1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2013, o nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), enviou-nos o terceiro episódio da sua viagem/aventura de férias, num percurso de 7000 milhas (sensivelmente 11.265 quilómetros) através dos Estados Unidos da América.
7000 milhas através dos USA - 3
Já devem de estar a pensar:
- Olha, lá vem a viagem, vamos lá ver o que é que eles fizeram hoje?
Pois vamos continuar companheiros de “Jornada”
Pela manhã, depois de tomar o pequeno almoço, a medicina, olhar o tempo que fazia lá fora, resolveram colocar no corpo roupa de inverno, porque parecia que iria chover dentro de pouco tempo.
A estrada número 70, que atravessa todo o Estado do Missouri, em direcção ao estado do Kansas, é uma grande estrada, com duas vias para cada lado, separadas por uma grande extensão de terreno, com distâncias consideráveis de rectas, das quais não se via o final, tendo, de um lado e de outro, pastagens onde se via algum gado bobino, poços de petróleo com as bombas em pleno movimento e alguns moinhos gigantes de energia, aqui e ali havia algumas casas de quintas, principalmente estábulos, uns em bom estado, outros abandonados, em alguns locais havia mesmo casas, com algumas árvores próximas, que pareciam novas ou quase novas, mas algumas sem janelas ou portas, parecendo abandonadas.
No início, pela manhã, ao sairmos da povoação onde dormimos, que era St. Charles, no Estado de Missouri, ainda se via ao longo da estrada algumas plantações de milho e amendoim, às vezes até por uma distância de milhas, mas que foram desaparecendo à medida que viajávamos para oeste, dando lugar à paisagem que descrevemos em cima.
Isto era a paisagem enquanto se via, pois quando começou a chover, como se de um tornado se tratasse, às vezes com mais intensidade do que estavam acostumados no Estado da Flórida, até mesmo do que o Tony se lembrava, quando da sua estadia em África, quando em cenário de guerra, naquela que então chamavam Guiné Portuguesa. Era uma chuva contínua que alagava a estrada, tendo que se viajar a 10 ou 15 milhas por hora e com as luzes acesas. Todo o cuidado era pouco, viam-se carros parados na berma da estrada com as luzes em posição de pisca- pisca. Choveu por horas, o vento puxava a chuva contra os vidros do jeep, em todas as direcções, fazendo-o balançar, e em alguns momentos ficava sem direcção, suspenso no ar, mas muito devagar fomos avançando, e lá mais para a frente, já havia algumas abertas, com menos chuva e a velocidade aumentou. Fomos progredindo no terreno.
Neste trajecto da nossa rota, era o local onde devíamos parar e viajar pela “Santa Fé Trail”, pois levávamos equipamento para o fazer, e era um dos nossos objectivos, caminhar por onde os nossos emigrantes caminharam centenas de anos atrás, quando saíam do rio Mississippi, em St. Louis e iam a caminho do oeste, mas não o pudemos fazer, talvez fique para a próxima, quem sabe!
Quando a chuva abrandou um pouco, passámos próximo da povoação de Arrow Rock, que é hoje considerada “Nacional Históric Landmark”, tal como a povoação de Black Water, que fica próxima. Visitámos ambas as povoações, onde existe casas e ruas como eram há duzentos anos, tudo está conservado com algumas casas habitadas. Ambas as povoações faziam parte da “Santa Fé Trail”. Algumas pessoas deslocam-se de outros Estados para percorrerem alguns trilhos, que estão sinalizados, pelo menos dentro destas povoações, o que nós também fizemos.
Como dizíamos, estas localidades faziam parte do famoso trilho de Santa Fé, que era uma via que passava por vales, planícies e montanhas, cruzando os rios que eram atravessados por jangadas, que ia através do centro norte da América, desde o então Estado independente de Missouri até Santa Fé, no Estado de Novo México, seguindo daí para o México com o nome de “Caminho Real”. Era quase como quando o Tony tinha o nome de guerra de “Cifra” e estava estacionado na então província da Guiné, e ia de Mansoa para o Olossato, só que não havia vales nem montanhas.
Nesta localidade comeram no restaurante local a única ementa que havia, que era o que as pessoas comiam há centenas de anos, presunto de porco fumado, depois cosido em vapor, duas espigas de milho cosidas, pão de mistura de trigo, milho e beterraba, e chá de diversas plantas, incluindo a planta do tabaco. Um cálice de “moonshine” e um charuto terminava a refeição.
Uma senhora, muito gentil, que nos servia, vestida tal como há cem anos, com a face parecida com as que vemos nos filmes do oeste americano em que entram algumas vezes os tais “índios e cowboys”, tinha uma face linda de “pele vermelha”, não se calava, falando mal dos ingleses que eram umas pessoas más, que vieram da Europa ocupar esta terra tão bonita, que era deles, dos americanos!
O Tony não sabe onde é que já ouviu isto, mas falado em português "acrioulado"
Voltando à estrada número 70, seguimos em direcção à cidade de Kansas, e para os que não sabem, existem duas Kansas City, uma do lado do Estado de Missouri, outra do lado do Estado de Kansas. Há uma divisão, que não é divisão nenhuma, vimos os estádios de futebol e pouco mais, pois a chuva não nos largava. Atravessámos as cidades sempre debaixo de chuva, só com uma pequena paragem para mudança de óleo no Jeep, num estabelecimento especializado, previamente marcada.
Mencionando uma pequena curiosidade, na cidade de Kansas City existe um banco com o nome de “Jesse James”, o famoso pistoleiro, ladrão de bancos, das películas de Hollywood, pois os habitantes dizem que era oriundo de Kansas e têm orgulho em dizê-lo.
Em Kansas, muitos emigrantes, alemães, irlandeses, ingleses, suecos e russos, os tais que transitavam na “Santa Fé Trail”, que em tempos tinham vindo da Europa, por aqui ficaram e povoaram a região com a ajuda do governo, que foi negociando com as tribos de nativos, que gradualmente se foram transferindo para o norte, para um território que hoje se chama
Oklahoma. O governo queria um território povoado para que se tornasse independente, a que deu o nome Kansas, pois anteriormente era um território indígena, juntamente com o Nebrasca e Oklahoma.
Seguindo a nossa rota em direcção ao Estado de Colorado, sempre na estrada número 70, que nos dava alguma segurança, passámos pelas cidades de Lawrence, mais adiante Topeka, tudo localidades isoladas no meio de nada. A paisagem continuava a ser, pastagens, estábulos, alguns abandonados, poços de petróleo, moinhos de energia e pouco mais. Havia, aqui e ali, de um lado da estrada, mas retirado, onde a paisagem era completamente deserta e plana, uma espécie de “barricada”, colocada estrategicamente no terreno, construída em madeira, com algumas aberturas, que se prolongava às vezes, por talvez um quarto de milha, que mais tarde o Tony veio a saber que era para protecção da estrada, e que tirava alguma velocidade aos vários “tornados”, nesta zona são frequentes.
Parámos em Junction City e fomos ver o “Fort Riley”, cujo nome foi dado em homenagem ao Major general Bennett C. Riley, que foi o primeiro militar a prestar suporte e alguma segurança ao longo da “Santa Fé Trail” e ajudava as pessoas que se movimentavam e faziam negócios ao longo dos caminhos que seguiam para o Oregon, Califórnia e Santa Fé. Em 1887, o Fort Riley passou a ser uma escola de cavalaria dos Estados Unidos, onde se formaram os famosos “all-black”, os 9.º e 10.º Regimentos de Cavalaria, que eram soldados a quem chamavam “Buffalo
Soldieres”, que ali ficaram estacionados. O Fort Riley foi sempre uma importante base que ajudou em muitas situações e ainda hoje se mantém operacional.
Já perto da noite, cansados e com algum apetite, comemos e dormimos na simpática povoação de Hays, ainda no estado de Kansas, o que para nós foi tal e qual como um “oásis
em pleno deserto”.
Tony Borie,
Agosto de 2013
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 31 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11995: Os nosssos seres, saberes e lazeres (54): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (2) (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 7 de setembro de 2013
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12013: Ser solidário (148): I Encontro/Convívio Portugal - Guiné-Bissau, dia 5 de Outubro de 2013 no Complexo de Ténis da Maia (José Teixeira)
1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira, um dos principais animadores da Tabanca Pequena ONGD, com data de 5 de Setembro de 2013:
A Tabanca Pequena em parceria com a Associação EducÁfrica e a participação das Associações de Guineenses – NAOUNI – Associação de Amizade Matosinhos / Mansoa-, MON NA MON – Associação dos Filhos e Amigos da Guiné-Bissau e a Associação dos Guineenses no Porto, vão organizar no próximo dia 5 de Outubro o 1º ENCONTRO CONVÍVIO Portugal / Guiné-Bissau, com um almoço e tarde cultural abrilhantada com a participação do Grupo Musical Nuvem Musical composto na sua maioria por ex-combatentes da Guiné e pelo conjunto MON NA MON formado por filhos de guineenses com danças tradicionais da Guiné-Bissau.
Este Evento tem como finalidade:
- Aprofundar as relações entre pessoas dos dois países, nomeadamente com os guineenses que se fixaram em Portugal.
- Promover a angariação de fundos para os seus projetos de desenvolvimento que as Associações organizadoras têm junto das populações da Guiné-Bissau.
Tomamos a liberdade de juntar o Convite e o Cartaz
CONVITE
As ONGDs Tabanca Pequena e Associação EducÁfrica, são duas Associações que têm por objetivo apoiar e promover o desenvolvimento das populações africanas dos PALOPs, muito em particular da Guiné-Bissau.
Para atingir os seus objetivos vão promover o 1º Encontro/Convívio Portugal-Guiné-Bissau no próximo da 5 de Outubro.
Pretendem com este Encontro/Convívio:
- Aprofundar as relações entre pessoas dos dois países, nomeadamente com os guineenses que se fixaram em Portugal.
- Promover a angariação de fundos para os seus projetos de desenvolvimento junto das populações da Guiné-Bissau.
Assim sendo, têm a honra de convidar todos os amigos da Guiné-Bissau para participarem no referido evento, com o seguinte programa e do qual juntamos um Cartaz elucidativo:
EVENTO – 1º ENCONTRO / CONVÍVIO PORTUGAL – GUINÉ-BISSAU
ALMOÇO: Sardinha Assada e Frango de Chabéu (Prato típico guineense)
TARDE CULTURAL: Canções tradicionais portuguesas pelo conjunto NUVEM MUSICAL do Clube GALP Norte Danças tradicionais da Guiné-Bissau pelo GRUPO CULTURAL MON NA MON
DATA: Dia 5 de Outubro de 2013
LOCAL: Complexo de Ténis da Maia, Av. Luís de Camões - Maia
Custo do almoço (por Pessoa) 15,00 pesos
As inscrições para o almoço podem ser feitas até ao dia 30 de Setembro para:
- tabancapequena@gmail.com
- projetos@educafrica.pt
- Telm. 966238626 – José Teixeira
Não se aceitam inscrições pelo Face Book
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Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11861: Ser solidário (147): Na última viagem ao Cacheu encontrei a minha amiga Mary doente e a precisar de ajuda (Carvalhido da Ponte / Sousa de Castro)
Guiné 63/74 - P12012: Notas de leitura (517): BCAÇ 1933, História da Unidade (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2013:
Queridos amigos,
Lá encontrei mais uma história de unidade combatente na Guiné, andou entre o sector Leste, passou a correr por Mansoa e instalou-se em São Domingos.
Trata-se de um relatório minucioso com descrições de indiscutível utilidade quando fala do Leste e aponta a natureza da presença do PAIGC, com pendor ofensivo e uma extrema agressividade às populações nossas apoiantes.
É igualmente interessante ver a evolução na região de São Domingos num tempo em que o Senegal se tornou muito mais liberal com a presença do PAIGC, é desse tempo que data o fortalecimento das bases que irão inquietar profundamente as nossas tropas depois dos anos 70.
Um abraço do
Mário
BCAÇ 1933, História da Unidade
Beja Santos
O BCAÇ 1933 formou-se no RI15, depois concentrou-se no CIM de Santa Margarida e embarcou nos finais de Setembro de 1967 para a Guiné. No princípio de Outubro, o Comando e a CCS seguiram para Nova Lamego, o sector L3 ficou à sua responsabilidade bem como das CCAÇ 1586, 1588, 1589, 1683 e da CCAÇ 5, como também as CCAV 1651 e 1662 e a CART 1742, PEL MORT 1191, PEL AM DAIMLER 1143 e PEL CAN S/R 1200.
De acordo com a apreciação sobre a situação geral, a guerrilha tinha-se intensificado nos últimos meses de 1967, crescera a implantação de engenhos explosivos, ações contra as populações, incêndio de tabancas, etc. As flagelações a Buruntuma, Madina do Boé, Beli e Che-Che mantiveram-se a níveis de alta intensidade. Supunha-se que durante tal período houvera deserções constantes nas fileiras do PAIGC, esses elementos teriam ido para o Senegal.
O sector L3 tinha uma superfície correspondente a cerca de um quinto da área total da Guiné, o sector era servido pela estrada Bafatá-Nova Lamego-Piche-Buruntuma, dessa coluna vertebral ramificavam estradas para Bajocunda, Pirada, Cabuca, Che-Che, Madina do Boé e Beli, Canquelifá, Copá, Pirada, Paunca e Sonaco. Designadamente na época das chuvas, alguns destes itinerários ficavam intransitáveis, o que ditava o isolamento de Che-Che, Beli e Madina de Boé.
O sector dispunha de pistas de aterragem em Nova Lamego, Bajocunda, Canquelifá, Buruntuma, Piche, Madina do Boé, Copá e Beli. A população de todo o sector era de cerca de 45 mil habitantes, 1/12 da população total, com uma densidade populacional baixíssima, disseminada pelos regulados de Propana, Maná, Pachana, Pachisse, Boé, Chana, Tumaná de Cima e Cancumba. As etnias predominantes eram os Fulas, Mandingas e Pajadincas. Na mesma apreciação, registava-se uma nova tática do IN que o uso de franco-atiradores colocados nos morros em torno do aquartelamento de Madina do Boé.
Enumera-se a disposição de todos os efetivos, seguindo-se o registo das operações ao longo do último trimestre, salientam-se as flagelações constantes a Madina do Boé, Che-Che e Beli, minas anticarro e antipessoal. Em Janeiro, dá-se a saber que o IN não parava de contactar as populações e praticar atos de banditismo; no mês seguinte, referenciava-se que o IN se instalara na região de SIAI, irradiando a sua ação no itinerário Canjadude - Che-Che e em vários regulados, intimidando populações civis mediante assaltos e flagelações. Nesse mês chegou a Nova Lamego o BCAÇ 2835, após um período de sobreposição, o Comando e a CCS do BCAÇ 1933 seguiram para Brá, ficando como reservado do Comando-Chefe e as CCAÇ 2315, 2316 e 2317 foram deslocadas para Binar, Bula e Mansabá respetivamente, segundo se descreve no relatório, o IN estava altamente posicionado em território senegalês e apontam-se os locais e os respetivos dirigentes militares.
É observado que a atuação do IN é pouco determinada, nas áreas de S. Domingos e Susana atuava quase exclusivamente por meio de minas e na área de Ingoré desenvolvia ações fortes contra as populações em autodefesa, ponto curioso é que fala-se em pouca determinação e pendor ofensivo e logo a seguir refere-se que o IN se tenta instalar em diferentes áreas, que atua contra aquartelamentos como os de Varela, São Domingos e Ingoré, destruía diversos pontões e reagia à atividade operacional das nossas tropas com emboscadas.
É bastante interessante o levantamento que procede aos aeródromos ou pistas de aterragem, portos, importância das povoações, enumeração dos grupos étnicos, modos de vida, línguas e dialetos e aspetos económicos. A partir de Abril, o sector do batalhão cobria a área de S. Domingos, havia notícia que o PAIGC melhorara o seu material, agora o BCAÇ 1933 dispunha de outros efetivos disseminados por São Domingos, Barro, Susana, Varela, Ingoré e Sedengal. Em Junho, escreve-se que a atividade do IN tinha sido praticamente nula, embora houvesse notícias sobre a sua movimentação além fronteira, em especial na região de São Domingos. O PAIGC não disporia de qualquer base na área do sector do batalhão e procurava-se perceber porquê: as populações Felupe e Baiote continuavam a colaborar com as nossas tropas, em São Domingos a população inicialmente desconfiada passava a colaborar mais, na região de Ingoré-Sedengal as populações manifestavam-se muito colaborantes, havia o reordenamento em Antotinha.
Em Outubro, surgem notícias de que o material IN começa a afluir a bases em território senegalês e fala-se em Koundara, Cumbamore, Samine e Sedjo. As flagelações são esporádicas, há o registo de minas anti-pessoal e algumas emboscadas a civis. O registo a patrulhamentos na região da fronteira senegalesa não tem conta. Reparam-se estradas e em Junho chegaram as chuvas. Em Julho, o BCAÇ 1933 regressava à metrópole.
O BCAÇ 1933 foi alvo de muitos sinistros, participou em dezenas de operações e ações, no abandono do quartel de Madina de Boé, no desastre do Che-Che pereceram por afogamento 25 elementos europeus e 5 nativos da CCAÇ 1790. As suas subunidades andaram dispersas por Farim, Aldeia Formosa para além das anteriormente citadas.
O historial da unidade que foi dado consultar está na Biblioteca da Liga dos Combatentes, tem imagens de Beli, Madina de Boé, Aldeia Formosa, São Domingos, aparecem vários relatórios de operações e até um plano de instrução para milícias, que me pareceu um dado curioso. Aparece também um depoimento do furriel José Gabriel de Assis Pacheco Moreira (falecido em Maio de 2005) que assim termina: “Guiné é poesia pelo seu pôr-do-sol, pelas suas chuvas, pela alegria dos seus povos e pelo amor que lhes dedico, porque lá sofri e porque lá vivi os melhores momentos da minha juventude, porque lá senti o que era a diferença entre civilizações distintas das minhas, mas que me ensinaram que, na sua simplicidade, eram muito mais perfeitas na relação com a natureza”.
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Lá encontrei mais uma história de unidade combatente na Guiné, andou entre o sector Leste, passou a correr por Mansoa e instalou-se em São Domingos.
Trata-se de um relatório minucioso com descrições de indiscutível utilidade quando fala do Leste e aponta a natureza da presença do PAIGC, com pendor ofensivo e uma extrema agressividade às populações nossas apoiantes.
É igualmente interessante ver a evolução na região de São Domingos num tempo em que o Senegal se tornou muito mais liberal com a presença do PAIGC, é desse tempo que data o fortalecimento das bases que irão inquietar profundamente as nossas tropas depois dos anos 70.
Um abraço do
Mário
BCAÇ 1933, História da Unidade
Beja Santos
O BCAÇ 1933 formou-se no RI15, depois concentrou-se no CIM de Santa Margarida e embarcou nos finais de Setembro de 1967 para a Guiné. No princípio de Outubro, o Comando e a CCS seguiram para Nova Lamego, o sector L3 ficou à sua responsabilidade bem como das CCAÇ 1586, 1588, 1589, 1683 e da CCAÇ 5, como também as CCAV 1651 e 1662 e a CART 1742, PEL MORT 1191, PEL AM DAIMLER 1143 e PEL CAN S/R 1200.
De acordo com a apreciação sobre a situação geral, a guerrilha tinha-se intensificado nos últimos meses de 1967, crescera a implantação de engenhos explosivos, ações contra as populações, incêndio de tabancas, etc. As flagelações a Buruntuma, Madina do Boé, Beli e Che-Che mantiveram-se a níveis de alta intensidade. Supunha-se que durante tal período houvera deserções constantes nas fileiras do PAIGC, esses elementos teriam ido para o Senegal.
O sector L3 tinha uma superfície correspondente a cerca de um quinto da área total da Guiné, o sector era servido pela estrada Bafatá-Nova Lamego-Piche-Buruntuma, dessa coluna vertebral ramificavam estradas para Bajocunda, Pirada, Cabuca, Che-Che, Madina do Boé e Beli, Canquelifá, Copá, Pirada, Paunca e Sonaco. Designadamente na época das chuvas, alguns destes itinerários ficavam intransitáveis, o que ditava o isolamento de Che-Che, Beli e Madina de Boé.
O sector dispunha de pistas de aterragem em Nova Lamego, Bajocunda, Canquelifá, Buruntuma, Piche, Madina do Boé, Copá e Beli. A população de todo o sector era de cerca de 45 mil habitantes, 1/12 da população total, com uma densidade populacional baixíssima, disseminada pelos regulados de Propana, Maná, Pachana, Pachisse, Boé, Chana, Tumaná de Cima e Cancumba. As etnias predominantes eram os Fulas, Mandingas e Pajadincas. Na mesma apreciação, registava-se uma nova tática do IN que o uso de franco-atiradores colocados nos morros em torno do aquartelamento de Madina do Boé.
Enumera-se a disposição de todos os efetivos, seguindo-se o registo das operações ao longo do último trimestre, salientam-se as flagelações constantes a Madina do Boé, Che-Che e Beli, minas anticarro e antipessoal. Em Janeiro, dá-se a saber que o IN não parava de contactar as populações e praticar atos de banditismo; no mês seguinte, referenciava-se que o IN se instalara na região de SIAI, irradiando a sua ação no itinerário Canjadude - Che-Che e em vários regulados, intimidando populações civis mediante assaltos e flagelações. Nesse mês chegou a Nova Lamego o BCAÇ 2835, após um período de sobreposição, o Comando e a CCS do BCAÇ 1933 seguiram para Brá, ficando como reservado do Comando-Chefe e as CCAÇ 2315, 2316 e 2317 foram deslocadas para Binar, Bula e Mansabá respetivamente, segundo se descreve no relatório, o IN estava altamente posicionado em território senegalês e apontam-se os locais e os respetivos dirigentes militares.
É observado que a atuação do IN é pouco determinada, nas áreas de S. Domingos e Susana atuava quase exclusivamente por meio de minas e na área de Ingoré desenvolvia ações fortes contra as populações em autodefesa, ponto curioso é que fala-se em pouca determinação e pendor ofensivo e logo a seguir refere-se que o IN se tenta instalar em diferentes áreas, que atua contra aquartelamentos como os de Varela, São Domingos e Ingoré, destruía diversos pontões e reagia à atividade operacional das nossas tropas com emboscadas.
É bastante interessante o levantamento que procede aos aeródromos ou pistas de aterragem, portos, importância das povoações, enumeração dos grupos étnicos, modos de vida, línguas e dialetos e aspetos económicos. A partir de Abril, o sector do batalhão cobria a área de S. Domingos, havia notícia que o PAIGC melhorara o seu material, agora o BCAÇ 1933 dispunha de outros efetivos disseminados por São Domingos, Barro, Susana, Varela, Ingoré e Sedengal. Em Junho, escreve-se que a atividade do IN tinha sido praticamente nula, embora houvesse notícias sobre a sua movimentação além fronteira, em especial na região de São Domingos. O PAIGC não disporia de qualquer base na área do sector do batalhão e procurava-se perceber porquê: as populações Felupe e Baiote continuavam a colaborar com as nossas tropas, em São Domingos a população inicialmente desconfiada passava a colaborar mais, na região de Ingoré-Sedengal as populações manifestavam-se muito colaborantes, havia o reordenamento em Antotinha.
Em Outubro, surgem notícias de que o material IN começa a afluir a bases em território senegalês e fala-se em Koundara, Cumbamore, Samine e Sedjo. As flagelações são esporádicas, há o registo de minas anti-pessoal e algumas emboscadas a civis. O registo a patrulhamentos na região da fronteira senegalesa não tem conta. Reparam-se estradas e em Junho chegaram as chuvas. Em Julho, o BCAÇ 1933 regressava à metrópole.
O BCAÇ 1933 foi alvo de muitos sinistros, participou em dezenas de operações e ações, no abandono do quartel de Madina de Boé, no desastre do Che-Che pereceram por afogamento 25 elementos europeus e 5 nativos da CCAÇ 1790. As suas subunidades andaram dispersas por Farim, Aldeia Formosa para além das anteriormente citadas.
O historial da unidade que foi dado consultar está na Biblioteca da Liga dos Combatentes, tem imagens de Beli, Madina de Boé, Aldeia Formosa, São Domingos, aparecem vários relatórios de operações e até um plano de instrução para milícias, que me pareceu um dado curioso. Aparece também um depoimento do furriel José Gabriel de Assis Pacheco Moreira (falecido em Maio de 2005) que assim termina: “Guiné é poesia pelo seu pôr-do-sol, pelas suas chuvas, pela alegria dos seus povos e pelo amor que lhes dedico, porque lá sofri e porque lá vivi os melhores momentos da minha juventude, porque lá senti o que era a diferença entre civilizações distintas das minhas, mas que me ensinaram que, na sua simplicidade, eram muito mais perfeitas na relação com a natureza”.
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12011: Memória dos lugares (246): Gabu / Nova Lamego, 1972/73 (Joaquim Cardoso)
1. Em mensagem do dia 27 de Agosto de 2013, o nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), enviou-nos algumas memórias fotográficas de Gabu entre 1972 e 1973:
Gabu Sara/Nova Lamego > Natal de 1972 > A partir da direita: Vasco; amigo Santos; Alferes Sousa, CMDT de Pelotão; Graça e Joaquim Cardoso. Atrás mais um camarada dos Morteiros
Nota do editor
Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11977: Memória dos lugares (245): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (1) (António Teixeira)
Nova Lamego > Graça; Santos e Cardoso das Transmissões
Gabu Sara/Nova Lamego > Joaquim Cardoso
Posto de Rádio do quartel novo > António Santos e Joaquim Cardoso
Gabu Sara/Nova Lamego > Joaquim Cardoso junto a um Memorial aos caídos em campanha
Joaquim Cardoso à civil em Nova Lamego
Gabu Sara/Nova Lamego > Natal de 1972 > A partir da direita: Vasco; amigo Santos; Alferes Sousa, CMDT de Pelotão; Graça e Joaquim Cardoso. Atrás mais um camarada dos Morteiros
Bilhete Postal do Natal de 1972
____________Nota do editor
Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11977: Memória dos lugares (245): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (1) (António Teixeira)
Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole
1. Sexto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:
A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado
No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.
CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES
ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU
6 - As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole
Ainda no Aeroporto de Pedras Rubras, tudo se conjugava para viver momentos inesquecíveis. Ficara para trás a incerteza da Guiné, a experiência de voo em aviões “Caravelle” a jacto, e era a presença da família, da namorada e de amigos da juventude.
Pela recepção e pelo carinho e emoção com que me rodearam, já sentia o quanto valeu a pena ter vindo de férias. Todos queriam saber de mim e da guerra. Para eles, essa coisa que, estando tão longe e por vezes tão perto, representava sempre risco de perderem alguém.
Já no aconchego da nossa casa, o meu Pai mostrava alguma compreensão pelas minhas escolhas na vida e era o mais interessado nos pormenores da guerra, especialmente naqueles com leitura política.
Como actuava o PAIGC?
Que forças tinham?
Que áreas controlavam?
E como é o teu dia a dia?
A minha Mãe, como todas as Mães do mundo, abraçava-me a toda a hora, como quem precisa de sentir para acreditar que o filho estava ali.
O rosto da minha namorada espelhava a felicidade de me ter a seu lado.
A minha velhinha avó paterna, que me criou até aos cinco anos e que nutria por mim uma afeição especial por eu ser o seu primeiro neto, achava que estava muito magrinho e insistia para que me alimentasse melhor.
Eram tempos de partilha com a família e do regular convívio de café com os amigos, alguns deles com a possibilidade de virem a “bater com as costas” na guerra de África.
As motivações que me impeliram para vir de férias faziam todo o sentido. Tinha agora uma relação mais afectuosa com o meu Pai, transmiti à minha namorada a confiança de que os nossos sentimentos eram o futuro e estava recuperado do enorme desgaste físico em que me encontrava. Mas o tempo voa, especialmente nestas circunstâncias e, quase sem se dar por isso, a data do regressar à Guiné estava aí.
No dia do regresso, a família e a namorada acompanharam-me ao aeroporto. Enquanto se aguardava a hora das despedidas, o meu Pai pediu-me que, no regresso definitivo a casa, lhe trouxesse duas garrafas de vodka para oferecer a amigos. Percebi a motivação do pedido e garanti-lhe que seria satisfeito.
Algo afastados do local em que me encontrava com a família, notei a presença de um grupo de pessoas que incluía algumas minhas conhecidas, todas de luto, e com semblantes de dor. Dirigi-me para junto dessas pessoas, cumprimentei as que conhecia, e indaguei dos motivos do luto e da presença no aeroporto. Foi como se tivesse levado um coice no peito. Fomos Amigos de escola, Colegas na equipa de Natação do Leixões, Companheiros da Vida e Tu, logo Tu, havias de tombar em combate na Guiné.
A família a namorada e amigos estavam ali à espera da urna para lhe fazerem o funeral. Partilhei com eles alguns momentos de pesar e dor. Quando os informei de que estava ali para regressar á Guiné, ficaram pesarosos e desejaram-me a maior sorte do Mundo.
O tempo que restava não me permitiu assistir
à chegada da urna do meu Amigo. Evitei que a minha família percebesse o motivo porque me tinha afastado. Posteriormente, viria a saber que o meu Companheiro e Amigo que servia nas tropas paraquedistas, havia tombado na zona de Galomaro, numa emboscada junto de uma fonte.
Era o regresso marcado pelas sombras da guerra. Mas valeu a pena ter vindo de férias. Estava grato pelo carinho de todos e fiquei rendido, aquelas lágrimas rebeldes que vi saírem dos olhos do meu Pai, no momento do abraço de despedida. Sim, eu sei que valeu a pena. Tal como a viagem de barco, a viagem de avião de regresso à Guiné faria escala em Cabo Verde, desta vez na Ilha do Sal.
Fizemos uma paragem de cerca de uma hora e, por aquilo que pude ver, a ilha era muito árida e pouco povoada. Desci em Bissau no início de Junho e já chovia. À boleia, numa viatura militar, fui de Bissalanca até ao Depósito de Adidos em Brá. Aqui, fiquei aguardar transporte para o Xitole.
Instalado, apressei-me a ir cumprimentar o Sargento Enfermeiro que me havia tratado quando cheguei à Guiné, pela primeira vez. Já não me conhecia, era normal, tanta gente lhe havia passado pelas mãos mas, devia-lhe a gratidão pelo seu cuidado e disso dei testemunho do meu agradecimento.
Este tempo de espera permitiu-me “saborear” Bissau, os seus recantos e encantos, mistérios e até perigos. Pude desta feita, conhecer os locais mais frequentados pela tropa “macaca”. Quantos de nós terão resistido à tentação de se aventurar pelo “Pilão” e sentir aquela atmosfera de provocação, aquela mistura de desafio, “pecado” e até magia que nos envolvia. Eram as mulheres mais lindas, sobretudo as de origem cabo-verdiana, o motivo maior da nossa atenção.
Falava-se de que, por estas bandas, aconteceriam rixas bravas entre as tropas especiais, cada qual, numa demonstração da superioridade das suas “boinas”. Eram os tempos de se “pisar o risco” e de se dar livre escape à irreverência da juventude.
Era a quase obrigação de se ir ao UDIB dar um mergulho na piscina, ver-se um filme e depois irem alguns, os poucos que gostavam, comerem-se umas ostras ali para os lados do cais. E o ponto de encontro, camaradas? Lembram-se do imperdível Café Bento? Haverá porventura alguém que tenha passado por Bissau, especialmente da classe das praças, que não conheça o Café Bento? Era o nosso ponto de encontro, camaradas. Ali se encontravam os amigos, os amigos dos amigos, os conhecidos dos amigos e até, pasme-se, os desconhecidos.
Em pouco tempo se ficava a saber tudo o que se passou, o que se passava e o que viria a passar-se em qualquer canto, por mais escondido que estivesse no território da Guiné. Era a nossa 5.ª Rep, o serviço de informações mais eficiente, existente no território.
Entre umas canecas de boa cerveja e uma engraxadela dos sapatos a conversa fluía sempre interessante e actualizada. Foi neste meio que encontrei o namorado, de uma colega de trabalho da minha namorada, que estava no Forte de Amura como Polícia Militar. Logo ali me disponibilizou cama e mesa de qualidade bem superior à do Depósito de Adidos. Porque será que não me surpreendeu a sua atitude? É que a malta, naquelas circunstâncias, é capaz das atitudes mais nobres só para ter por perto alguém que lhe fale daquilo que lhe é familiar.
E nestas andanças, chegou o dia 9 de Junho de 1971. Estávamos na véspera do Feriado Nacional e, para minha surpresa, estava nomeado Cabo de Dia ao Depósito de Adidos. Acreditem camaradas, nunca tinha feito tal serviço. Só fui promovido a Primeiro-Cabo na data do embarque em Lisboa e, no mato, os enfermeiros estavam dispensados de serviços, assim pensava eu.
Algo me dizia, e disso comecei a convencer-me, de que nada acontecia por acaso. Ao início da noite, enquanto o pessoal em formatura aguardava a chegada do Sargento de Dia para a verificação de presenças, ouviram-se uns enormes estrondos de rebentamentos, que me pareceram vir, ali mais para os lados de Bissau. À ordem do Sargento de Dia, todos fomos procurar abrigo nas enormes “valetas” que ladeavam a parada alcatroada.
Após os primeiros impactos, os Sargento e Oficial de Dia comentavam que Bissau estaria a ser atacada. Ó diabo, nem aqui se está bem? Não se ouviam sirenes de ambulâncias. O que estaria acontecer em Bissau, será que sofremos muitas baixas?
Essa noite foi de alerta geral. Aconteceu o que muitos, há muito tempo vaticinavam. Era o fim do mito do refúgio seguro.
O PAIGC tinha feito uma demonstração do seu atrevimento e força.
No dia seguinte, nas conversas do Café Bento o assunto era o ataque a Bissau. Era assunto incontornável a que ninguém ficava indiferente. Uns diziam que os “mísseis” caíram ali para os lados dos tanques de combustível da Sacor, que ficavam nas margens do Geba às portas da cidade. Outros, afirmavam que todos os rebentamentos se deram nas bolanhas bem longe da cidade. Em Bissau e no interior, esta evolução da guerra deixou-nos a todos muito apreensivos. Que futuro?
Fiquei marcado com a convicção que nada seria como dantes na Guiné depois daquela noite.
Deixei Bissau de retorno ao Xitole a bordo de uma avioneta DO. Foi uma sensação difícil de descrever quando sobrevoei o Xitole, momentos antes de a avioneta tocar a “pista”.
Eu sabia o que via, eu sentia o que via e sabia ao que vinha. Nada podia alterar o rumo das coisas. Estava novamente confrontado com a amarga realidade da guerra.
Todas as visitas da avioneta ao Xitole geravam um movimento anormal de pessoas na zona do “hangar”, fosse pela curiosidade ou pela ânsia do tão desejado correio.
Lá estava, entre tantos, o meu camarada enfermeiro que, mal me viu, apressou o passo para me dar um abraço de boas-vindas e ajudar a carregar os meus haveres.
- Como te correram as coisas, só com o Galé a ajudar-te? - Disparei eu.
(Continua)
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole
A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado
No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.
CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES
ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU
6 - As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole
Ainda no Aeroporto de Pedras Rubras, tudo se conjugava para viver momentos inesquecíveis. Ficara para trás a incerteza da Guiné, a experiência de voo em aviões “Caravelle” a jacto, e era a presença da família, da namorada e de amigos da juventude.
Pela recepção e pelo carinho e emoção com que me rodearam, já sentia o quanto valeu a pena ter vindo de férias. Todos queriam saber de mim e da guerra. Para eles, essa coisa que, estando tão longe e por vezes tão perto, representava sempre risco de perderem alguém.
Já no aconchego da nossa casa, o meu Pai mostrava alguma compreensão pelas minhas escolhas na vida e era o mais interessado nos pormenores da guerra, especialmente naqueles com leitura política.
Como actuava o PAIGC?
Que forças tinham?
Que áreas controlavam?
E como é o teu dia a dia?
A minha Mãe, como todas as Mães do mundo, abraçava-me a toda a hora, como quem precisa de sentir para acreditar que o filho estava ali.
O rosto da minha namorada espelhava a felicidade de me ter a seu lado.
A minha velhinha avó paterna, que me criou até aos cinco anos e que nutria por mim uma afeição especial por eu ser o seu primeiro neto, achava que estava muito magrinho e insistia para que me alimentasse melhor.
Eram tempos de partilha com a família e do regular convívio de café com os amigos, alguns deles com a possibilidade de virem a “bater com as costas” na guerra de África.
As motivações que me impeliram para vir de férias faziam todo o sentido. Tinha agora uma relação mais afectuosa com o meu Pai, transmiti à minha namorada a confiança de que os nossos sentimentos eram o futuro e estava recuperado do enorme desgaste físico em que me encontrava. Mas o tempo voa, especialmente nestas circunstâncias e, quase sem se dar por isso, a data do regressar à Guiné estava aí.
No dia do regresso, a família e a namorada acompanharam-me ao aeroporto. Enquanto se aguardava a hora das despedidas, o meu Pai pediu-me que, no regresso definitivo a casa, lhe trouxesse duas garrafas de vodka para oferecer a amigos. Percebi a motivação do pedido e garanti-lhe que seria satisfeito.
Algo afastados do local em que me encontrava com a família, notei a presença de um grupo de pessoas que incluía algumas minhas conhecidas, todas de luto, e com semblantes de dor. Dirigi-me para junto dessas pessoas, cumprimentei as que conhecia, e indaguei dos motivos do luto e da presença no aeroporto. Foi como se tivesse levado um coice no peito. Fomos Amigos de escola, Colegas na equipa de Natação do Leixões, Companheiros da Vida e Tu, logo Tu, havias de tombar em combate na Guiné.
A família a namorada e amigos estavam ali à espera da urna para lhe fazerem o funeral. Partilhei com eles alguns momentos de pesar e dor. Quando os informei de que estava ali para regressar á Guiné, ficaram pesarosos e desejaram-me a maior sorte do Mundo.
O tempo que restava não me permitiu assistir
à chegada da urna do meu Amigo. Evitei que a minha família percebesse o motivo porque me tinha afastado. Posteriormente, viria a saber que o meu Companheiro e Amigo que servia nas tropas paraquedistas, havia tombado na zona de Galomaro, numa emboscada junto de uma fonte.
Era o regresso marcado pelas sombras da guerra. Mas valeu a pena ter vindo de férias. Estava grato pelo carinho de todos e fiquei rendido, aquelas lágrimas rebeldes que vi saírem dos olhos do meu Pai, no momento do abraço de despedida. Sim, eu sei que valeu a pena. Tal como a viagem de barco, a viagem de avião de regresso à Guiné faria escala em Cabo Verde, desta vez na Ilha do Sal.
Fizemos uma paragem de cerca de uma hora e, por aquilo que pude ver, a ilha era muito árida e pouco povoada. Desci em Bissau no início de Junho e já chovia. À boleia, numa viatura militar, fui de Bissalanca até ao Depósito de Adidos em Brá. Aqui, fiquei aguardar transporte para o Xitole.
Instalado, apressei-me a ir cumprimentar o Sargento Enfermeiro que me havia tratado quando cheguei à Guiné, pela primeira vez. Já não me conhecia, era normal, tanta gente lhe havia passado pelas mãos mas, devia-lhe a gratidão pelo seu cuidado e disso dei testemunho do meu agradecimento.
Este tempo de espera permitiu-me “saborear” Bissau, os seus recantos e encantos, mistérios e até perigos. Pude desta feita, conhecer os locais mais frequentados pela tropa “macaca”. Quantos de nós terão resistido à tentação de se aventurar pelo “Pilão” e sentir aquela atmosfera de provocação, aquela mistura de desafio, “pecado” e até magia que nos envolvia. Eram as mulheres mais lindas, sobretudo as de origem cabo-verdiana, o motivo maior da nossa atenção.
Falava-se de que, por estas bandas, aconteceriam rixas bravas entre as tropas especiais, cada qual, numa demonstração da superioridade das suas “boinas”. Eram os tempos de se “pisar o risco” e de se dar livre escape à irreverência da juventude.
Era a quase obrigação de se ir ao UDIB dar um mergulho na piscina, ver-se um filme e depois irem alguns, os poucos que gostavam, comerem-se umas ostras ali para os lados do cais. E o ponto de encontro, camaradas? Lembram-se do imperdível Café Bento? Haverá porventura alguém que tenha passado por Bissau, especialmente da classe das praças, que não conheça o Café Bento? Era o nosso ponto de encontro, camaradas. Ali se encontravam os amigos, os amigos dos amigos, os conhecidos dos amigos e até, pasme-se, os desconhecidos.
Em pouco tempo se ficava a saber tudo o que se passou, o que se passava e o que viria a passar-se em qualquer canto, por mais escondido que estivesse no território da Guiné. Era a nossa 5.ª Rep, o serviço de informações mais eficiente, existente no território.
Entre umas canecas de boa cerveja e uma engraxadela dos sapatos a conversa fluía sempre interessante e actualizada. Foi neste meio que encontrei o namorado, de uma colega de trabalho da minha namorada, que estava no Forte de Amura como Polícia Militar. Logo ali me disponibilizou cama e mesa de qualidade bem superior à do Depósito de Adidos. Porque será que não me surpreendeu a sua atitude? É que a malta, naquelas circunstâncias, é capaz das atitudes mais nobres só para ter por perto alguém que lhe fale daquilo que lhe é familiar.
E nestas andanças, chegou o dia 9 de Junho de 1971. Estávamos na véspera do Feriado Nacional e, para minha surpresa, estava nomeado Cabo de Dia ao Depósito de Adidos. Acreditem camaradas, nunca tinha feito tal serviço. Só fui promovido a Primeiro-Cabo na data do embarque em Lisboa e, no mato, os enfermeiros estavam dispensados de serviços, assim pensava eu.
Algo me dizia, e disso comecei a convencer-me, de que nada acontecia por acaso. Ao início da noite, enquanto o pessoal em formatura aguardava a chegada do Sargento de Dia para a verificação de presenças, ouviram-se uns enormes estrondos de rebentamentos, que me pareceram vir, ali mais para os lados de Bissau. À ordem do Sargento de Dia, todos fomos procurar abrigo nas enormes “valetas” que ladeavam a parada alcatroada.
Após os primeiros impactos, os Sargento e Oficial de Dia comentavam que Bissau estaria a ser atacada. Ó diabo, nem aqui se está bem? Não se ouviam sirenes de ambulâncias. O que estaria acontecer em Bissau, será que sofremos muitas baixas?
Essa noite foi de alerta geral. Aconteceu o que muitos, há muito tempo vaticinavam. Era o fim do mito do refúgio seguro.
O PAIGC tinha feito uma demonstração do seu atrevimento e força.
No dia seguinte, nas conversas do Café Bento o assunto era o ataque a Bissau. Era assunto incontornável a que ninguém ficava indiferente. Uns diziam que os “mísseis” caíram ali para os lados dos tanques de combustível da Sacor, que ficavam nas margens do Geba às portas da cidade. Outros, afirmavam que todos os rebentamentos se deram nas bolanhas bem longe da cidade. Em Bissau e no interior, esta evolução da guerra deixou-nos a todos muito apreensivos. Que futuro?
Fiquei marcado com a convicção que nada seria como dantes na Guiné depois daquela noite.
Deixei Bissau de retorno ao Xitole a bordo de uma avioneta DO. Foi uma sensação difícil de descrever quando sobrevoei o Xitole, momentos antes de a avioneta tocar a “pista”.
Eu sabia o que via, eu sentia o que via e sabia ao que vinha. Nada podia alterar o rumo das coisas. Estava novamente confrontado com a amarga realidade da guerra.
Todas as visitas da avioneta ao Xitole geravam um movimento anormal de pessoas na zona do “hangar”, fosse pela curiosidade ou pela ânsia do tão desejado correio.
Lá estava, entre tantos, o meu camarada enfermeiro que, mal me viu, apressou o passo para me dar um abraço de boas-vindas e ajudar a carregar os meus haveres.
- Como te correram as coisas, só com o Galé a ajudar-te? - Disparei eu.
(Continua)
Principal avenida de Bissau
Messe dos oficiais e campo de futebol
Ponto de encontro – Café Bento
Momento de relaxe jogando-se a lerpa
____________Nota do editor
Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole
Guiné 63/74 - P12009: Parabéns a você (623): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 4 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12006: Parabéns a você (622): José da Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)
Nota do editor
Último poste da série de 4 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12006: Parabéns a você (622): José da Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12008: Agenda cultural (280): As nossas camaradas Enfermeiras Paraquedistas, Giselda Pessoa, Maria Arminda e Rosa Serra, vão estar amanhã, dia 5, na SIC, no programa Boa Tarde, a partir das 15h30
Amanhã, dia 5 de Setembro de 2013, as nossas camaradas Enfermeiras Paraquedistas, Giselda Pessoa, Maria Arminda e Rosa Serra, vão estar presentes no programa "Boa Tarde" da SIC, com início depois das 15h30.
Como não podia deixar de ser, a amizade que as une desde a formação deste fabuloso grupo de Enfermeiras Paraquedistas, as únicas no mundo que actuavam em teatro de guerra, será o ponto forte da entrevista.
Como é do conhecimento público, estas três nossas queridas camaradas gravaram recentemente um anúncio, no qual é realçada a ligação existente entre elas, alicerçada pelas dificuldades da missão que desempenharam na Guerra de África, que as tornaram amigas inseparáveis e cúmplices.
Aqui fica a informação e convite para quem tiver oportunidade de assistir ao programa.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11830: Agenda cultural (279): O grande Kimi Djabaté, músico de Tabatô e do Mundo, dia 26 de julho, 6ª feira, às 22h30, na Casa da Música, Porto... A não perder, cambada!... O nosso blogue apoia a música da Guiné-Bissau!
Como não podia deixar de ser, a amizade que as une desde a formação deste fabuloso grupo de Enfermeiras Paraquedistas, as únicas no mundo que actuavam em teatro de guerra, será o ponto forte da entrevista.
Como é do conhecimento público, estas três nossas queridas camaradas gravaram recentemente um anúncio, no qual é realçada a ligação existente entre elas, alicerçada pelas dificuldades da missão que desempenharam na Guerra de África, que as tornaram amigas inseparáveis e cúmplices.
Aqui fica a informação e convite para quem tiver oportunidade de assistir ao programa.
Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11830: Agenda cultural (279): O grande Kimi Djabaté, músico de Tabatô e do Mundo, dia 26 de julho, 6ª feira, às 22h30, na Casa da Música, Porto... A não perder, cambada!... O nosso blogue apoia a música da Guiné-Bissau!
Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry
1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia
7 - Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry
"A viagem do Xime (porto próximo do Quartel dos Comandos Africanos de Madina Mandinga) até à ilha de Soga (no arquipélago de Bijagós) durou seis a sete horas.
Chegamos de madrugada a Soga. Não desembarcamos. O pessoal das lanchas não podia ir a terra nem o pessoal de terra podia ir a bordo. Gerou-se a confusão entre nós.
Todos perguntávamos: para onde iremos? Ninguém sabia, nem os pilotos das embarcações. O Comandante da minha lancha também não sabia.
A moral baixou.
Falava-se que iríamos para a ilha de Como, Cabo Verde ou Teixeira Pinto.
No dia anterior à partida foi-nos dada ordem para ir a terra trocar de fardamento e armamento.
Em terra encontrei gente estrangeira que não conhecia. De onde vieram? Ninguém sabia.
Um rapaz de Conacry disse-me que íamos à terra dele.
Aquele pessoal era da República da Guiné e ia ser levado até à sua terra.
Regressei a bordo e contei o que ouvi.
- Vamos para Conacry. Vocês estão de acordo?
Ninguém estava de acordo, nem os soldados, nem os sargentos, nem os oficiais, nem o Major.
O Comandante Calvão prendeu o Major (Leal de Almeida) que se insubordinou e mandou-o para Bissau.
O nosso Major (Leal de Almeida) foi para Bissau num dia e no outro voltou com o nosso General e o Comandante Calvão.
Foi reunida a Companhia (Comandos Africanos) e o nosso General disse que iríamos a Conacry somente levar os homens que estavam na ilha e mais nada.
Deixaríamos os homens no porto e regressaríamos. Mais nada.
Começamos a pensar na família. Se por acaso tivessemos qualquer contacto com tropas da República da Guiné? Se eles viessem à nossa terra e atacassem a nossa família, gostaríamos disso?
Tenho na Guiné Portuguesa o meu pai já velho, o meu filho, os meus amigos, a família toda.
Não estava de acordo em ir. A maioria dos oficiais, sargentos e soldados também não estavam de acordo.
Mas o General (António Sebastião de Spínola) convenceu a "malta". Disse-nos que era a única maneira de acabar com a guerra. Que estava tudo arranjado e que não haveria problemas. Disse-nos que as nossas famílias não seriam esquecidas se algum mal nos acontecesse.
O General disse que não haveria problemas e que a operação seria cancelada se houvesse qualquer alteração e se se verificasse, em qualquer altura, que não seria bem sucedida.
Que havia 95% de probalidades de êxito.
Já não pudemos invocar mais nada.
Tivemos que vir.
As forças com quem viemos e que se chamavam a elas mesmas Forças da República da Guiné eram cerca de 150 homens.
A minha Companhia (Comandos Africanos) tinha, também, 150 homens.
Havia também 80 fuzileiros.
Estas forças todas foram subdivididas em pequenos grupos. Cada grupo era destacado para um barco. Ao todo eram seis barcos, que partiram a horas diferentes.
Saímos às 8 horas da noite da ilha de Soga e chegamos aqui às 10 horas da manhã do outro dia. Quando à noite se começou a ver uma luz vermelha, que é a indicação de terra, foram-nos chamar.
O Capitão Bacar (negro) chamou-me e foi então que me apareceu o Capitão Morais (branco) todo pintado de preto que eu nem o conhecia.
Ele disse-me:
- Januário, vamos saltar aqui.
- O quê? Então disseram-nos que vinhamos só trazer o pessoal e eles é que desembarcariam e agora nós também vamos a terra?
- O General mandou e temos de ir lá.
Mandou seguir seis botes cheios de gente para terra.
Eu ia no bote imediatamente atrás do Capitão Morais.
Rumamos à costa. Junto a terra encontramos duas canoas, suponho de indivíduos que andavam a pescar.
Pensei alto: eles vão ser avisados e isto vai ser uma chatice.
- Oh, não. São pescadores. Parece que estás com medo...
- Não, não estou com medo. Se você vai eu também vou.
Chegamos a terra e desembarcamos.
O Capitão Morais disse-nos:
- A nossa missão é atacar o Aeroporto e destruir os MIG's. Outros grupos atacarão o PAIGC, a estação dos correios e a emissora.
Em terra fomos progredindo sem custo.
Subimos um muro e começámos a ver o Aeroporto. Depois parámos.
O Capitão continuou.
Eu parei. Fiz sinal aos homens que me acompanhavam para pararem também.
Perdemos a ligação com o Capitão Morais.
Disse aos soldados:
- Vamos atacar esta gente? Gostaríamos que nos fizessem o mesmo? Eu não atacarei ninguém. Quem quiser ficar comigo que venha para aqui. Os outros que corram para a frente.
Vinte homens que estavam comigo decidiram logo não atacar.
Regressamos todos ao ponto onde desembarcámos.
Eu bem sabia que quando chegasse a Bissau teria alguns anos de cadeia.
Quando chegámos à costa já não apanhámos os barcos.
Resolvemos esconder-nos e esperar pela manhã.
Resolvi apresentar-me às autoridades logo que amanhecesse.
Encontrei um rapaz daqui que me levou à Polícia Popular.
Aí disse o que tinha acontecido e fiz a entrega das armas.
Os soldados que estavam comigo acompanharam-me e fizeram o mesmo.
Verificou-se logo que as armas não haviam feito fogo.
Estas informações foram ditas por mim, Tenente Januário, e se não digo mais é porque mais não sei."
O Tenente Januário foi, passado algum tempo, julgado e condenado à morte, tendo, posteriormente, sido fuzilado.
___________
Nota do editor
Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia
7 - Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry
"A viagem do Xime (porto próximo do Quartel dos Comandos Africanos de Madina Mandinga) até à ilha de Soga (no arquipélago de Bijagós) durou seis a sete horas.
Chegamos de madrugada a Soga. Não desembarcamos. O pessoal das lanchas não podia ir a terra nem o pessoal de terra podia ir a bordo. Gerou-se a confusão entre nós.
Todos perguntávamos: para onde iremos? Ninguém sabia, nem os pilotos das embarcações. O Comandante da minha lancha também não sabia.
A moral baixou.
Falava-se que iríamos para a ilha de Como, Cabo Verde ou Teixeira Pinto.
No dia anterior à partida foi-nos dada ordem para ir a terra trocar de fardamento e armamento.
Em terra encontrei gente estrangeira que não conhecia. De onde vieram? Ninguém sabia.
Um rapaz de Conacry disse-me que íamos à terra dele.
Aquele pessoal era da República da Guiné e ia ser levado até à sua terra.
Regressei a bordo e contei o que ouvi.
- Vamos para Conacry. Vocês estão de acordo?
Ninguém estava de acordo, nem os soldados, nem os sargentos, nem os oficiais, nem o Major.
O Comandante Calvão prendeu o Major (Leal de Almeida) que se insubordinou e mandou-o para Bissau.
O nosso Major (Leal de Almeida) foi para Bissau num dia e no outro voltou com o nosso General e o Comandante Calvão.
Foi reunida a Companhia (Comandos Africanos) e o nosso General disse que iríamos a Conacry somente levar os homens que estavam na ilha e mais nada.
Deixaríamos os homens no porto e regressaríamos. Mais nada.
Começamos a pensar na família. Se por acaso tivessemos qualquer contacto com tropas da República da Guiné? Se eles viessem à nossa terra e atacassem a nossa família, gostaríamos disso?
Tenho na Guiné Portuguesa o meu pai já velho, o meu filho, os meus amigos, a família toda.
Não estava de acordo em ir. A maioria dos oficiais, sargentos e soldados também não estavam de acordo.
Mas o General (António Sebastião de Spínola) convenceu a "malta". Disse-nos que era a única maneira de acabar com a guerra. Que estava tudo arranjado e que não haveria problemas. Disse-nos que as nossas famílias não seriam esquecidas se algum mal nos acontecesse.
O General disse que não haveria problemas e que a operação seria cancelada se houvesse qualquer alteração e se se verificasse, em qualquer altura, que não seria bem sucedida.
Que havia 95% de probalidades de êxito.
Já não pudemos invocar mais nada.
Tivemos que vir.
As forças com quem viemos e que se chamavam a elas mesmas Forças da República da Guiné eram cerca de 150 homens.
A minha Companhia (Comandos Africanos) tinha, também, 150 homens.
Havia também 80 fuzileiros.
Estas forças todas foram subdivididas em pequenos grupos. Cada grupo era destacado para um barco. Ao todo eram seis barcos, que partiram a horas diferentes.
Saímos às 8 horas da noite da ilha de Soga e chegamos aqui às 10 horas da manhã do outro dia. Quando à noite se começou a ver uma luz vermelha, que é a indicação de terra, foram-nos chamar.
O Capitão Bacar (negro) chamou-me e foi então que me apareceu o Capitão Morais (branco) todo pintado de preto que eu nem o conhecia.
Ele disse-me:
- Januário, vamos saltar aqui.
- O quê? Então disseram-nos que vinhamos só trazer o pessoal e eles é que desembarcariam e agora nós também vamos a terra?
- O General mandou e temos de ir lá.
Mandou seguir seis botes cheios de gente para terra.
Eu ia no bote imediatamente atrás do Capitão Morais.
Rumamos à costa. Junto a terra encontramos duas canoas, suponho de indivíduos que andavam a pescar.
Pensei alto: eles vão ser avisados e isto vai ser uma chatice.
- Oh, não. São pescadores. Parece que estás com medo...
- Não, não estou com medo. Se você vai eu também vou.
Chegamos a terra e desembarcamos.
O Capitão Morais disse-nos:
- A nossa missão é atacar o Aeroporto e destruir os MIG's. Outros grupos atacarão o PAIGC, a estação dos correios e a emissora.
Em terra fomos progredindo sem custo.
Subimos um muro e começámos a ver o Aeroporto. Depois parámos.
O Capitão continuou.
Eu parei. Fiz sinal aos homens que me acompanhavam para pararem também.
Perdemos a ligação com o Capitão Morais.
Disse aos soldados:
- Vamos atacar esta gente? Gostaríamos que nos fizessem o mesmo? Eu não atacarei ninguém. Quem quiser ficar comigo que venha para aqui. Os outros que corram para a frente.
Vinte homens que estavam comigo decidiram logo não atacar.
Regressamos todos ao ponto onde desembarcámos.
Eu bem sabia que quando chegasse a Bissau teria alguns anos de cadeia.
Quando chegámos à costa já não apanhámos os barcos.
Resolvemos esconder-nos e esperar pela manhã.
Resolvi apresentar-me às autoridades logo que amanhecesse.
Encontrei um rapaz daqui que me levou à Polícia Popular.
Aí disse o que tinha acontecido e fiz a entrega das armas.
Os soldados que estavam comigo acompanharam-me e fizeram o mesmo.
Verificou-se logo que as armas não haviam feito fogo.
Estas informações foram ditas por mim, Tenente Januário, e se não digo mais é porque mais não sei."
O Tenente Januário foi, passado algum tempo, julgado e condenado à morte, tendo, posteriormente, sido fuzilado.
___________
Nota do editor
Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry
Guiné 63/74 - P12006: Parabéns a você (622): José da Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)
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Nota do editor
Último poste da série de 3 de Setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P12001: Parabéns a você (621): Luís Gonçalves Vaz, amigo Grã-Tabanqueiro
Nota do editor
Último poste da série de 3 de Setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P12001: Parabéns a você (621): Luís Gonçalves Vaz, amigo Grã-Tabanqueiro
terça-feira, 3 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12005: Bom ou mau tempo na bolanha (30): O "Zé Quina" que já foi o "Marafado" (Tony Borié)
Trigésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
O Tony, hoje vai contar a história do Zé Quina, cujo nome de guerra era o “Marafado”, seu companheiro de armas na então província da Guiné, história esta contada por ele, com a ajuda de sua esposa e principalmente da sua sogra, que não parava de o interromper, criticando-o a todo o momento, e mais tarde, coisas que o Tony ia presenciando, portanto cá vai.
O Zé d’Aurora gritava olhando o céu com o pensamento nos seus dois filhos, que agarrados aos remos da bateira, tentavam entrar a barra, com o mar mais violento e feroz do que um leão esfomeado.
- Ai, Virgem Santíssima! Salva-nos, por misericórdia das almas bondosas que estão no céu!
Tinham saído a barra com bom tempo, lançaram uma pequena rede, não tinham pescado quase nada, só peixe miúdo. O peixe miúdo, serviu de isca, depois com a corda dos anzóis, aí sim, tinham muito peixe e algum graúdo.
De repente, levanta-se uma aragem que se transformou em forte vento, as ondas levantaram-se.
O Zé d’Aurora, continuava a gritar para os filhos:
- Vamos embora, direitos à barra, pois isto vem do lado da Espanha, e da Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!
Remaram o mais que puderam, mas o mar apanhou-os quase a dobrarem a barra. O Zé Quina e o irmão, cada um agarrado ao seu remo, quase que batiam com a ponta do remo um no outro, tal era a força e o desespero com que remavam, ouvindo os gritos de angústia do seu pai.
Não sabem se foram salvos pelas almas bondosas que estavam no céu, ou pelo seu esforço em remar. A verdade, é que entraram a barra, ancoraram a bateira, descarregaram o peixe, e como sempre, e que aqui algumas vezes já foi dito, foram direitos à taverna do “Manhoso”, onde beberam dois copos de “abafado” cada um, em sinal de agradecimento, por estarem vivos.
O Zé Quina andava com o pai e o irmão mais novo ao mar, e como já foi dito em outras ocasiões, também ajudava num circo que visitava a vila no verão.
Tinha dias em que valia a pena, outros não. Quando havia boa pescaria, gastava-se, quando não havia pescaria, gastava-se na mesma, só que era fiado, o “Manhoso”, apontava no livro.
O Zé Quina, chega à idade de ir “às sortes”, como todos os outros rapazes na sua idade, e como Portugal estava em guerra, leva um carimbo a letras vermelhas no papel com os resultados da inspecção onde dizia, “apurado para todo o serviço militar”.
Na altura devida, apresenta-se num quartel da província, recebe um treino básico, depois aprende a disparar uma arma com alguma precisão, e vem para a então província da Guiné, para um cenário de guerra defender a sua Pátria.
Era do Algarve, e vem no mesmo barco onde vinha o Cifra, e é baptizado com o nome de guerra de o “Marafado”, porque cantava uns fados muito desafinados.
Cumpriu dois anos em cenário de guerra, era militar de combate, como tal sofreu angústias e desesperos, chorou, riu, embora para o final, não falasse muito, era uma pessoa calada, a guerra marcou-o, enfim passou por todos os sentimentos que os seus companheiros, na mesma situação passaram, e que os leitores já conhecem de algumas histórias que o Cifra já mencionou, onde ele era o protagonista, teve alguma sorte, regressou a Portugal vivo.
Como militar de combate, era corajoso e com espírito de aventura, e dizia sempre, “que não era pássaro de gaiola”.
Sai de portugal, primeiro vai para o Canadá, depois já com alguns contactos atravessa a fronteira e entra nos Estados Unidos. Começa a trabalhar num barco de pesca, num Estado do norte, e como é bom pescador a companhia proprietária do barco, legaliza-o ao fim de algum tempo.
Já legal, e com autorização de trabalhar e viver nos Estados Unidos, o Zé Quina vem para Nova Jersey. Vem viver no meio de uma comunidade portuguesa, que vive numa cidade ao sul do rio Passaic, quase na sua foz. Aí conhece a Isabel, cujos pais também são oriundos do Algarve. Gosta dela, ela corresponde, namoram e casam-se.
O sogro, como trabalhava há muitos anos numa grande companhia, no sul de Nova Jersey, arranja-lhe emprego nessa mesma companhia. Ele novo e ambicioso, e como essa companhia tinha sempre falta de pessoal, e os altos fornos de fundição, quando chegava a hora de descarregarem, não podiam esperar, ofereciam-lhe muitas horas extraordinárias.
Ele trabalhava sempre dois turnos seguidos, não trabalhava mais porque era proibido. Praticamente vinha a casa só para dormir.
A Isabel também trabalha numa fábrica de curtir peles, era a “fábrica das peles”. Compraram uma casa junto dos pais da Isabel. O Zé Quina trabalha por turnos de oito horas, em diferentes dias, incluindo fins de semana, portanto encontra-se com a Isabel no intervalo desses turnos, ou seja raras vezes estão juntos em casa, praticamente só alguns dias e à noite.
Ela fica grávida, têm um filho e o trabalho continua. O Zé Quina, quando vinha para casa, normalmente parava num bar que ficava próximo de sua casa, bebia um copo e não perdia oportunidade para mostrar o cheque, dizendo:
- Não acredito que ninguém ganhe mais dinheiro à semana do que eu. Vejam só este cheque!
O dinheiro tinha tomado conta do seu pensamento. Por vezes, passavam necessidade em casa, mas tinham que pôr aquela quantia no banco, todas as semanas.
A Isabel fica grávida de novo, têm mais um menino.
O ritmo de trabalho, não pára. A mãe da Isabel toma conta das crianças nas horas em que esta trabalha. O Zé Quina não pára de fazer horas extraordinárias.
A Isabel, torna a ficar grávida, nasce outro rapaz, portanto, têm três filhos.
Os sogros, dizem-lhe:
- Entendemos que já chega, se querem mais filhos, tomem vocês conta deles.
A Isabel tinha tido complicações no último parto e tinham- lhe tirado alguns órgãos interiores. Não podia ter mais filhos, pelo menos era o que os médicos diziam.
Entretanto os filhos foram crescendo, a Isabel trabalhando na “fábrica das peles” e o Zé Quina, na companhia de altos fornos.
Os filhos, enquanto eram pequenos, a avó ia controlando, levava-os à escola, esperava por eles à saída e trazia-os para casa.
Com o crescimento deles, e já sem controle nos mais velhos, a avó, certa noite em que o Zé Quina e a Isabel estavam em casa juntos, diz-lhes:
- Vocês têm que parar com o trabalho e tomarem conta dos vossos filhos, o dinheiro não é tudo na vida. Eu já não tenho mão nos mais velhos, continuando assim, vão ser uns filhos da rua!
E saiu, porta fora, irritada.
O Zé Quina diz para a Isabel:
- O que é que está mal com a tua mãe?
Ao que a Isabel, responde:
- Eu não sei, deixa-a para lá, e a propósito, onde é que estão os garotos?
Os garotos andavam na rua, e já era noite.
Os anos passaram. O Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony, um dia lendo o jornal português que se publicava na comunidade também portuguesa, vê a fotografia e a notícia de um acidente, onde logo reconheceu o “Marafado”. Vai ao hospital onde o jornal dizia que estava internado, deparando com ele, que agora era única e simplesmente Zé Quina.
Estava muito mal tratado, tinha tido um grande acidente, na óptica da sua sogra, talvez se devesse ao desgaste físico.
Vinha do trabalho, conduzindo o seu carro, saiu da faixa de rodagem, foi abalroado por um camião que vinha em sentido contrário. Sobreviveu, como tinha sobrevivido da guerra na então província da Guiné.
Passado um certo tempo saiu do hospital, mas não sente um braço e caminha com certa dificuldade. No inverno usa uma bengala especial.
O filho do meio apareceu morto nuns terrenos debaixo duma ponte, onde passa a auto estrada. No hospital, na altura da autópsia, o diagnóstico médico foi “overdose”.
O mais novo, por diversas vezes foi internado para reabilitação, pois é dependente, saía curado, mas passado um tempo, voltava a drogar- se.
Era bom rapaz, mas o vício era mais forte. Ficou internado permanentemente e ajuda na clínica de reabilitação.
O mais velho estava preso, cumprindo pena por assalto com arma de fogo. Estava quase a acabar de cumprir a pena, e portanto em breve iria sair em liberdade.
Os vizinhos diziam:
- Deus o mantenha preso por toda a vida, pois se regressar vai ser o martírio daqueles pais.
A Mãe Isabel anda vestida de preto, passa a vida a caminhar para a igreja de Nossa Senhora de Fátima, que existe na comunidade portuguesa, pedindo para que Deus a leve.
O Zé Quina anda pela rua, quando há bom tempo. Vai ao bar, onde mostrava o cheque, e quando pede uma bebida, fecha os olhos, levanta a cabeça em direcção ao céu, talvez pensando no seu pai e no irmão, e quando iam juntos à taverna do “Manhoso”. Balbucia umas palavras que ninguém entende, limpa umas lágrimas com a mão do braço que está bom e pede a alguém que lhe tire umas moedas do bolso, que está no outro lado das calças, a que não pode chegar, para pagar a bebida.
Da última vez que o Tony foi ao norte visitar os filhos, procurou o Zé Quina, e foi vê-lo ao cemitério, onde a Isabel o levou, banhada em lágrimas, mostrando-lhe a sua campa, onde o Tony deixou algumas flores, fechou os olhos e no seu pensamento, viu-o a ir junto com o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia, e com o Furriel Miliciano, a fumar o seu cigarro feito à mão, com a sua G3 nas mãos, a irem combater para o interior das florestas e pântanos, da então província da Guiné.
Paz à sua alma.
Tony Borie,
Junho de 2010.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11985: Bom ou mau tempo na bolanha (29): Herói Combatente (Toni Borié)
O Tony, hoje vai contar a história do Zé Quina, cujo nome de guerra era o “Marafado”, seu companheiro de armas na então província da Guiné, história esta contada por ele, com a ajuda de sua esposa e principalmente da sua sogra, que não parava de o interromper, criticando-o a todo o momento, e mais tarde, coisas que o Tony ia presenciando, portanto cá vai.
O Zé d’Aurora gritava olhando o céu com o pensamento nos seus dois filhos, que agarrados aos remos da bateira, tentavam entrar a barra, com o mar mais violento e feroz do que um leão esfomeado.
- Ai, Virgem Santíssima! Salva-nos, por misericórdia das almas bondosas que estão no céu!
Tinham saído a barra com bom tempo, lançaram uma pequena rede, não tinham pescado quase nada, só peixe miúdo. O peixe miúdo, serviu de isca, depois com a corda dos anzóis, aí sim, tinham muito peixe e algum graúdo.
De repente, levanta-se uma aragem que se transformou em forte vento, as ondas levantaram-se.
O Zé d’Aurora, continuava a gritar para os filhos:
- Vamos embora, direitos à barra, pois isto vem do lado da Espanha, e da Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!
Remaram o mais que puderam, mas o mar apanhou-os quase a dobrarem a barra. O Zé Quina e o irmão, cada um agarrado ao seu remo, quase que batiam com a ponta do remo um no outro, tal era a força e o desespero com que remavam, ouvindo os gritos de angústia do seu pai.
Não sabem se foram salvos pelas almas bondosas que estavam no céu, ou pelo seu esforço em remar. A verdade, é que entraram a barra, ancoraram a bateira, descarregaram o peixe, e como sempre, e que aqui algumas vezes já foi dito, foram direitos à taverna do “Manhoso”, onde beberam dois copos de “abafado” cada um, em sinal de agradecimento, por estarem vivos.
O Zé Quina andava com o pai e o irmão mais novo ao mar, e como já foi dito em outras ocasiões, também ajudava num circo que visitava a vila no verão.
Tinha dias em que valia a pena, outros não. Quando havia boa pescaria, gastava-se, quando não havia pescaria, gastava-se na mesma, só que era fiado, o “Manhoso”, apontava no livro.
O Zé Quina, chega à idade de ir “às sortes”, como todos os outros rapazes na sua idade, e como Portugal estava em guerra, leva um carimbo a letras vermelhas no papel com os resultados da inspecção onde dizia, “apurado para todo o serviço militar”.
Na altura devida, apresenta-se num quartel da província, recebe um treino básico, depois aprende a disparar uma arma com alguma precisão, e vem para a então província da Guiné, para um cenário de guerra defender a sua Pátria.
Era do Algarve, e vem no mesmo barco onde vinha o Cifra, e é baptizado com o nome de guerra de o “Marafado”, porque cantava uns fados muito desafinados.
Cumpriu dois anos em cenário de guerra, era militar de combate, como tal sofreu angústias e desesperos, chorou, riu, embora para o final, não falasse muito, era uma pessoa calada, a guerra marcou-o, enfim passou por todos os sentimentos que os seus companheiros, na mesma situação passaram, e que os leitores já conhecem de algumas histórias que o Cifra já mencionou, onde ele era o protagonista, teve alguma sorte, regressou a Portugal vivo.
Como militar de combate, era corajoso e com espírito de aventura, e dizia sempre, “que não era pássaro de gaiola”.
Sai de portugal, primeiro vai para o Canadá, depois já com alguns contactos atravessa a fronteira e entra nos Estados Unidos. Começa a trabalhar num barco de pesca, num Estado do norte, e como é bom pescador a companhia proprietária do barco, legaliza-o ao fim de algum tempo.
Já legal, e com autorização de trabalhar e viver nos Estados Unidos, o Zé Quina vem para Nova Jersey. Vem viver no meio de uma comunidade portuguesa, que vive numa cidade ao sul do rio Passaic, quase na sua foz. Aí conhece a Isabel, cujos pais também são oriundos do Algarve. Gosta dela, ela corresponde, namoram e casam-se.
O sogro, como trabalhava há muitos anos numa grande companhia, no sul de Nova Jersey, arranja-lhe emprego nessa mesma companhia. Ele novo e ambicioso, e como essa companhia tinha sempre falta de pessoal, e os altos fornos de fundição, quando chegava a hora de descarregarem, não podiam esperar, ofereciam-lhe muitas horas extraordinárias.
Ele trabalhava sempre dois turnos seguidos, não trabalhava mais porque era proibido. Praticamente vinha a casa só para dormir.
A Isabel também trabalha numa fábrica de curtir peles, era a “fábrica das peles”. Compraram uma casa junto dos pais da Isabel. O Zé Quina trabalha por turnos de oito horas, em diferentes dias, incluindo fins de semana, portanto encontra-se com a Isabel no intervalo desses turnos, ou seja raras vezes estão juntos em casa, praticamente só alguns dias e à noite.
Ela fica grávida, têm um filho e o trabalho continua. O Zé Quina, quando vinha para casa, normalmente parava num bar que ficava próximo de sua casa, bebia um copo e não perdia oportunidade para mostrar o cheque, dizendo:
- Não acredito que ninguém ganhe mais dinheiro à semana do que eu. Vejam só este cheque!
O dinheiro tinha tomado conta do seu pensamento. Por vezes, passavam necessidade em casa, mas tinham que pôr aquela quantia no banco, todas as semanas.
A Isabel fica grávida de novo, têm mais um menino.
O ritmo de trabalho, não pára. A mãe da Isabel toma conta das crianças nas horas em que esta trabalha. O Zé Quina não pára de fazer horas extraordinárias.
A Isabel, torna a ficar grávida, nasce outro rapaz, portanto, têm três filhos.
Os sogros, dizem-lhe:
- Entendemos que já chega, se querem mais filhos, tomem vocês conta deles.
A Isabel tinha tido complicações no último parto e tinham- lhe tirado alguns órgãos interiores. Não podia ter mais filhos, pelo menos era o que os médicos diziam.
Entretanto os filhos foram crescendo, a Isabel trabalhando na “fábrica das peles” e o Zé Quina, na companhia de altos fornos.
Os filhos, enquanto eram pequenos, a avó ia controlando, levava-os à escola, esperava por eles à saída e trazia-os para casa.
Com o crescimento deles, e já sem controle nos mais velhos, a avó, certa noite em que o Zé Quina e a Isabel estavam em casa juntos, diz-lhes:
- Vocês têm que parar com o trabalho e tomarem conta dos vossos filhos, o dinheiro não é tudo na vida. Eu já não tenho mão nos mais velhos, continuando assim, vão ser uns filhos da rua!
E saiu, porta fora, irritada.
O Zé Quina diz para a Isabel:
- O que é que está mal com a tua mãe?
Ao que a Isabel, responde:
- Eu não sei, deixa-a para lá, e a propósito, onde é que estão os garotos?
Os garotos andavam na rua, e já era noite.
Os anos passaram. O Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony, um dia lendo o jornal português que se publicava na comunidade também portuguesa, vê a fotografia e a notícia de um acidente, onde logo reconheceu o “Marafado”. Vai ao hospital onde o jornal dizia que estava internado, deparando com ele, que agora era única e simplesmente Zé Quina.
Estava muito mal tratado, tinha tido um grande acidente, na óptica da sua sogra, talvez se devesse ao desgaste físico.
Vinha do trabalho, conduzindo o seu carro, saiu da faixa de rodagem, foi abalroado por um camião que vinha em sentido contrário. Sobreviveu, como tinha sobrevivido da guerra na então província da Guiné.
Passado um certo tempo saiu do hospital, mas não sente um braço e caminha com certa dificuldade. No inverno usa uma bengala especial.
O filho do meio apareceu morto nuns terrenos debaixo duma ponte, onde passa a auto estrada. No hospital, na altura da autópsia, o diagnóstico médico foi “overdose”.
O mais novo, por diversas vezes foi internado para reabilitação, pois é dependente, saía curado, mas passado um tempo, voltava a drogar- se.
Era bom rapaz, mas o vício era mais forte. Ficou internado permanentemente e ajuda na clínica de reabilitação.
O mais velho estava preso, cumprindo pena por assalto com arma de fogo. Estava quase a acabar de cumprir a pena, e portanto em breve iria sair em liberdade.
Os vizinhos diziam:
- Deus o mantenha preso por toda a vida, pois se regressar vai ser o martírio daqueles pais.
A Mãe Isabel anda vestida de preto, passa a vida a caminhar para a igreja de Nossa Senhora de Fátima, que existe na comunidade portuguesa, pedindo para que Deus a leve.
O Zé Quina anda pela rua, quando há bom tempo. Vai ao bar, onde mostrava o cheque, e quando pede uma bebida, fecha os olhos, levanta a cabeça em direcção ao céu, talvez pensando no seu pai e no irmão, e quando iam juntos à taverna do “Manhoso”. Balbucia umas palavras que ninguém entende, limpa umas lágrimas com a mão do braço que está bom e pede a alguém que lhe tire umas moedas do bolso, que está no outro lado das calças, a que não pode chegar, para pagar a bebida.
Da última vez que o Tony foi ao norte visitar os filhos, procurou o Zé Quina, e foi vê-lo ao cemitério, onde a Isabel o levou, banhada em lágrimas, mostrando-lhe a sua campa, onde o Tony deixou algumas flores, fechou os olhos e no seu pensamento, viu-o a ir junto com o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia, e com o Furriel Miliciano, a fumar o seu cigarro feito à mão, com a sua G3 nas mãos, a irem combater para o interior das florestas e pântanos, da então província da Guiné.
Paz à sua alma.
Tony Borie,
Junho de 2010.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11985: Bom ou mau tempo na bolanha (29): Herói Combatente (Toni Borié)
Guiné 63/74 - P12004: Efemérides (141): Homenagem aos Combatentes em Monte Real, levada a efeito no passado dia 1 de Setembro de 2013 (Joaquim Mexia Alves)
1. Com a devida vénia à Tabanca do Centro, ao nosso camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73) e ao nosso camarada Miguel Pessoa, Coronel Pilav Ref (BA12, 1972/74), autor da reportagem, transcrevemos o post publicado, hoje mesmo naquela página, a propósito da Homenagem aos Combatentes da Vila de Monte Real, levada a efeito no passado dia 1 de Setembro de 2013:
Resumimos os diversos passos da cerimónia que se iniciou, cerca das 16H30, com o descerramento da placa em honra aos Combatentes da freguesia de Monte Real, acto em que participaram o Presidente da Câmara Municipal de Leiria, Dr. Raul Castro, o Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real, Sr. Faustino Guerra e o Combatente Manuel Lopes, sendo a placa benzida pelo Revº Padre David Nogueira, Pároco da Paróquia de Monte Real.
O Presidente da Junta de Freguesia, Sr. Faustino Guerra, promotor desta iniciativa, transmitiu as suas palavras de boas vindas e de apoio aos Combatentes da freguesia de Monte Real e saudou a população em geral por participar nesta cerimónia.
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11992: Efemérides (140): 8º aniversário do monumento aos combatentes da Lourinhã, 25/8/2013 (IV e última parte)
HOMENAGEM AOS COMBATENTES EM MONTE REAL
No passado dia 1 de Setembro concretizou-se finalmente o projecto de inauguração de um monumento aos combatentes na vila de Monte Real. Baseado na ideia de dois combatentes dessa freguesia que se bateram pela concretização desse projecto - Manuel de Jesus Duarte e Manuel Lopes - teve depois o apoio da Junta de Freguesia de Monte Real, da Câmara Municipal de Leiria e do Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes, a que se juntou a nossa Tabanca do Centro.
O período de férias que ainda se verifica terá afastado alguns potenciais participantes, mas nem por isso a cerimónia deixou de ter a dignidade que um tal evento merecia.
É claro que uns tantos camarigos, já algo saudosos dos convívios periódicos que aqui se realizam – e que estiveram interrompidos nos meses de Julho e Agosto, devido à menor disponibilidade do pessoal – a anteceder a cerimónia resolveram reunir-se num almoço na habitual Pensão Montanha. Com a presença de alguns familiares dos camarigos da TC estiveram presentes no almoço 20 convivas, que tentaram pôr em dia as conversas interrompidas desde Junho.
Pelas 16H00 dirigiram-se então os participantes para o local de concentração, nas imediações da Junta de Freguesia, seguindo daí para o local da inauguração, situado no largo junto aos Correios.
Para além da presença do Presidente da Câmara Municipal Dr. Raul Castro (ele próprio combatente com uma comissão cumprida na Guiné), do Presidente da Junta de Freguesia Sr. Faustino Guerra e do Presidente do Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes TCor. Mário Ley Garcia (responsável pelo desenrolar da cerimónia), estiveram presentes representantes das Forças Militares do Distrito, bem como uma força da Polícia Aérea pertencente à vizinha Base de Monte Real (BA5). E claro, vários camarigos da Tabanca do Centro (e familiares) que quiseram associar-se a esta iniciativa, liderados pelo seu Amado Chefe, Joaquim Mexia Alves, colaborador activo na preparação do evento.
Resumimos os diversos passos da cerimónia que se iniciou, cerca das 16H30, com o descerramento da placa em honra aos Combatentes da freguesia de Monte Real, acto em que participaram o Presidente da Câmara Municipal de Leiria, Dr. Raul Castro, o Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real, Sr. Faustino Guerra e o Combatente Manuel Lopes, sendo a placa benzida pelo Revº Padre David Nogueira, Pároco da Paróquia de Monte Real.
Seguiu-se a deposição de uma coroa de flores pelos Sr. Faustino Guerra e TCOR Ley Garcia junto ao Monumento, em homenagem aos combatentes já falecidos, com um período de 30 segundos de silêncio, a que todos os presentes se associaram.
Seguiram-se as palavras alusivas à cerimónia proferidas pelos diversos apoiantes da cerimónia:
O Presidente da Junta de Freguesia, Sr. Faustino Guerra, promotor desta iniciativa, transmitiu as suas palavras de boas vindas e de apoio aos Combatentes da freguesia de Monte Real e saudou a população em geral por participar nesta cerimónia.
Seguiu-se a alocução do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves, que pelo seu conteúdo decidimos reproduzir na íntegra no final desta reportagem, pois consideramos que as suas palavras dão voz àquilo que vai na mente de muitos combatentes.
O Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes, Tenente-Coronel Ley Garcia, proferiu depois algumas palavras de reconhecimento e incentivo aos combatentes da freguesia, traçando ainda um breve historial da Liga dos Combatentes e do seu núcleo de Leiria.
Finalmente o Presidente da Câmara Municipal de Leiria, Dr. Raul Castro, saudou os Combatentes da freguesia de Monte Real, fazendo menção dum modo particular e bastante elogioso à nossa Tabanca do Centro (em cujos encontros ele próprio, como combatente, tem tido a oportunidade de participar), realçando as palavras “solidariedade” e “amizade” como duas das características que melhor identificam este nosso grupo.
Em reconhecimento do trabalho realizado em prol destes Combatentes, ao encontro dos objectivos da Liga de preservação dos valores patrióticos e de dignificação dos Combatentes, decidiu a Liga dos Combatentes entregar a sua medalha à Junta de Freguesia de Monte Real.
Seguiu-se finalmente a entrega a três combatentes da freguesia - de que realçamos os nomes dos nossos camarigos da TC, Manuel Lopes e Agostinho Gaspar – a Medalha Comemorativa das Campanhas. Bom, sempre pensamos que podia ter chegado bem mais cedo…
No final, cerca das 17H30, seguiu-se um lanche-convívio nas instalações da Junta de Freguesia, em que participou o pessoal que estava inscrito.
************
AS PALAVRAS DO JOAQUIM MEXIA ALVES:
“Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Leiria
Exmo. Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real
Exmo. Sr. Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes
Rerº Pároco da Paróquia de Monte Real
Exmas. Autoridades Civis e Militares aqui presentes
Permitam-me uma especial saudação à única mulher combatente aqui presente entre nós, a Enfermeira-Paraquedista Giselda Pessoa.
Meus caríssimos combatentes, meus camarigos aqui presentes
Minhas Senhoras e meus Senhores
Antes do mais uma curta explicação sobre um termo que usei ainda agora, camarigos, e que com certeza causou estranheza a algumas pessoas aqui presentes.
Camarigo é um termo inventado por alguns destes combatentes aqui presentes para significar algo de muito especial.
É a junção da palavra camarada com a palavra amigo.
Isto assim foi feito para tentar definir algo que vai para além da simples camaradagem militar, pois que essa camaradagem quando vivida em guerra, ultrapassa largamente a relação simples entre dois militares, para se tornar uma verdadeira amizade para toda a vida.
Assim acontece, porque em guerra cada um coloca a sua vida nas mãos do outro, e por isso mesmo a relação que se estabelece é mais do que ser camarada de armas.
É ser também amigo, e amigo para sempre.
Daí este termo inventado: camarigo!
Feita a explicação, passemos à homenagem que hoje aqui nos traz.
O combatente Manuel Lopes teve um sonho e quis concretizá-lo.
Abro aqui um parêntesis para dizer que me foi informado há dois dias, que também o combatente Manuel de Jesus Duarte, desta nossa freguesia, já tinha manifestado essa mesma intenção ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia Monte Real, pelo que é de inteira justiça aqui citá-lo como parte integrante desta homenagem.
Queria o camarigo Manuel Lopes ver em Monte Real um singelo monumento de homenagem aos combatentes do Ultramar.
Homem insistente como sabe ser, falou com o Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real, Sr. Faustino Guerra aqui presente, que não se pôs de lado e adoptou a ideia para que a mesma seguisse em frente.
Num almoço da Tabanca do Centro, (uma associação informal de combatentes, sobretudo da Guiné, que todos os meses se junta em Monte Real para um almoço de convívio vindos de várias partes de Portugal), falou ao Presidente da Câmara de Leiria, Dr. Raul Castro, hoje aqui connosco também, ele próprio um combatente pois fez uma comissão militar na Guiné, que obviamente também apadrinhou a ideia, juntou-lhe ainda o Ten Cor Ley Garcia, Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes e envolveu-me também a mim, para fazer, digamos assim, um núcleo de pessoas que concretizasse o seu sonho.
E não foi difícil, porque todos se juntaram, apoiando a ideia, dando-lhe corpo e finalmente tudo organizando, sob o “comando”, passe a expressão, do Presidente da Junta de Freguesia, de modo a estarmos aqui hoje para concretizar esta homenagem aos combatentes da Guerra do Ultramar.
Homenageamos os combatentes, não homenageamos a guerra, porque as guerras não são coisa de homenagear.
Não há guerras boas, nem guerras más, porque todas elas fazem vítimas, e as vitimas das guerras não têm cor, não têm nem lado, são apenas e tão só vítimas.
Há umas dezenas de anos atrás Portugal envolveu-se numa guerra em África e assim toda uma geração de jovens foi chamada a lutar nessa guerra, longe de casa, longe da sua terra, e em condições que muitas vezes eram apenas da mais elementar sobrevivência.
Mais de boa vontade ou menos de boa vontade, (às vezes até parece que há muita gente de boa vontade para fazer uma guerra?), responderam sim e lá demandaram o continente africano para uma muito dura prova de pelo menos dois anos.
Uns por lá ficaram dando a própria vida, vítimas da guerra, e esses hoje recordamo-los com saudade, mas também com todo o respeito, com toda a dignidade, com todo o orgulho que merecem aqueles que dão a vida pelos outros.
Outros regressaram, como a maior parte dos que aqui estão presentes, com mais ou menos pesadelos nocturnos, com diferenças imprevisíveis de humor, com algumas irritações inexplicáveis, mas regressaram e refizeram a sua vida, trabalhando e construindo o Portugal pelo qual lutaram.
Outros deveriam ter sido trazidos, deveriam ter sido defendidos, deveriam ter sido acarinhados, e infelizmente tal não aconteceu, acabando a maior parte por perecer sob a força dos governantes desses novos países.
Refiro-me, obviamente, a todos aqueles africanos que ao nosso lado combateram sob a bandeira portuguesa, alguns dos quais tive o privilégio e orgulho de comandar, e que foram abandonados à sua triste sorte, que, como referi, resultou na morte da maior parte deles.
Também esses hoje aqui são homenageados.
Outros ainda, regressaram também, mas infelizmente com problemas graves provocados pela guerra, desde deficiências físicas mais ou menos profundas, até problemas psíquicos, mais ou menos graves, mas geradores de comportamentos impeditivos de levar uma vida dita normal.
E se os primeiros sofrem visivelmente as suas deficiências físicas, os segundos sofrem-nas muitas vezes em segredo e por isso mesmo são ou colocam-se à margem da sociedade e por essa mesma sociedade são quase sempre desprezados e mal-amados.
E aqui, minhas senhoras e meus senhores, meus camarigos combatentes, cabe uma palavra de dor, de indignação e até de revolta, perante o Estado Português que não cuida daqueles que por ele deram dois anos do seu tempo de vida, deram a sua saúde, deram até a sua própria vida.
Como é possível que passados quase 40 anos ainda haja combatentes a lutarem por um simples reconhecimento, uma magra pensão, uma possibilidade de vida, que a saúde física ou mental deteriorada na guerra, não lhes permite viver normalmente?
Como é possível haver combatentes a viver nas ruas, a maior parte deles com problemas psíquicos, psiquiátricos, facilmente detectáveis para quem com eles acaba por falar, e que os impede de ter um trabalho fixo, para ganhar o seu próprio sustento e o dos seus?
Como é possível haver tanta mordomia para determinados políticos que nos têm governado, e para aqueles que serviram Portugal com as suas vidas, apenas haja migalhas e mesmo essas migalhas terem de ser esmoladas até à exaustão?
Uma Nação que não cuida dos seus filhos, daqueles que por ela deram a vida, é uma Nação sem história, ou pelo menos é uma Nação que está a apagar a sua história.
E nós sabemos que Portugal tem uma história rica, uma história de sucessivas gerações que construíram este nosso país, pequeno talvez, mas orgulhoso de si próprio e das suas gentes.
Julgo que interpreto a vontade dos meus queridos camarigos combatentes que regressados da guerra conseguiram reconstruir as suas vidas, nas suas famílias e nos seus trabalhos ao afirmar que estes não querem subsídios, ou outras “compensações” financeiras, seja por que motivos forem, mas sim, que essas benesses, (que o não são, pois são um dever da Nação), sejam dadas àqueles que por causa da guerra estão incapacitados de viverem uma vida dita normal e como tal vivem problemas graves de toda a espécie no seu dia-a-dia.
Mas sem burocracias exageradas, sem desconfianças inexplicáveis, sem entraves sem sentido, que na maior parte das vezes têm apenas como explicação a contenção das despesas do Estado, o mesmo Estado que não se contém nas despesas quando se trata compensar aqueles que agora o servem.
Senhor Dr. Raul Castro, meu camarigo, Senhor Faustino Guerra, meu conterrâneo, minhas senhoras e meus senhores, perdoem-me estas palavras que acabei de proferir, mas elas andavam caladas cá dentro há muito tempo.
Obrigado do fundo do coração por esta homenagem, mas não sendo pobre e mal-agradecido, permitam-me que diga que a maior e mais perfeita homenagem que os combatentes desejam, é aquela em que aqueles que com eles combateram e hoje sofrem os problemas decorrentes da guerra que os incapacita no seu dia a dia, tenham uma vida digna, uma vida minimamente aceitável, porque o Estado Português não lhes quer negar esse direito.
Sabemos que não está nas vossas mãos a resolução total deste problema, mas sabemos também que todos juntos, nunca desistindo, (como não o fizemos durante a guerra), podemos um dia “levar a carta a Garcia”.
Portugal precisa, mais do que nunca, de se olhar, de olhar as suas gentes, de redescobrir a generosidade com que os Portugueses sempre se deram pela sua Nação, para não corremos o risco de cada vez mais nos fecharmos em nós próprios apenas para “lambermos as nossas feridas”.
Homenageando, respeitando e enaltecendo os Combatentes, homenageamos, respeitamos e enaltecemos a vontade inabalável dos Portugueses.
Homenageando, respeitando e enaltecendo aquelas gerações de combatentes, fazemos também com que as gerações de agora e as vindouras, sintam orgulho e vontade de pertencerem à Nação que «deu novos mundos ao mundo».
Muito obrigado a todos pela vossa presença e peço que me acompanhem num grito de viva a Portugal!
Viva Portugal!”
(Miguel Pessoa)
____________(Miguel Pessoa)
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11992: Efemérides (140): 8º aniversário do monumento aos combatentes da Lourinhã, 25/8/2013 (IV e última parte)
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