho, morto em Combate em 22JUL73 em Cubonge
5 - Soldado Manuel da Silva Peixoto, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
6 - Soldado Fernando Jorge Ferreira Dias, morto na Operação «Gato Zangado I» Nova Lamego em 05FEV74

(a) Ficaram sepultados em Guidage
(b) Os restos mortais foram resgatados e entregues às famílias em Julho de 2008


OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (4)

 O REGRESSO

No dia 30 de Maio pelas 06H30 saímos do Guidage, saí com um misto de alívio por me ver livre daquele inferno e uma tristeza enorme por deixar para trás aqueles três Bravos rapazes que abnegadamente tinham dado a sua vida pela Pátria. Ao sair deitei um último olhar para as campas desejando paz às suas almas, mesmo armado em “duro”, senti um nó na garganta e um ardor nos olhos, foi como se tivesse deixado ali três irmãos mais novos que não consegui proteger, o Lema dos Pára-quedistas “NINGUÉM FICA PARA TRÁS” tinha sido quebrado.

A minha Companhia ia em guarda de flanco esquerdo no sentido Guidage-Binta, os Fuzileiros iam no flanco direito, estávamos arrasados, alguns dos meus homens estavam mesmo em baixo. Antes da saída pedi-lhes que fizessem um esforço, pelo que acederam e lá nos dispusemos a palmilhar os quase 20km de distância, mas depois de passar a zona mais perigosa, ordenei aos que estavam com maior dificuldade para subirem para as viaturas, mas eu como tinha de dar o exemplo, fiz um esforço para aguentar.

Ao passar pela última vez pelo Cufeu lá estavam os esqueletos espalhados comidos pelos bichos, dando uma imagem fantasmagórica, um dos meus homens ia a olhar para a esquerda, de repente olha em frente, depara-se com dois esqueletos junto a uma árvore, fez uma ligeira paragem repentina, mais de respeito do que medo e no momento lembro-me de lhe ter dito para não se preocupar que aqueles já não lhe faziam mal. Ao todo passei pelo Cufeu quatro vezes. Desta vez os guerrilheiros do PAIGC, optaram por não nos incomodar, fiquei com a impressão que eles gostavam mais de atacar pessoal que passava lá pela primeira vez, pelo que chegamos a Binta sem incidentes. Ficámos a aguardar por uma lancha que no dia 01JUN73 nos transportou até Farim, nessa noite fomos dormir no Kapa3, no dia 02JUN73 seguimos em escolta a uma coluna de viaturas de Farim para Bissau, na estrada entre o Kapa 3 e Mansabá, que eu quatro anos antes tinha por lá andado a fazer segurança à construção da mesma. Viam-se algumas viaturas na berma que tinham sido incendiadas, no trajecto entre Mansabá e Mansoa, reconheci os pontos críticos por também ter feito segurança a várias colunas quatro anos antes. Chegamos a Bissalanca pelas 15 horas depois de 15 dias de martírio.

Era fim-de-semana, depois de proceder à operação de recolha do material e do entregar na arrecadação, deixei os homens na camarata e dirigi-me aos meus alojamentos, como o bar de sargentos ficava em caminho, fui lá para matar a longa sede. Ao chegar ao jardim fronteiriço dei uma cambalhota em frente e soltei um grito estridente, deixando escapar toda a raiva e emoções contidas naqueles dias, os presentes já estavam informados do que tinha acontecido, as más notícias sabem-se logo, entreolharam-se e pensaram: "Este tipo vem apanhado de todo, este não é o primeiro-sargento que nós conhecemos". Não se enganaram porque nunca mais fui o mesmo que tinha de lá saído quinze dias antes, noutras circunstâncias ter-se-iam fartado de gozar mas a situação era grave, soube disto por confidência de um deles mais tarde em conversa.

Resumindo, naquelas duas Operações, “Ametista Real” e “Mamute Doido”, sofremos ataques/flagelações em Bigene nos dias 18 e 19 de Maio à noite; na noite de 20 quando érammos transportados no Navio Patrulha que navegava no rio Cacheu, este foi atacado, tendo o meu Pelotão sofrido um ferido que teve ser evacuado. Na noite de 21 fomos atacados no Cais de Binta; no dia 23 sofremos uma emboscada na Zona do Cufeu, onde o meu Pelotão teve três mortos e o 2.º teve um ferido grave que acabou por morrer mais tarde, das seis vezes que passamos na zona de Ujeque, fomos flagelados três; não contabilizei as vezes que fomos flagelados em Guidage nos oito dias que lá estivemos onde num desses ataques uma só granada provocou sete vítimas.

“Diz-se que foram quinze dias para esquecer” mas o pior de tudo é que não se consegue esquecer, têm-me dado muitos pesadelos e tirados milhares de horas de sono.

Curiosamente, apesar de ter tomado notas há muitos anos, tenho uma “branca” desde o espaço de tempo que passei por Genicó e desembarquei em Farim, dizem-me que fomos pernoitar em Binta mas não me lembro de nada

Um Ab
Dâmaso
____________

Notas de CV:

- Sobre a a batalha de Guidaje (ou Guidage), é obrigatório ler o livro de José de Moura Calheiros - A Última Missão (Lisboa, Caminhos Romanos, 2010, 638 pp) e em especial as pp. 437 - 491: cap 31 (A batalha de Guidage) e cap 32 (Como morrem os soldados)...
- Há referências sobre Moura Calheiros (que era na altura o Segundo Comandante e Oficial de Operações do BCP 12) (Guiné, 1971/73)
(http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Moura%20Calheiros%20%28Cor%20P%C3%A1ra%29)

Vd. postes anteriores da série de:

 27 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (60): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

28 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (61): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)
e
29 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9963: Efemérides (63): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (3): Permanência em Guidaje (António Dâmaso)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (95): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)

1. Segunda parte da narrativa da "Operação Mamute Doido", trabalho enviado pelo nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista do BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária)  que participou nesta operação levada a efeito no fatídico mês de Maio de 1973.


OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (2)

Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu

António Dâmaso



Apesar de passados 39 anos e ter havido alterações da paisagem, agora com menos árvores e área de cultivo através desta imagem captada por satélite, a memória visual levou-me até ao local da emboscada de 23 de Maio de 1973. Lembro-me muito bem porque estive no local 4 vezes, por outro lado a carta topográfica neste pormenor é pouco elucidativa, nesta imagem pode-se compreender o porquê de toda a Companhia ficar debaixo de fogo, que os homens da frente estiveram sempre mais expostos. Mais dez, menos dez metros posso garantir que o local da emboscada foi este, as árvores mais grossas que lá existiam foram cortadas, tal como palmeiras e outras, as árvores de maior copa são muito poucas, restam apenas os arbustos e isto vem mostrar a rarefacção da floresta como se pode verificar através da imagem “que vale mais vale uma imagem do que mil palavras”.

Toda esta conversa só tem uma intenção que é repor a verdade dos factos, quando dizem que a emboscada foi na bolanha do Cufeu são imprecisos, porque bolanha propriamente dita, é aquela zona mais à frente sem vegetação onde passa a linha de água, em 1973 a Tabanca estava desabitada e o terreno inculto, nem sei se existiam lá algumas moranças.

Entre os mil e os quinhentos metros antes do Cufeu, depois de atravessar a estrada e descer a encosta, deparei-me com uma clareira enorme antes da bolanha, a mata circundante era muita rala e com árvores de reduzido diâmetro, palmeiras e outras árvores mais grossas eram muito poucas. Seguimos pela orla em direcção a uma ponta de mata mais avançada para a bolanha, para fazer a travessia da mesma na parte mais estreita, íamos com os sentidos alerta nomeadamente o primeiro homem, ciente que da sua capacidade de apuramento de três sentidos: visão, perscrutando todos os movimentos normais e anormais, o olfacto e a audição e que em grande parte, sabia que naquele momento os camaradas que o seguiam contavam com ele, daí que sentia a responsabilidade sobre ombros.

O primeiro homem, o Peixoto, era apontador de uma MG mas naquela operação levava uma HK 21 nova, em virtude da sua MG estar para reparação. Entrou na orla de uma clareira, a fronteira entre a mata e a clareira era quase inexistente, em virtude da raridade e espessura das árvores, detectou movimentações dos guerrilheiros a montarem o dispositivo da emboscada, não teve tempo de fazer quaisquer gesto  e abriu fogo imediatamente. Por azar a arma nova encravou-se logo, assim que a arma se encravou ele virou-se para mim muito aborrecido, lamentando-se disse:
- Meu primeiro, logo aqui é que me acontece uma coisa destas!

Quando se virou para mim foi atingido com um tiro no flanco direito, caiu de joelhos e ainda fez uma tentativa de desencravar a arma sem o conseguir e pediu-me que o tirasse dali.

Não podia ignorar um pedido daquele dirigido à minha pessoa, pois se ele o fez, lá tinha os seus motivos para o fazer. Embora o Peixoto fosse rebelde por natureza, havia respeito mútuo entre nós, aliás, como havia entre mim e todos os elementos do pelotão, até porque se eu fosse incumbido para realizar uma missão difícil, eu ia convidar os rebeldes porque apesar de não saber nada de psicologia, sabia que podia contar com eles até ao limite.

Nunca cheguei a saber o que tinha visto naquela emboscada para me solicitar que o tirasse dali, pois era auto-suficiente e aguerrido apesar da tenra idade, capaz dos maiores sacrifícios. A emboscada tinha rebentado, a Companhia ficou toda debaixo de fogo, em décimos de segundo avaliei a situação de risco, não pensei duas vezes, não havia tempo para pensar duas vezes, não podia deixar um homem meu que confiava em mim para o tirar ficar naquela situação. Saí detrás da árvore onde estava que não tinha mais de um palmo de diâmetro, corri para ele, agarrei-o para o trazer mas não tive forças suficientes para o arrastar mais ao armamento e equipamento que estava preso a ele. Vi-me na necessidade de pedir ajuda, o segundo homem, o Lourenço, foi imediatamente ajudar-me mas quando já tinha pegado no Peixoto, estávamos os dois de costas para a emboscada em progressão, foi atingido com um tiro na região posterior da cervical, ficando logo ali e só disse:
- Ai que já me mataram.

Fiquei cosido ao chão com o Peixoto encostado a mim e o Lourenço atingido do outro lado. Apesar do risco, o Ferreira de Carvalho, “o comprido” ou Vila de Rei, foi lá e ajudou-me a levar o Peixoto para trás do baga-baga, onde foi assistido pelo maqueiro Carvalho. Vi que tinha um pequeno orifício de entrada que quase não sangrou, sempre pensei que se safava, na altura muito embora tivesse um curso de primeiros socorros com a duração de uma semana, não tinha tempo nem os conhecimentos que tenho hoje para avaliar da gravidade de um ferimento, estava entregue aos cuidados do enfermeiro, eu naquele momento estava preocupado em sair daquela enrascada.

Os restantes homens do pelotão tiveram que se deslocar por lances, para a minha direita na procura de reagir à emboscada e ao mesmo tempo procurar protecção e foi aí que o Vitoriano foi atingido com um ou mais tiros que o atravessaram de flanco a flanco, segundo a versão de uns, mas segundo a versão de outros, foi quando procurou sair debaixo de uma árvore para ter ângulo tiro, isto por informação à posterior, uma vez que estava na minha retaguarda e não tinha ligação à vista de uma maneira ou de outra, lamento a sua morte.

Choviam morteiradas, roquetadas, canhoadas e tiros de armas automáticas, consta que tinham dois canhões sem recuo na emboscada, pois estavam à espera das viaturas, era um ruído ensurdecedor com tanto rebentamento, os nossos diminutos baga-baga iam ficando reduzidos drasticamente, os que estavam na parte de fora estavam alapados ao chão. Com o som ensurdecedor, fiquei com um zumbido permanente nos ouvidos que nunca mais me deixou e se tem agravado ao longo do tempo.

Além das baixas, tivemos algumas armas encravadas outras que não puderam ser usadas por falta de protecção dos atiradores, fui alternando a fazer fogo e falar no rádio, até que repentinamente chega junto de mim o Sargento Marques e larga o morteiro 60. No momento exacto que se baixa para deixar o morteiro, uma bala levou-lhe o chapéu camuflado, deixando-lhe um sulco de raspão no coiro cabeludo, desapareceu imediatamente para a posição dele, não me deu tempo de lhe perguntar nada.

Agarrei-me ao morteiro e comecei a “despachar” granadas para a zona onde estavam emboscados. Apercebi-me que as primeiras estavam a sair longas, eles estavam tão perto de nós que fui obrigado a quase endireitar o tubo para corrigir o tiro, em virtude da proximidade as granadas saiam quase na vertical. Enquanto tive granadas foi a despachar, o tubo do morteiro ficou muito quente, ainda me queimei mas sem gravidade, as granadas que pedimos em Binta deram-nos uma grande ajuda, depois comecei a fazer tiro de pontaria para um baga-baga onde vi vários guerrilheiros, só via sombras de um lado para o outro, pela movimentação é natural que estivessem a preparar a retirada, eles também me ripostavam da mesma maneira, o sol já estava baixo e dificultava-me a visão. Não sei se acertei em algum, os alvos não estavam estáticos, uma vez que não fomos lá ver, gastei as minhas munições todas e tive de pedir carregadores. Pensei em mandar uma granada de róquete, olhei para o lado, vi o apontador de RPG com a arma a seu lado, estava a esgravatar com as mãos para poder proteger a cabeça, não tive coragem de lhe perguntar se ainda tinha granadas, para o mandar expor-se mais, nunca o censurei porque se estivesse na pele dele teria feito o mesmo, provavelmente foi o que lhe salvou a vida pois à sua frente já não restava nada do bagabaga que tinha sido totalmente arrasado. Eu tinha começado a fazer tiro com a G3 e com o morteiro na posição de joelhos e já estava na posição de deitado, um tinha-me gritado:
- Meu Primeiro, tenho a arma encravada!

A minha resposta foi:
- Desencrava-a e deixa-te de estar para aí aos berros senão ainda te vêm apanhar à mão!

No momento compreendi que ele estava preocupado com a situação, mas não havia tempo para ir junto dele e explicar, fazes assim ou assado, havia que o acordar drasticamente para aquela realidade

Estávamos no mesmo lado da mata, mesmo no Cufeu e no ar andava o PCA (Posto de Comando Aéreo), bastante alto para estar fora do alcance dos mísseis, sabia que andava lá pelas comunicações que ouvia, aquele chamou apoio aéreo os Fiat, os pilotos afirmaram que tinham dificuldade em determinar uma linha de separação, foi aí que mandei colocar uma tela a indicar a nossa posição e a direcção do inimigo.

Entretanto deu-se o bombardeamento dos Fiat, foi muito providencial, porque os guerrilheiros terão pensado que atrás daqueles vinham outros e talvez, tal como nós, as suas munições também estivessem à beira de se esgotarem, ainda vi a retirada de alguns “turras” para o meu lado direito por uma picada que ficava junto à bolanha.

Foi um dia terrível, tínhamos uma sede horrível, vi homens a beber soro que era destinado a feridos, vi um urinar e senti um forte desejo de beber urina.

Fiz o que estava ao meu alcance fazer, os outros camaradas também fizeram o que puderam, enquanto estive com a adrenalina do combate a coisa correu bem mas quando este acabou, com o quadro que se me deparou, senti uma apatia momentânea como se não quisesse acreditar no que tinha acontecido aos meus camaradas. Estava com a ideia de organizar uma equipa e ir fazer uma batida ao local onde tinha estado a fazer tiro de pontaria, ao mesmo tempo pensei que por questões de segurança tinha de dar conhecimento ao Comandante da Companhia, depois o passa palavra que demorava muito tempo, ainda nos sujeitávamos a ser alvejados pelos nossos camaradas, tempo era aquilo que não dispúnhamos devido ao adiantado da hora, nesse momento veio uma ordem de cima, fazer macas improvisadas, mesmo assim ainda fiquei com a ideia de ir ao local a martelar-me na cabeça, mas depois o bom senso aconselhou-me que o melhor era sair dali rapidamente.

Era quase noite, o Comandante da Companhia mandou cortar varas para fazer macas improvisadas para o transporte de feridos e mortos, foi aí quando andava com os homens a escolher as varas melhores, que me apercebi da existência no local de esqueletos espalhados, e de uma estrada que não estava na carta, sem o saber, fomos ter mesmo ao local onde eles costumavam fazer as emboscadas, conhecedores do terreno movimentavam-se com rapidez.

O Comandante da Companhia deu ordens para que o pelotão que estava atrás de nós, avançasse para a frente para manter a segurança enquanto andávamos nos preparativos para transportar os nossos mortos e feridos.

O meu pelotão ficou inoperativo, dois mortos e um ferido grave para transportar, era um empenhamento de 15 homens, sobravam menos de 10. Desmoralizados por uma situação de que até ali não estavam habituados, era-lhes difícil entender porque antes eram evacuados por tudo e por nada e naquela situação, exaustos famintos mas mais grave ainda sedentos e desidratados, quase que a arrastar-se tinham que andar com os seus camaradas às costas. Fizeram-no porque existia aquele espírito de entreajuda, de irmandade e camaradagem entre combatentes, que caracteriza o ser humano nestas situações difíceis, dando-lhes forças para ultrapassar o limite e foi-lhe incutido na instrução, “que um pára-quedista depois de morto ainda faz dez flexões”.

O sol já se tinha posto, pegamos nos feridos e mortos, eu peguei num lado da maca do Peixoto e com três equipamentos às costas, entendi que naquele momento mais que mandar era preciso dar o exemplo. Aguentei até chegar ao Ujeque, enquanto os outros transportadores se foram revezando. Em Ujeque estavam os Fusos com viaturas, só aí é que conseguimos beber alguma água, sei que o Peixoto ainda chegou vivo a Ujeque, uma vez que o transportei até lá, os Fuzileiros que nos esperavam disseram estar admirados com a duração do combate, eles próprios já tinham tido um combate na zona, seguimos nas viaturas até Guidage onde chegamos já de noite escuro. Entramos pelo lado da pista, aí lembro-me que tive ordem para colocar o meu pelotão junto da vala, mais valeta do que vala, nas traseiras da cozinha perto do balneário, o 2.º ficou na vala que dava para a “pista”, onde mais tarde vieram a ser sepultados os militares falecidos.

Não cheguei a saber porque não fomos apoiados pelos obuses de Guidage, falta de munições, ou falta de lembrança?

Hoje é muito bonito dizer, temos de apostar mais na formação, a formação ajuda mas não é tudo, na altura se não estivesse debaixo de uma emboscada, tinha feito uma barragem de fogo e iam dois pegavam no ferido e tiravam-no para zona protegida, na teoria é muito fácil mas na prática é mais difícil, naquele dia caiu-nos um inferno de metralha em cima, improvisou-se.

Reflectindo sobre a maneira que os homens foram atingidos, o tiro que levou o chapéu ao Sargento Marques e ainda como me tentaram atingir, leva-me a crer que foram abatidos com tiros de precisão e que existia um atirador na emboscada, interrogo-me como não fiquei a fazer companhia àqueles bravos e chego à conclusão que se não fiquei lá, foi porque não tinha chegado a minha hora.

Saudações Aeronáuticas
Dâmaso
____________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 27 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (60): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

domingo, 27 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (94): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

1. Em mensagem do dia 25 de Maio de 2012, o nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista do BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária) enviou-nos a primeira de quatro partes de um trabalho onde descreve a "Operação Mamute Doido" realizada no âmbito dos trágicos acontecimento que marcaram Guidaje** e as NT naquele fatícico mês de Maio de 1973.


OPERAÇÃO "MAMUTE DOIDO" (1)

ESTADIA EM BINTA E SAÍDA ATÉ CUFEU

A. Dâmaso

Muito se tem dito e escrito acerca desta operação e dos motivos que levaram à mesma, contudo há indivíduos que nunca passaram pelo Cufeu, não têm conhecimento das condições do terreno na altura, no entanto falam como se tivessem por lá passado, para mim, militares que por lá passaram pertencentes à CCAÇ 19, Destacamentos de Fuzileiros, Companhias de Comandos, CCP 121, CCAV 3420 e outros que deixaram lá os corpos dos camaradas, sangue, suor e lágrimas, esses sim, assiste-lhes o direito de se pronunciarem sobre as suas vivências naquele local, desde que não divaguem porque se passou muito tempo.

Vieram dois militares que estiveram na emboscada dizer que tinha sido “aqui”, só que eles estavam na retaguarda da coluna, outro andava nas alturas, quem esteve na chamada zona de morte fui eu o “aqui” deles não corresponde com o meu, também disseram que morreram os três primeiros o que também não é verdade porque o 3.º era eu e estou cá, infelizmente morreram o 1.º, 2.º, 5.º e o penúltimo, seguindo as orientações do Blogue de Luís Graça, “não deixes que sejam os outros a contar a tua história”, segue a minha versão dos acontecimentos na primeira pessoa. Fui contactado pela TVI para lá ir em Fevereiro de 2007, de início acedi, tratei de passaporte e vacinas, só num dia levei quatro, mas por motivos de saúde declinei, acabando por ter ido o camarada Victor Tavares que pertencia ao 2.º Grupo que no momento em questão ia nas últimas posições na Coluna, julgo que o camarada Victor Tavares deu melhor conta do recado do que tivesse sido eu. Posteriormente quando foram entregues os restos mortais aos familiares, estava em Castro Verde uma repórter da RTP quando soube por alguém que eu tinha estado no local, tentou-me entrevistar mas quando eu lhe disse que não era capaz de falar no assunto sem me comover, foi compreensiva e não insistiu, ainda hoje tenho muita dificuldade em falar sobre o assunto.

Passando aos factos, depois de terminada a Operação Ametista Real, como comandante Interino do 3.º Grupo de Combate da CCP 121, ficamos em Binta à espera de uma coluna de viaturas de reabastecimento a realizar entre Farim e Guidage, a Companhia ir fazer segurança.

As conversas ouvidas em Binta no momento, eram que uma coluna de reabastecimento tinha sido emboscada pelos “turras”, que tinham feito um grande número de mortos, tinham incendiado as viaturas e levado as granadas de morteiro 81 e depois as devolveram pelos ares através dos morteiros 82, para o quartel de Guidage.

Em Binta não vi nenhum obus mas vi uma base de fogos de morteiros 81, já posicionados em várias direcções, sobre os morteiros dizia-se que em determinada altura em que o Aquartelamento foi atacado, quando foram para repelir o ataque, encontraram os tubos com terra no fundo, impedindo que as granadas percutissem, era este o “jornal de caserna”.

Em Moçambique, no ano de 1970, na operação “Nó Górdio”, em que por causa das minas, para se realizar uma coluna de viaturas era necessário a Engenharia abrir picada nova (estrada), fiquei pasmado como é que os chefes militares descoraram esse pormenor e até fiz um comentário em relação a isso a um tenente, que hoje é general que também lá estava nessa operação.

Agora passo a descrever a minha vivência nessa operação, que vale o que vale por se tratar da minha ”verdade”: 

No dia 22MAI73, tivemos um briefing na sala de operações da Companhia do Exército sediada em Binta, onde foram apresentados e discutidos os tópicos relacionados com a citada operação.

Foi-nos dito que no dia 23MAI73, a minha Companhia (CCP 121) ia fazer guarda avançada de flanco esquerdo, em protecção à coluna de viaturas de reabastecimento ao Aquartelamento de Guidage, junto à fronteira Norte.

Guiné > Região do Cacheu > Carta de Binta (1954) (Escala 1/50)  > Detalhes: posição relativa de Binta, Genicó, Cufeu e Ujeque (na picada Binta - Guidaje).

Depois de analisar a carta topográfica em questão, no quadro da sala de Operações da citada Companhia, vendo que a zona era bastante aberta, (com pouca mata) alertei o meu Comandante de Companhia para a utilidade de se levarem mais granadas de morteiro de 60mm, no que ele concordou e pedimos dois cunhetes destas granadas ao Comando de Binta, granadas essas que foram distribuídas pelos meus homens, atadas no equipamento com cordel, em virtude de calhar ao meu Grupo de Combate ir à frente na zona mais perigosa.

Seguidamente transmiti aos homens sob o meu comando, o tipo da missão, a perigosidade da mesma, a nossa posição no local crítico que era na frente da coluna, quanto à posição, testa da coluna na zona crítica, não me recordo se os critérios tiveram a ver com escala, rotação ou escolha.

Saímos de Binta no dia 23 pelas 6 horas da manhã, seguimos até ao cruzamento com a picada que vinha de Farim, tomamos posições defensivas e aguardamos pela coluna de viaturas que vinha de Farim, o que aconteceu cerca das 8 horas.

Iniciou-se a coluna tinha progredido pouco, a progressão era lenta, porque os picadores tinham de ir picando o terreno, para detecção de minas anti-carro e outras, como ia com atenção ao terreno, comecei a ver cepos de onde tinham sido cortadas árvores centenárias, talvez até milenares, apercebi-me que as viaturas se iam desviando para a direita para fugirem ao campo minado.

Quando atingimos a zona de Genicó, começámos a ouvir rebentamentos à nossa direita para os lados da picada, através do rádio ouvi que tinham deflagrado uma mina anti-carro e várias anti-pessoal que causaram várias baixas nos picadores, face a este incidente, houve um compasso de espera e passado muito tempo, o comandante do COP 3, Major Correia de Campos resolveu dar ordem para a coluna voltar para trás.

Ficámos um pouco parados em posição defensiva, até que o Comandante de Companhia recebeu ordem do PCA (Posto de Comando Aéreo) para continuarmos rumo a Guidage sem a coluna, no momento pensei que não fazia sentido continuarmos sem a coluna, mas ordens eram ordens e na tropa eram para serem cumpridas.

Continuamos a progressão sempre à esquerda da picada, mais ou menos a meio caminho entre Genicó e Cufeu, fizemos uma paragem para comer uma “bucha”, a mata era aberta e cheia de clareiras sentíamos o efeito do calor abrasador, traduzindo-se em suor e muita sede.

Continuámos a progressão cada vez mais sedentos, mais ou menos entre 500 e os 1000m do Cufeu, obliquamos para atravessar a picada para a direita e de seguida o meu pelotão passou para a frente como estava estipulado, calhando ser a 1.ª a secção a ir à frente, descemos uma encosta e já em terreno plano, obliquámos para a esquerda, na leitura de sinais, observamos algum silêncio anormal, pelo que foi dado sinal para se manterem atentos, a nossa progressão era como que em ziguezague.

O apontador de reserva do morteiro que passou a efectivo, tratava-se do Vitoriano, um Pára de alcunha Lisboa, e que quando o meu pelotão passou para frente, por ordem minha passou para a quinta posição na coluna, porque a meu entender, dadas as características do terreno e vegetação, por ser uma arma importante de defesa em caso de emboscada, o que se veio a verificar.

Era usual nas progressões a corta mato, que era o caso, ir um municiador à frente para abrir picada, se necessário, eu até cheguei a ir à frente para não serem sempre os mesmos, mas naquele dia, tendo em conta a mata ser aberta, com muitas clareiras, quem foi para primeiro lugar foi o apontador de metralhadora, da secção que calhava ir à frente, indo o municiador em segundo lugar e eu em terceiro. Não me lembro quem ia em quarto mas sei que em quinto ia o apontador do morteiro, por eu lhe ter dado ordem para ir nessa posição, recordo ainda que momentos antes da emboscada, ter olhado para trás e ver que o Comandante da Companhia seguia nos primeiros dez.

Acrescento que o Comandante da Companhia, conhecia bem os homens do 3.º pelotão, por quando em actuação de bigrupo que ele sempre acompanhou, ia muitas vezes neste pelotão, mesmo a nível de actuação de Companhia, quase sempre o vi no neste Pelotão, isto talvez se explique por ter na Companhia um Tenente do Quadro que ocuparia a posição da retaguarda, assegurando ele a posição da frente.

O Comandante de Companhia já tinha em 68/70, feito uma comissão de Serviço na Guiné como Comandante de Pelotão, onde passou por Gandembel. Eu estava na 3.ª comissão na Guiné, 2.ª em Companhia de Combate, tinha passado por Moçambique na Operação “Nó Górdio” e tinha em 1964 feito uma operação em Angola, portanto em termos de experiência acho que tínhamos mais que os outros graduados com funções de comando. Sem qualquer acordo prévio, optámos por ocupar aquelas posições na coluna como que a dizer aos homens, nós estamos aqui!

Provavelmente se eu tivesse lá o meu camarada Primeiro-Sargento Comandante da Secção, talvez eu tivesse ocupado uma posição mais à retaguarda, mas como o Cabo que ia a comandar a secção tinha sido ferido no Navio Patrulha e evacuado, resolvi estar em 3.º, quanto ao Comandante da Companhia deve ter pensado o mesmo que eu, e ir para os primeiros dez da coluna.

Eu ia com algum à-vontade, pensando que por ir a corta-mato me pudesse trazer alguma vantagem, contudo desconhecia em parte aquele terreno por ser a primeira vez que lá entrava, também desconhecia que a partir do momento que as viaturas voltaram para trás, os guerrilheiros do PAIGC passaram a vigiar toda a nossa progressão, por ironia do destino andamos às voltas e fomos ter mesmo ao local onde eles estavam treinados a fazer emboscadas, como tive oportunidade de verificar mais tarde.

(Continua)

Um Ab
A. Dâmaso
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Maio de 2012 Guiné 63/74 - P9939: Efemérides (59): A Operação Ametista Real foi há 39 anos (António Dâmaso)

(**) Vd. postes:

Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (56): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

Guiné 63/74 - P9935: Efemérides (57): Guidaje foi há 39 anos... Pergunto: Por que é que a FAP não bombardeou com napalm a área de Genicó até Ujeque ? Por que é que não se utilizou o obus 14 no apoio às colunas ? No cerco de Guidaje muito eu desejei ter uma antiaérea... (Arnaldo Machado Veiga)
e
Guiné 63/74 - P9937: Efemérides (58): Guidaje foi há 39 anos... Alguns pequenos reparos e a minha homenagem a Amílcar Mendes, Daniel Matos e Victor Tavares (Manuel Marinho)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (90): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

A 5ª coluna,  a caminho de Guidaje>  Operação Mamute Doido, com os páras da CCP 121 > 23 de Maio de 1973 [fusão de dois postes]

por Victor Tavares (*) 
e † Daniel Matos (**)


1A. Victor Tavares [, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12, Bissalanca, 1972/74). foto à direita]:

No início do mês de maio de 1973, as forças do PAIGC intensificaram os ataques aos destacamentos de fronteira, mais concretamente Guidaje, a norte, e Guileje, a sul. Em Guidaje a pressão das forças IN começou com ataques ao aquartelamento e depois às colunas de reabastecimento no período 7 a 30 de Maio de 1973. Nesse período realizaram-se seis colunas. Apenas a terceira conseguiu alcançar o objectivo sem problemas.

E porque fiz parte da quinta coluna (***), gostaria de dar algumas ideias do que passei na mesma aos tertulianos interessados na guerra de Guidaje.


Para começar quero dizer-vos que já li que os efectivos da CCP 121 que participaram nessa coluna eram na ordem de 160, quando na verdade seríamos pouco mais de metade. Mas avançando para o desenvolvimento, mais concreto, do deslocamento entre Binta e Guidaje, de má memória para os paraquedistas da 121, nesse dia fatídico para as nossas tropas recebemos a informação de que íamos fazer protecção a uma coluna auto que ia para Guidaje, e que regressaríamos de imediato, até porque não nos fora distribuída alimentação.


1B. Daniel Matos [1950-2011, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74, foto à esquerda] ...


[Em 22 de maio de 1973,] do quartel de Binta, sensivelmente à mesma hora (sete e trinta) em que saíramos de Guidaje, avançara também nova coluna logística, com a missão de evacuar o pessoal, sobretudo os feridos. A CCP 121 faria protecção a oeste da estrada, cabendo a um destacamento misto de fuzileiros (42 homens dos DFE n.º 1 e n.º 4, comandados pelo primeiro-tenente Albano Alves de Jesus) a protecção a leste. Os picadores seriam de um grupo de combate da CCaç 14 (guarnição de Farim), participando também um grupo reduzido de elementos da CCaç 3. Um dos elementos, – o furriel miliciano Arnaldo Marques Bento, – deste grupo comandado pelo alferes Gomes Rebelo, acciona uma mina antipessoal, reforçada com outra, anticarro, e tem morte imediata. Também um picador – o soldado Lassana Calisa, – morre alguns metros adiante e a mesma mina provoca dois feridos graves. 


Ainda um outro engenho viria a ferir gravemente outro homem. Cerca do meio dia, um grupo de combate saiu de Genicó e veio reforçar a coluna. O tenente-coronel Correia de Campos manda abortar a coluna de reabastecimento e o pessoal regressa a Binta, onde chega apenas por volta das 18 horas.

2A. Daniel Matos

[A 23 de maio de 1973,] sai de Binta em direcção a norte uma coluna/auto comandada a partir de uma DO-27 pelo major 
paraquedista  José Alberto de Moura Calheiros. É protegida por uma unidade de fuzileiros especiais e por grupos pertencentes a unidades do Exército, nomeadamente da CCaç 3 e, como sempre, por uma equipa de picadores que rasga caminho lá bem na cabeça da coluna.

Ao chegar perto de Genicó liga-se aos cerca de 90 homens da CCP 121 que, sob o comando do capitão pára-quedista Armando de Almeida Martins, emboscada desde bem cedo, ali aguardam a sua passagem, para lhe fazer protecção. Os pára-quedistas faziam parte de uma força de intervenção, que incluía ainda uma companhia de comandos e uma companhia de fuzileiros, enviada para Guidaje para tentar romper o cerco e aliviar a pressão do PAIGC sobre o quartel.


2B. Victor Tavares:

Lá seguimos manhã cedo, [a 23 de maio de 1973,] até passar uma pequena ponte. Logo de seguida estacionámos e emboscámo-nos do lado esquerdo da picada, ficando a aguardar a chegada da coluna auto que, passado algum tempo, chegou já protegida do lado direito por um grupo de fuzileiros especiais, seguidos de elementos do exército.

Na frente da primeira viatura seguiam vários sapadores (picadores). É de referir que a mata envolvente era bastante aberta o que facilitava o contacto à vista com as outras nossas forças.

Entretanto, é dada ordem para iniciarmos a marcha lenta por forma a manter a ligação à vista com a frente da coluna. Nessa altura rebentou uma mina antipessoal, provocando 1 morto. Isto cerca das 8.30h. 

Recomposta a ordem, retomamos a marcha, até que, passados pouco mais de 15 minutos, novo engenho é accionado, desta vez por uma viatura, desfazendo parte dela e provocando mais 1 morto e 2 feridos graves. A partir daqui foi fazer a transferência da carga e retomar o deslocamento. Pouco tempo andámos para nova mina ser accionada provocando mais 1 ferido grave.

Nesta altura estávamos próximos de Genico [a seguir a Caur, vd. carta de Binta]. Perante estes acontecimentos foi dada ordem para que a coluna regressasse a Binta, uma vez que a zona se encontrava toda minada e seria de evitar correr mais riscos.

2.C. Daniel Matos:

Por volta das 8,30 horas, com a ligação à vista praticamente a ser efectuada, uma mina antipessoal é deflagrada e provoca a morte do soldado Bailó Baldé, da CCaç 3. Escassos minutos a seguir, quando a coluna recolhe o corpo e retoma o andamento, uma viatura acciona outra mina e causa mais uma morte imediata (soldado Fonseca Nancassa, também da CCaç 3) e dois feridos com gravidade. 

Uma terceira mina vem a ocasionar mais um ferido grave. Perante as adversidades da progressão, parecendo impossível ultrapassar o enorme campo de minas e armadilhas que encontrou em cada metro de caminho, é recebida ordem para que a coluna retroceda e regresse a Binta. Aos  paraquedistas , no entanto, é dito que devem avançar até ao destino, em missão de patrulha (operação Mamute Doido). Assim procedem, vindo a efectuar uma pausa para descanso, já na área do Cufeu. Conforme estas fatídicas jornadas demonstram à saciedade, seja ao longo da bolanha seja em torno da casa amarela que avistamos a cada passagem – ou do esqueleto que dela resta, – o Cufeu é uma zona propícia para as emboscadas, desde logo pelo número inusitado de morros de baga-baga atrás dos quais dezenas de corpos se podem ocultar e proteger-se das nossas balas.
3A. Victor Tavares:

Com tudo isto já passava do meio dia, quando é dada ordem para a CCP121 continuar a operação em patrulhamento, regressando os fuzileiros e o exército.

Em direcção a Guidaje seguiam os paraquedistas, até que foi feita mais uma de muitas paragens para descanso do pessoal, esta já na zona mais perigosa de todo o percurso, que era Cufeu.

Como me encontrava desde o início na retaguarda, desloquei-me até junto do meu comandante de pelotão, Tenente Paraquedista Hugo Borges, afim de saber qual seria o nosso destino, porque nos encontrávamos já bastante debilitados fisicamente. Foi nesse momento que a grande altitude apareceu sobrevoando a nossa posição uma DO 27 aonde se encontrava o Major Paraquedista Calheiros que, em contacto com o comandante da CCP 121, Capitão Paraquedista Armando Almeida Martins, informa-nos que teríamos de seguir para Guidaje porque já estaríamos perto.

Dada esta informação, regressei a retaguarda mas ao fazê-lo pedi ao Melo, apontador de MG 42, para ocupar o meu lugar (todos os operacionais sabem o desgaste físico e psicológico que tal posição provoca) porque eu já vinha a mais de uma dezena de quilómetros naquele lugar.

Entretanto inicia-se a marcha e, quase de imediato, rebenta na frente a emboscada, tendo os primeiros tiros dados pelas forças do PAIGC abatido logo os Soldados Paraquedistas, Victoriano e Lourenço e ferindo gravemente o 1º Cabo Paraquedista Peixoto, apontador de HK21 e MG42.

A reacção dos paraquedistas foi pronta e rápida: apanhados em zona aberta sem qualquer protecção reagiram ao forte poder de fogo do IN, conseguindo suster o assalto das nossas posições como se verificou na retaguarda onde guerrilheiros, alguns de tez branca, tentaram fazer um envolvimento as nossas forças, o que foi evitado pela elevada capacidade de organização em combate e disciplina de fogo, aliada à coragem dos nossos militares.

Quero referir que simultaneamente toda a nossa coluna ficou debaixo de fogo IN numa extensão de mais de 300 metros.

É de realçar também a organização e o poder de fogo dos guerrilheiros do PAIGC que, equipados com bom armamento, bem melhor que o nosso, caso das Degtyarev, RPG2, costureirinha PPSH, Kalashnikov, Canhão Sem Recuo, RPG7, Morteiros 61mm e 81mm, mísseis terra-ar Strela (estes a partir do início de 1973 começaram a derrubar a nossa aviação tirando-lhe capacidade de actuação no teatro de operações).

Não era por acaso que as forças do PAIGC estavam tão bem organizadas nesta zona e neste período, tinham como comandantes Francisco Santos (Chico Té) e Manuel dos Santos (Manecas), dois dos mais temidos pelas nossas forças, além do comandante Nino Vieira.

3B. Daniel Matos:

Retemperadas as forças, o pessoal da companhia de caçadores paraquedistas reinicia a marcha e é de pronto surpreendido por constringente emboscada. Dois dos pára-quedistas que seguem na frente (António das Neves Vitoriano e José de Jesus Lourenço, este com apenas 19 anos) têm morte imediata; o 1.º Cabo Manuel da Silva Peixoto, apontador de HK-21, é colhido por uma rajada e fica gravemente ferido. O fogo inimigo é muito intenso, a frente prolonga-se por algumas centenas de metros e dura três quartos de hora praticamente consecutivos. Há quem garanta ter avistado gente branca do outro lado.

“Os militares José Lourenço, António Vitoriano e Manuel Peixoto iam na primeira linha e foram os primeiros a cair”, relata muitos anos mais tarde Hugo Borges, na altura da emboscada tenente, comandante de pelotão (hoje general).

À mistura com tiros de Kalashnikov ouvem-se estrondos de canhões sem recuo e roquetadas das RPG-7, que causam pelo menos mais duas baixas graves: a do soldado Palma, que se encontrava a tentar desencravar a metralhadora MG 42 do soldado António Melo, que foi também ferido e ficou imediatamente em coma (viria a falecer após evacuação, já na metrópole). 

Apesar da resistência das NT, a ofensiva só é contida graças ao apoio aéreo que desta vez corresponde ao chamamento. Os Fiat lançam bombas de cinquenta quilos ao longo de meia hora bem medida sobre a zona de acção IN (cuja força é estimada em cerca de setenta guerrilheiros). 

Algumas viaturas saíram de Guidaje e foram ao encontro dos paraquedistas. Fizeram inversão de marcha para se carregarem os corpos das vítimas e regressarem à origem. Abrindo um novo trilho, conseguem chegar à aldeia de Guidaje, não sem que os guerrilheiros retirados do Cufeu após o bombardeamento da aviação os tenham atacado de novo, mas de longe e sem consequências. 

O Cabo Peixoto não resiste aos ferimentos e morre também neste dia 23 de Maio, – imagine-se! – considerado o “Dia dos Paraquedistas” por ser há precisamente 17 anos (desde 1956) a data da fundação, em Tancos, da Escola de Tropas Paraquedistas!...

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (n.º 12) teve durante as campanhas na “Guiné Portuguesa” cinquenta e seis baixas, (três oficiais, seis sargentos e quarenta e sete praças).

Os corpos dos militares da CCaç 3 que protegiam a coluna inicial e que pela manhã foram vitimados pelo rebentamento de minas (mormente os de Bailó Baldé e Fonseca Nancassa), ainda devem ter sido transportados pelas mesmas viaturas que os camaradas 
paraquedistas  trouxeram para Guidaje, pois viriam a ser ali sepultados, dias depois, conjuntamente. Se assim não fosse, teriam sido levados pelos fuzileiros e elementos do Exército que regressaram a Binta e o tratamento aos seus esquifes teria sido diferente.

4A. Victor Tavares:

Continuando a relatar o desenrolar da operação: durante o contacto fomos flagelados com morteiradas e canhoadas que rebentavam a poucos metros de nós, tendo uma delas ferido gravemente os Soldados Paraquedistas Palma e Melo, este com grande gravidade, ficando de imediato em estado de coma e vindo a falecer, na Metrópole.

Ainda relacionado com as granadas que rebentavam junto a nós, aí poderíamos ter mais mortos e feridos, mas a nossa sorte foi o terreno ser mole porque as granadas enterravam-se e os estilhaços saíam em V. Faço esta afirmação porque a dois, três metros da minha posição de combate, rebentaram 3 granadas e felizmente nada me aconteceu. Já a quarta granada veio mais longa, atingindo os paraquedistas atrás referidos, quando se encontravam a desencravar a MG42 da qual o Paraquedista Melo era apontador, de grande categoria (este camarada era uma autêntica máquina de guerra).

Ainda debaixo de fogo começaram a ser socorridos os feridos da retaguarda, pelo enfermeiro 1º Cabo Paraquedista Fraga.

Ainda antes de terminar este feroz combate, os bombardeiros Fiat 91 bombardearam as posições IN tal foi a duração do mesmo (mais de 30 minutos).

Terminado o contacto, tratou-se de improvisar a maca para transporte do Melo, o outro ferido, o Palma, seguiria a pé, já que o ferimento era no pescoço. Entretanto chega-nos a indicação da frente que tínhamos mais feridos e mortos (os átras referidos Peixoto, Vitoriano e Lourenço).

Entretanto, quando chegamos à frente, deparamos com os corpos dos nossos camaradas que jaziam no chão, dois já defuntos, e um ferido de morte, este a ser assistido pelos enfermeiros dos pelotões.

A partir daqui aguardava-se a chegada de viaturas que vinham de Guidaje. Chegadas estas, carregaram-se os mortos e feridos. Nnessa altura fui à viatura onde se encontrava o Peixoto para ver qual era o seu estado. Apertando o meu braço, diz-me ele:
- Tavares, desta vez é que eu não me safo. - Aí respondi-lhe:
- Não, tu és forte e tudo vai correr bem, tem calma.

Quando desci da viatura depois de ver os ferimentos, fiquei com a convicção de que só por milagre é que o Peixoto se safava: fora atingido por vários tiros em zonas vitais .

De seguida iniciámos a marcha rumo a Guidaje, para pouco tempo depois a coluna na frente ser novamente atacada, desta vez sem consequências de maior, para as forças que seguiam na frente, Fuzileiros e Paraquedistas, seguidas das viaturas e na retaguarda os restantes Paraquedistas que ainda tentaram fazer um envolvimento às forças do PAIGC, o que não resultou derivado à distância ser grande e as mesmas terem abandonado as suas posições de ataque.

5. Daqui até Guidaje não houve mais qualquer incidente. Chegados, fomos instalados ao longo das valas, montando segurança durante os dias que ai permanecemos, sete ou oito. Durante esses dias foram elementos dos Comandos Africanos que regressavam da Operação Ametista Real (no período de 17 a 20 de Maio de 1973) na qual também participou a Companhia de Paraquedistas 121 (Assalto à base de Kumbamory) dentro do Senegal. Participou também o grupo do Marcelino da Mata.

Em Guidaje também aí encontrámos parte de um destacamento de Fuzileiros que aqui se encontravam sitiados há alguns dias e que pertenciam ao destacamento de Canturé.

A seguir relatarei a permanência em Guidaje durante 9 dias e o funeral dos meus camaradas paraquedistas . (...)

PS - No que atrás relato não estão incluídas algumas passagens muito importantes que entendo de momento não publicar. (****)




Guiné > Região do Cacheu > Carta de Binta (1954) (Escala 1/50 mil)  > Detalhes: posição relatiav de Binta, Genicó, Cufeu e Ujeque (na picada Binta-Guidaje).

__________

Notas do editor:

(*) 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

Vd. também poste de 9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(**) 5 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6108: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (7): Os dias da batalha de Guidaje, 22 e 23 de Maio de 1973


(***) Os historiógrafos militares Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso falam em 6 colunas, realizadas nas seguintes datas:

1ª coluna: 8 a 9 de maio de 1973;
2ª coluna: 10 de maio [ vd. aqui o testemunho do nosso camarada A. Merndes, da 38ª CCmds]
3ª coluna: 12 de maio;
4ª coluna: 15 de maio;
5ª coluna: 22 de maio;
6ª coluna; 29 de maio.

(In: Os anos da guerra colonial: volume 14: 1973 - Perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p.45).

(****) Último poste da série > 9 de maio de 2012 > 
Guiné 63/74 - P9874: Efemérides (55): Cerimónia da transição da soberania nacional na Guiné (2) (Magalhães Ribeiro)