Como compensação pelo sacrifício, "deu para beber uns copos” bem como para uma ou outra escapadela aos cinemas da Baixa e aos bares do Cais do Sodré, que estavam então na moda (e continuaram a estar até hoje, sobretudo com a criação da rua pedonal, a Rua Cor de Rosa, há cerca de anos atrás). Ficara até prometida uma “visita secreta” ao Bairro Alto, que o “Matosinhos” e o “Algarvio” mostraram alguma curiosidade em conhecer… Por uma razão ou outra, o Parente ainda não os tinha levado lá, mas a surpresa ficaria guardada para a véspera do dia do embarque.
No regresso ao DGA, apanhavam o elétrico, o autocarro ou, às vezes, o comboio até Belém, e subiam depois a Calçada da Ajuda, a pé… Tinham que entrar até à meia-noite, naquele tempo o “Matosinhos” e o “Algarvio” ainda eram 1ºs cabos milicianos mas já alinhavam nas escalas de serviço dos sargentos. Com a guerra, havia falta de sargentos e oficiais, o que era colmatado com o recurso aos milicianos. Mão de obra “escrava”, diga-se de passagen, paga a 90 escudos por mês (o valor do pré de então…), equivalente hoje a 28 euros…
− Mas também se ganha mal e porcamente na vida civil – contemporizava o Parente. – Agora, quando voltarem da Guiné, vivos e inteiros, vocês já poderão comprar carro, montar casa e casar!
− Não me f…! – interrompeu o “Matosinhos”. – Não haverá dinheiro que pague o sacrifício da nossa juventude… A madrasta da Pátria paga-nos para matar e para morrer…
− Não sejas tão panfletário, já pareces o Manuel Alegre aos microfones da rádio Argel… A maior parte da malta vai ter as férias que nunca sonhou ter!... Férias, ainda por cima, pagas!... – ironizou o sargento.
− Férias ?!...
− Olha, eu não quero outra vida. Já vou na 3ª comissão… É verdade que também não sei... fazer mais nada!
− Grande malandro, tinhas dado um belo padre – ouviu-se a voz do “Algarvio”, do fundo do cadeirão.
− Pois era, mas o sacana do falangista f… o nosso Parente! − comentou o “Matosinhos”.
− Ele é que foi ingénuo. Nunca ouviste dizer: “Em Roma sê romano” ?!... Tinha obrigação de conhecer as regras da casa, foi pobre e mal agradecido − arrematou o "Algarvio", seco e contundente.
8. A cena mais pícara destes três “a(r)didos” foi quando o Parente convidou os outros dois para “irem às meninas” (sic) na véspera do embarque no “Niassa”. O “Matosinhos” e o “Algarvio” entreolharam-se, com um certo olhar de espanto, e terão respondido ao desafio, com uma pitada de humor negro:
− E porque não ?!... Só Deus sabe se voltaremos a casa, vivos e inteiros!
− Sobretudo inteiros, com os ditos cujos “en su situ”! – atalhou, malicioso, o sargento.
Quase instintivamente, o "Matosinhos" levou as mãos ao baixo ventre para se certificar que ainda lá estavam, inteiros, os “tintins”…
O Parente não conseguiu deixar de soltar uma sonora gargalhada:
− Façam de conta que é uma despedida de solteiro!... Mas primeiro vamos beber uns copos. E eu pago a primeira rodada!
Como estava previsto o navio largar amarras às 11h00 da manhã, do dia 24 de maio de 1969, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o Parente não quis arriscar deixar a surpresa para o próprio dia do embarque, o que teria tido muito mais "pica"...
No fim da tarde do dia anterior, sexta-feira meteram-se num táxi, e “ala, moço, que se faz tarde”, a caminho do Bairro Alto. (As malas já haviam seguido, entretanto numa viatura dos Adidos, e, mais importante, haviam conseguido dispensa de pernoita, seguindo na manhã do outro dia diretamente para o "Niassa", como eu, de resto, que vim, durante toda a noite, em comboio, do Campo Militar de Santa Margarida para o Cais da Rocha Conde de Óbidos.)
Tinham, pois, a noite toda por conta deles, suspirava, feliz, o safado do sargento. Mas antes haveria que celebrar o evento com uma mariscada, na cervejaria "Trindade". No dia seguinte era sábado e nessa altura ainda se trabalhava aos sábados, e o Bairro Alto deveria estar animado de gente laboriosa. (É bom lembrar que a chamada semana inglesa, as 45 horas de trabalho semanal, com um dia e meio de descanso em cada sete, é uma conquista dos trabalhadores do comércio portugueses, só conseguida justamemte nesse ano, em 1969.)
A “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha” foram as três mulheres com quem os nossos “a(r)didos” passaram essa noite de 23 para 24 de maio de 1969. Na cama, como eles depois me contaram. Ou melhor, quem me contou essa cena, digna de figurar no melhor livro do nosso humor de caserna, foi o “Algarvio”, que era, dos três, o mais sensato, o mais discreto, o mais sóbrio, o melhor observador e quiçá o melhor contador de histórias que eu conheci …
Os nomes de guerra das três mulheres podem não ser estes, mas para o caso também não é relevante. A “Sissi” era a patroa, tinha uma “casa de bonecas”, perto da “Princesa da Atalaia” (uma tasca que eu virei a conhecer mais tarde, dez anos depois. em 1979)... Com a extinção das casas de passe, em 1963, fora a maneira da "Sissi" de contornar a lei e manter o negócio: alugava quartos a raparigas ("que vinham da província"). Com ela trabalhavam a “Rita Pavone” e a “Mudinha” (assim conhecida por ser muda) e, ocasionalmente, mais algumas que ali faziam o seu "biscate".
Como era habitual terem clientes na sexta feira à noite, o Parente tratou de tudo, previamente e reservou três quartos... Imagine o leitor o que era o Bairro Alto de há mais de 50 anos atrás, ainda com prostituição de rua (tolerada, se bem que ilegal).
A “Sissi”, como velha conhecida do Parente, combinou com as outras duas raparigas e facilitou as apresentações. O prédio compunha-se de rés-de-chão (ainda com os famosos “aventais de pau”, as "meias-portas" onde no passado as mulheres se mostravam, debruçadas para a rua), primeiro andar e águas furtadas.
Era uma construção ou reconstrução oitocentista, de pé direito alto. As divisões eram minúsculas, mal cabendo nos quartos uma cama, uma mesinha de cabeceira e um pechiché, com um espelho (onde as raparigas tinham a tralha para a maquilhagem, os cosméticos, os pós de arroz, os batons, os vernizes). O rés-de-chão, compunha-se de um pequeno vestíbulo, com um reprodução do quadro a óleo do José Malhoa, " O Fado" (1910), na parede; uma pequeno cozinha, a casa de banho (reduzida a um retrete, lavatório e pouco mais), um roupeiro e ainda um saleta de costura. (Oficialmente, a "Sissi" era costureira, e tinha os impostos em dia.)
Havia ainda umas águas furtadas, acrescentava o "Algarvio", meticuloso na reconstituição da cena e do cenário que fez para mim a bordo do "Niassa"... Ali a “Sissi” tinha a sua “suite” (sic) e um pequeno salão onde recebia os “hóspedes” mais íntimos… (O Parente achava que ela beneficiava de alguma proteção da gente do poder.)
− O teu gajo hoje está por aí ?! – interrogou, cauteloso, o Parente.
− Já não preciso de “guarda-costas” e muito menos de “Júlios” – respondeu, seca mas orgulhosa, a “Sissi”.
O sargento ficou a “matar saudades” com a sua antiga “chavala” de há uns atrás. O “Matosinhos” e o “Algarvio” tiraram à sorte quem ficava com as outras duas: é que uma era mesmo “muda”…
− Muda, mas felizmente, não é cega nem é surda – encolheu os ombros, o “Matosinhos”, resignado com a sua (má) sorte, ele que logo simpatizara com a “Rita Pavone”, que falava pelos cotovelos, e tinha umas lindas sardas, que lhe fazia lembrar a sua primeira namorada do tempo de escola.
Fiquei depois a saber, pelo relato do “Algarvio”, que a “Mudinha” fora adotada pela “Sissi” como “afilhada”… Tinha sido violado, ao que se dizia, pelo padrasto, em Setúbal, onde vivia e estudava no liceu. O gajo era uma granjola da máfia da estiva. A rapariga acabou por cair na “má vida” e veio para Lisboa, "por portas e travessas". A ”Sissi” acolheu-a.
Mas, afinal, quem mais se divertiu, dos três “a(r)didos”, nesse sexta feira à noite inesquecível, foi o “Matosinhos”. A “Mudinha” era uma verdadeira figura dos contos das Mil e Uma Noites, capaz de satisfazer as mais exigentes fantasias eróticas dos “clientes”. A sua “especialidade” era exemplificar, ao vivo, algumas das mais ousadas e acrobáticas posições do Kama Sutra…
E tinha um inusitado sentido de humor negro. Quando convidou o “Matosinhos” a fazer o “69”, este recusou, com alguma brusquidão e irritação, típica do macho latino… Ela então “rogou-lhe a sua famigerada maldição” (sic), um delicioso aforismo que é uma obra-prima do linguajar do "bas-fond":
− Quem não faz sessenta e nove, não chega… aos cem!
Mesmo assim o tempo foi curto para tantas “lições”... O "Matosinhos" fez questão de mandar vir "champagne de Sacavém" e o par trocou de galhardetes e de endereços postais. A rapariga, sabendo que ele, “tadinho", ia para o "ultramar”, fez-lhe até um desconto e não lhe levou nada pelas “aulas extras”. O “Matosinhos” prometeu-lhe que escreveria da Guiné, e que, nas férias, lhe traria um colar de missangas, conforme pedido expresso da rapariga… Ela comunicava através de notas, a lápis, num caderno escolar, a par da linguagem gestual.
Não sei se o “Matosinhos” chegou a vir de férias. E se, muito menos, cumpriu o prometido, voltar à Rua da Atalaia com o colar de missangas e acabar o resto das aulas... enquanto a sua namorada o esperava, ansiosa, a 300 km mais a norte... (Nem nunca mais poderei saber se ele chegou a casar com ela, a menos que me dê sinais de vida, o que me parece pouco provável.)
9. Ainda foram, para a despedida, ao cacau da Ribeira, no Cais do Sodré, antes de rumarem diretos ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, a pé. Já estavam os três com um grãozinho na asa, ou pelo menos eufóricos, quando passaram pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e receberam o maço de cigarros “Três Vintes” e a medalhinha de Nossa Senhora de Fátima a que tinham direito.
Mas, logo à entrada do “Niassa”, junto às escadas que levavam ao portaló, ia havendo uma “bronca de todo o tamanho" (sic), com o “Matosinhos” e uma das “meninas da Cilinha”. Ele depois explicou-se, já mais calmo, no bar do navio: o que mais o irritara, fora o sorriso piedoso, cínico, amarelo, de uma delas, por sinal a que parecia mais nova, mas já "trintona, balzaquiana, com ar de solteirona" (sic)...
− A fulana estava a pedi-las! − desculpou-se ele.
O “Matosinhos” vinha eufórico, mas ali, no cais, ao cair na realidade e ao ser confrontado com o seu imperioso dever como militar, que era embarcar, rumar à Guiné, pegar na G3, ir para o mato e defender a Pátria…, teve de repente uma “tirada infeliz” (reconheceria mais tarde), quando a senhora do MNF lhe “desejou boa sorte e a bênção de Nossa Senhora de Fátima” (sic)…
Ele não sabe o que é que lhe deu na veneta..., mas "passou-se dos carretos” (sic) e respondeu-lhe ao ouvido, para que as outras, ali à volta, não dessem conta e armassem um escarcéu:
− Em matéria de santas, gosto mais da minha mãe e da senhora de Matosinhos, a nossa padroeira… E a si, minha querida senhora, que não deve ser santa mas ainda tem um lindo palminho de cara, e um belo par de marmelos, eu dava-lhe mas era uma valente trancada patriótica!… Mas venho do Bairro Alto, de papo cheio, e agora a Pátria chama-me, e outros valores mais altos se 'alevantam'…
Não sei se a senhora percebeu patavinha do palavreado, já meio empastelado, do “Matosinhos”… Só deve ter reagido à referência ao mal afamado Bairro Alto… Corou, Ficou afogueada, e mal teve tempo de balbuciar:
− Ai, senhor furriel!... Mas que pessoa tão inconveniente e mal educada!…
E terá feito um gesto de pedido de socorro ao piquete da Polícia Militar que estava à entrada do cais, controlando os civis, de costas para o navio, pelo que os PM não terão sequer assistido à cena…
O Parente, felino, é que não teve com meias medidas… À cautela, dei logo um valente puxão ao colarinho do "Matosinhos", arrastando-o pelas escadas acima até ao portaló!... Entraram os três, de roldão, no navio, e só pararam no bar...Pediram três uísques duplos, e comentaram, aliviados e bem dispostos, as peripécias daquele "dia inesquecível"…
10. No dia 30 de maio de 1969, logo pela manhã, cerca das 8h00, desembarcámos em Bissau. E fomos levados para o Depósito de Adidos, em Brá. E cada um foi para o seu lado, eu fiquei com a malta da minha companhia, num dos pré-fabricados. Sei que ficámos numa camarata, em camas sem lençóis, com um cheiro insuportável, agravado pelo calor e humidade de Bissau. Foi um horror, durante três dias, até acertar com a bebiba que matava a sede.
No dia 2 de junho, eu segui em LGD pelo rio Geba acima até ao Xime, a caminho de Contuboel (via Bambadinca e Bafatá).
Os três “a(r)didos” ainda lá ficaram, coitados, em Brá, à espera de transporte, cada um para o seu destino. Ainda nos encontrámos no "Pelicano", se a memória não me atraiçoa. ... Mas mal tivemos tempo de nos despedirmo-nos. Nunca mais os vi, mas espero que tenham conseguido regressar a casa, sãos e salvos, "vivos e inteiros"… Eu, por mim, regressei, vivo, em março de 1971, mas com a morte na alma...
11. Tem piada, durante anos não me lembrei mais desta(s) história(s) picara(s) dos três “a(r)didos"... Como tantas outras que me fariam correr o risco de "voltar à Guiné", tentação essa a que fui resistindo durante os primeiros anos da "peluda", fechando as memórias da guerra com um cadeado a sete chaves.
Para mim a Guiné, "c'est fini", dizia eu... Até que, uma década depois, no 2º trimestre de 1979, dei de caras com a placa com o nome da rua, a Rua da Atalaia… Foi um choque. Aprendiz de etnógrafo, a acabar o curso de sociologia, andei dias e dias, semanas e semanas, ao fim da tarde, a caminho daquela rua, com o meu grupo de trabalho, para apanhar histórias de vida, e registar letras e músicas dos velhos e velhas frequentadores da “Princesa da Atalaia”, uma tasca, uma das poucas, onde ainda se cantava o “fado vadio”…
Então estas recordações vieram à tona de água, em catadupa... Tive que as registar. Pensei, como etnógrafo, que um dia alguém se iria interessar pelas "memórias da guerra colonial" (ou do ultramar), um objeto de estudo que se calhar deveria merecer a mesma atenção que o fado, "canção popular urbana", lisboeta, em risco de extinção no pós-25 de Abril...
Peguei no meu caderno de notas e escrevi um primeiro esboço desta história... que ficou entretanto em banho maria e depois esquecida até agora... Mas hoje pergunto-me: se calhar ainda me cruzei, sem o saber, em 1979, com a “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha”, as três "meninas" com quem os meus companheiros do "cruzeiro do Niassa" passaram as primeiras horas do dia 24 de maio de 1969. Na cama, no bem-bom, a acreditar na história, bem pícara e hilariante, que me foi contada por um deles, o "Algarvio"... (Claro que com dez anos a mais estariam precocemente envelhecidas, e quiçá irreconhecíveis.)
Se resgato, hoje, esta história, ao fim de mais de meio século no limbo da memória, é porque afinal ela pode ter algum interesse para se conhecer um pouco melhor... a "idiossincrasia" da geração dos últimos soldados do império, os que fecharam um ciclo de 500 anos... Não eram santos nem heróis, muito menos gigantes, daqueles talhados no bronze e na pedra ou imortalizados nos versos épicos do Camões... Eram apenas "arraia-miúda", gente vulgar, de quem nunca reza a História...
O Parente, o "Matosinhos", o "Algarvio", os três "a(r)didos", tal como a "Cilinha" e as suas senhoras, ou a "Sissi" e as suas meninas, também faziam parte, afinal, da pequena história da História (com H grande)...
Luís Graça
Lourinhã, 24 de maio de 2022,
53 anos depois do embarque no T/T Niassa com destino à Guiné.
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 27 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)