sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11009: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (3): De Varela a Guileje

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires,  nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero e Alice Carneiro... Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez,  região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento.  Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou  hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] > Parte III


22 de janeiro de 2012 (continuação)

Estiveram cá a passar o fim-de-semana 9 jovens portugueses, 7 dos quais professores, mas na vinda tiveram um acidente e acabaram por vir só em 2 carros. Assim, não puderam dar boleia à Cadi. Bom, talvez também seja perigoso dar boleia pois em caso de acidente pode-se arranjar um grave problema. E problemas já eles tiveram na vinda com uma moto em contramão que se enfaixou de frente. Na mota vinha um homem e uma mulher grávida que ficaram feridos e tiverem que ir para Bissau.

Foi a primeira vez que estes jovens vieram a Iemberém, ficaram nos bungalows, comeram no restaurante da Satu e saíram para passear com o Zeca (guia turístico instrutor). Hoje às 5.30 da manhã saíram para irem ver chimpanzés e conseguiram ver três.

Uma das jovens era professora de matemática e colega da Cátia, amiga da Mariana, de Coimbra, do Aikido. Não a conheço mas mandei-lhe de presente uma cestinha feita aqui pelos Balantas (uma das etnias existente nesta zona da Guiné).

Regressando à chegada a Bissau…. No dia 14 de Janeiro, às 7 horas da manhã, depois de me ter deitado às 4 horas, fui com o Pepito, a Isabel e o Cláudio para Varela, no norte do país, na fronteira com o Senegal. O Cláudio é um italiano que trabalha num projecto de cooperação com a AD. É geógrafo e o seu trabalho tem uma grande incidência em Iemberém. Já vem à Guiné há 10 anos. Agora foi para Itália mas volta em Março com outros colegas italianos ligados ao projecto. Estarão alguns dias em Iemberém mas também irão trabalhar no norte, na zona de S. Domingos.

Logo à saída de Bissau, na estrada, o Pepito foi comprar aquilo a que aqui se chama “couscous”. São uns bolinhos feitos de arroz pilado, levemente açucarados, com a forma de um pequeno queque. Uma dúzia deles dentro dum saco de plástico preto de má qualidade e lá os fomos comendo pelo caminho. Achei-os bem saborosos e imaginei a maioria dos meus amigos portugueses a comerem aqueles bolinhos, feitos por uma mulher agachada na estrada! Aí a ASAE! Bem, ninguém ficou doente e eu aproveito para aumentar as minhas resistências a alguma suposta falta de higiene.

O Pepito e a Isabel têm uma casa de férias em Varela e estão a fazer uma nova com horta, mesmo no meio da floresta. Penso que Varela deve ter a melhor praia da Guiné, de areia branca e muito fina. Assim, fomos tomar banho de mar no Sábado à tarde e no Domingo de manhã. A água devia estar aí a 23º ou 24º, considerada fria aqui em África. Nesta zona, uma das etnias são os Flupes, a etnia do coração do Pepito, e que pescam de zagaia! Quem me dera ter tal habilidade! [, a Anabela levou canas de pesca para Iemberém!]

Neste primeiro dia fiz logo coisas que me tinham dito em Portugal para não fazer: lavei sempre os dentes com água da torneira (e assim continuo pois não me fez mal algum!) e atravessei um pequeno riacho descalça.

Na casa de Varela quem cozinha é uma jovem também chamada Satu, que cozinha igualmente muito bem e tem ar de ser bem inteligente. O seu irmão Moamed é o empregado de casa, que segundo o seu próprio pai deu uma pancada com a cabeça em pequeno e ficou afetado! Só se lhe pode pedir uma coisa de cada vez pois se pedirmos duas não faz nenhuma. Não tinha ouvido a voz ao Moamed e por isso não imaginei que falasse português. Comecei a falar com a Satu e espantei-me do seu bom português! E descobri que o Moamed também falava bem português. Então expliquei por que tinha vindo para a Guiné, disse que ficaria 6 meses e que depois voltaria ou não, caso me adaptasse e o Pepito gostasse do meu trabalho.

Moamed: “Vai voltar!”

Eu: “Não sei, não depende só de mim, também depende do Pepito gostar ou não do meu trabalho.”

Moamed: “Vai gostar!”

Eu: “Ah, não sei!”

Moamed: “Sim, vai gostar. Como a senhora fala na mesa, Pepito vai gostar!”

Fiquei de boca aberta com a sua observação e percebi que da conversa à mesa nada lhe tinha escapado! O Pepito e a Isabel explicaram-me depois que o Moamed é extraordinariamente curioso e que, se por acaso, eles estão ao computador, ele não sai dali. Quer ver tudo, sobretudo o que pode ser para ele algo de novo. Felizmente a tal pancada na cabeça não o afectou completamente!

Antes de chegarmos a Varela parámos em Ingóre, zona onde a AD também intervém. Fomos ver o infantário que está a ser construído pela população e para o qual a AD contribui com os materiais. Conheci o Eugénio, engenheiro agrónomo guineense formado no ISA [, Instituto Superior de Agronomia,] em Lisboa e a Ermelinda, também técnica da AD. Parámos em S. Domingos, em Suzana, onde o Pepito e a Isabel foram contactando outras pessoas ligadas ao trabalho da AD. Fizemos 170 km de Bissau a Varela, 120 dos quais em estrada alcatroada e os restantes em terra batida.

No Domingo, depois do almoço, fizemos a viagem de regresso. Nos primeiros quilómetros devemos ter parado uma dúzia de vezes. As crianças da zona conhecem o carro do Pepito e saem a correr em direcção à estrada – mesmo quando estão a guardar vacas – a gritar “Pepito, Pepito, Pepito!”. Ele pára o carro e eles pedem “caneta”! Então ele pergunta-lhes em que classe andam e de acordo com a que frequentam questiona-os sobre a tabuada. Quando acertam dá-lhes uma caneta, se não acertam manda-os estudar. Dá-lhes às vezes segunda hipótese, às vezes até uma terceira mas se não acertam nenhuma não têm direito à caneta. Ele já me tinha contado este jogo quando esteve em Portugal mas vê-lo ao vivo foi uma delícia! E assim, aqueles primeiros quilómetros demoraram uma eternidade. Quando chegámos a Bissau já tinham terminado as cerimónias fúnebres do Presidente da República [, Malam Bacai Sanhá, 1947-2012] e a cidade estava calma.

Adicionar legenda
Na segunda-feira, dia 16, de manhã, fui com a Isabel às compras a Bissau. Começamos por ir tomar um pequeno-almoço especial – pão de Deus, com manteiga e fiambre, sumo de papaia e depois uma bica. Muito bom, mas custou, para as duas, cerca de 8 €. Em Bissau encontra-se quase tudo à venda mas os produtos importados são caros.

Dia 17, 3ª feira, vim então para o Sul, às 6 da manhã. Devemos ter feito cerca de 150 km em estrada alcatroada e depois começou a estrada de terra batida. Parámos em Quebo onde o Pepito comeu um pão (cacete) com a margarina de cozinha aqui usada mas eu preferi comer pão seco.

Passámos em Farosadjuma, onde a Fatu, que será também minha formanda, tem três bungalows e energia solar. Parámos em Guileje, onde existiu um quartel português. Um dos antigos edifícios (foram todos destruídos após a retirada da tropa portuguesa e por sua ordem) foi reconstruído e serve de habitação e escritório aos técnicos locais da AD – O Domingos e a Maimona. O exterior da entrada do edifico está todo coberto de garrafas de cerveja enterradas pelo gargalo – um piso curioso feito pelos soldados portugueses e que evita a lama à porta de casa no tempo das chuvas. Depois visitei a antiga capela, também já reconstruída pela AD, com um pequeno altar, uma cruz, uma Nossa Senhora de Fátima, oferecida por antigos combatentes portugueses, e à entrada uma antiga pedra gravada pelos nossos soldados. De seguida fui ao memorial de Guileje, outro edificio reconstruído, onde estão memórias dos combatentes portugueses e do PAIGC. Uma homenagem a todos os que tiverem de fazer a guerra.

É um sítio de reconciliação e não pude deixar de me sentir emocionada. Onde se fez a guerra há 40 anos faz-se hoje a paz. Gostei especialmente da frase de Amílcar Cabral colocada à entrada “A cultura é um elemento essencial da história de um povo”. A AD vai agora começar a reconstrução de outro edifício do antigo quartel. A Fundação Mário Soares contribui financeiramente, e penso que não só, neste projecto. No Memorial existe uma detalhada maquete do antigo quartel. No exterior está um antigo Unimog português e uma arma anti-aérea que era do PAIGC.

Chegámos finalmente a Iemberém, onde era previsto almoçarmos.

(Continua)

[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10988: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (2): A adaptação

Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé com data de 10 de Dezembro de 2012:

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Desejando que vos encontre em óptimas condições de saúde e boa disposição física e mental, junto envio mais um texto que, após leitura e correcção do português, poderão publicar se assim o entenderem.

Com um abraço fraterno,
Cherno Baldé


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO

43 - GENERAL SPINOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR”
(NAS PALAVRAS DE ALIU SAMBA OU SAMBA KONDJAM)

O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam(1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida em forma de uma reflexão retrospectiva sobre a política “por uma Guiné melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuído de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

1- Qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

2- Alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de Setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático Chefe da guerra colonial ou guerra do Ultramar português que, com a condução da política “por uma Guiné melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25ABRIL74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o General Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso a metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLA

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante a eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do partido estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de certo Portugal e em nome de certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorla como Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau(1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: “Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ(2) da nossa aldeia contra os homens do mato”.

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25ABRIL, na Guiné a expectativa de um hipotético regresso do General, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorla que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.

Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados


SPÍNOLA CONTRA OS IRAS DE BANDIM

Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns Guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no inicio dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que, o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho General, “amigo” dos Guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto Governador, parecia estar distante da realidade actual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da politica por ele conduzida na Guiné, desde que chegara aquela província em 1968 (?) e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente a deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé”(3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. E a evidência demonstrara que, a politica “por uma Guiné melhor” sendo uma empreitada que, em muitos aspectos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação pratica, tratando-se de um acto que mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num país, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o General provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF.

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um acto de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso partido estado e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num acto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo.


O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 ou princípios de 70, não posso precisar, e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade e havia poucos meses que tinha mudado com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno Jeep de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia, não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o Furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares, que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”, ou eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bambaleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do Furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: “Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?” Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar directo e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do Furriel e dos seus companheiros da tropa. O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. “Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!” Arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

A tropa portuguesa e as nossas mulheres
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um Capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu Jeep aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era Capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:
- “Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!”.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: “Com os tigres não se brinca”. Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


Bajuda guineense, anos 60


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno, era o mais bem informado sobre os aspectos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltra-se dentro do quartel com a missão bem definida de colectar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha. A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a coleccionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem-sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para afinar pontapés certeiros no cu dos pobres Jubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que, um dos actos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o Capitão Carvalho era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”Booom” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o Capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um “baki-tcham” ou seja “mesinha” contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos “Djinnés” que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que com conivência ou sem ela, o Capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, exceptuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos “Djinnés” mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado a frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o General Spínola.

Jolmete > O Gen Spínola falando à tropa
Foto: © Manuel Carvalho (2013). Todos os direitos reservados

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar armááá!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao Capitão perfilado a sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o Capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem a medida.

Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este “Show-off” público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um Capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do “gentio” rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus a sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as actividades e os métodos usados pelo Capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:
- “O Capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus”(4).

Ta percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de “turras”, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o Capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro Capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o Cap. Figueiredo (1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o Cap. Carvalho tinha perdido os seus galões. O segundo, o Cap. Patrocínio (1972), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o Cap. Pedreiro Martins (Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorla, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos “maquizards” do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorla, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Titina Silá!... Viva!!!
- Abaixo a FLING!... Abaixo!!!
- Abaixo imperialismo!... Abaixo!!!
- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Osvaldo Vieira!... Viva!!!
- Abaixo oportunistas!... Abaixo!!!
- Abaixo o Colonialismo!... Abaixo!!!
- Viva Amílcar Cabral!... Viva!!!
- Vivam os Heróis da luta!... Viva!!!
- Abaixo barrigas de meia!... Abaixo!!!
- Abaixo Neocolonialismo!... Abaixo!!!

Aplausos camaradas aplausos, enquanto o pano desliza, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
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NOTAS: 

(1) - Guelá Baldé – Alf. Comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a Capitão de milícias, antes da sua morte. No cômputo geral, havia no regulado de Sancorla mais de 5 Alferes/Tenentes e 1 Capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorla); - Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) -2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - Mamadu Baldé (Mama Djamara) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; - Alanso Candé – 2.ª Companhia de Comandos; - Bodo Djau – Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”.
Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.
Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida a linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10796: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (42): Quem roubou o nosso canhão?

Guiné 63/74 - P11007: Do Ninho D'Águia até África (47): Iafane, o barqueiro (Tony Borié)

1. Quadragésimo sétimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (47)





O Iafane era um africano com uma certa estatura física, era de etnia “Balanta”, jogava futebol, vivia na tal aldeia com casas cobertas de colmo, próximo do aquartelamento, fumava cigarros como fosse um europeu, não falava muito bem português, mas compreendia-se, tinha a sua “morança”, e algumas mulheres. A sua profissão era barqueiro. Sim barqueiro, compreenderam bem, era barqueiro.


Tinha umas tantas canoas, ancoradas, às vezes na lama, junto à ponte do rio Mansoa, outras em terra, onde as construía, pois estava sempre na construção duma, e fazia viagens pelas aldeias ribeirinhas, trazendo o pessoal que queria vender os seus produtos no mercado da vila ou na sucursal da Casa Ultramarina. Na altura da maré cheia, lá ia com uma ou duas canoas, rebocadas pela sua, onde a poder de um enorme remo, a fazia mover na direcção que entendesse.


Transportava pessoas e bens, cobrava o que entendia, consoante o transporte, e esses mesmos passageiros o auxiliavam, remando, no regresso à ponte, junto da vila. Tinha uma pequena barraca, coberta de colmo junto à ponte, foto em cima, onde guardava os remos e demais utensílios, onde o Cifra passava horas, abrigando-se do sol e ouvindo as suas histórias de mulheres novas que trazia das aldeias ribeirinhas que visitava, umas para serem suas esposas, outras para outros “homens grandes”, e onde apreciava as possíveis raparigas que tivessem algum poder de se tornarem em esposas, algumas fugiam depois, pois não queriam viver com ele na vila. Também contava histórias de pescarias depois de intensos tornados, em que o peixe andava ”maluco” e saltava para dentro da canoa, ou até das vezes em que tinha sido contactado por um emissário dos guerrilheiros para parar com o seu negócio, pois os produtos e as raparigas que trazia para a vila, eram propriedade do movimento de libertação. Já o tinham avisado e mostrava um certo receio ao dizer isto. Ele contava tudo isto porque confiava no Cifra e o tratava por irmão, e sabia do envolvimento que o Cifra teve com as raparigas, que afinal eram guerrilheiras e que às vezes o ouvia por horas, enquanto com um pequeno machado nas mãos, construía uma nova canoa.


Tinha os seus truques na condução da canoa, colocava um saco de terra na ré onde se sentava e dizia que deste modo a proa levantava e dava mais velocidade, com menos esforço.


Pois não é que uns tempos depois o Cifra, deixando de o ver, assim como às suas canoas, soube que “foi no mato”, que na linguagem de guerra era transferir-se para os guerrilheiros, fazendo parte do movimento de libertação, e que estava estudando num País estrangeiro. Talvez até já fosse guerrilheiro na altura em que era barqueiro, e do modo como a guerra se estava intensificando, o Iafane, sabendo os hábitos do pessoal na vila, concerteza que ia dar que falar no futuro. Entretanto o Cifra veio embora, com a sua comissão cumprida.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10984: Do Ninho D'Águia até África (46): A menina Teresa não sai de cima de mim (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11006: Memória dos lugares (207): Ponte Malã Dalassi, ou melhor Ponte Caium, e outras imagens do leste, Piche e Buruntuma (Alberto Nascimento, ex-sold cond auto, CCAÇ 84, 1961/63)


Foto nº 1 > Ponte do rio Caium... Grupo de trabalhdores que se deslocavam a pé para a colheita da mancarra


Foto nº 2 > Ponte Caium: três militares, da direita para a esquerda, eu , o enfermeiro Lomelino e um cabo


Foto nº 3- Piche: matança do porco


Foto nº 4- Piche: Posto de observação


Foto nº 5 - Buruntuma: mercado


Foto nº 6 - Buruntuma: ouvindo rádio


Foto nº 7- O Mané em Lisboa


Fotos: © Alberto Nascimento (2013). Todos os direitos reservados

1. Mensagem, com data de ontem, de Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 83 (que passou por diferentes sítios da Guiné, incluindo Piche e Buruntuma, o últimos quais Bambadinca, 1961/63) (*)

 Caro Camarada Luis Graça:

Como sou talvez o único velho que participa no Blog, do tempo do capitão Jorge Freire, vou esclarecer não só a dúvida sobre a ponte, como prestar outros esclarecimentos.

A ponte é efectivamente a do rio Caium, conforme podes comparar com as fotos que envio e estas foram legendadas na altura em que foram tiradas.

O macaco é o Mané e acompanhou-nos para Bambadinca e depois para Lisboa.

O oficial com chapéu colonial é o alferes João Lamas, que comandava na altura o destacamento de Piche.

A estrada Nova Lamego-Buruntuma era realmente boa e onde na época das chuvas nunca fiquei atascado, muito diferente da estrada Piche-Canquelifá onde o atascanço era quase contínuo.

Um Grande Abraço
Alberto Nascimento (**)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63

(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.

"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.

"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).


Último poste da série > 19 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10964: Memória dos lugares (206): Olossato, anos 60, no princípio era assim (2) (José Augusto Ribeiro)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guin é 63/74 - P11005: Efemérides (119): A morte do comandante Vitorino Costa, um revés para o partido de Amílcar Cabral, em 1962, ainda antes do início oficial da guerra


(1962), Sem Título, CasaComum.org, Fundação Mário Soares, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04604.039.127 (2013-1-25)



Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta:  04604.039.127
Remetente:  Gil Fernandes
Destinatário:  Amílcar [Cabral]
Assunto:  Morte de Vitorino Costa. Curso de "Liberal Arts". Actividades de alguns traidores em Boston.
Data:  Sábado, 1 de Dezembro de 1962
Observações:  Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna PAIGC, MPLA, FRELIMO, UGEAN, CONCP).Fundo:
DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondencia

(Reprodução com a devida vénia...Sublinhados, a vermelho, da nossa responsabilidade)

1. Carta do futuro diplomata do PAIGC e da República da Guiné-Bissau, Gil Fernandes, a estudar em Boston, datada de 1/12/1962, dirigida a Amílcar Cabral. Começa nestes termos:

"Caro Amílcar: Foi com grande consternação que recebi a sua última carta relatando a morte de Vitorino Costa. Eu e ele fomos grandes amigos e fui por algum tempo seu explicador. A sensação de choque  que se recebe perante acontecimentos desta natureza é absolutamente  indescritível, este é mais um crime que mais tarde os portugueses terão que dar conta. Imagino em que estado é que o Amílcar se deve encontrar, mas confio inteiramente na sua perseverança, agora é que é preciso mais coragem" .(...)

Já aqui falámos de Vi(c)torino Costa, Victorino Domingos Costa, irmão de Manuel Saturnino da Costa (, futuro primeiro ministro da República da Guiné-Bissau), que foi morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153, comandado pelo Cap Inf José Curto, na região de Quínara, nas proximidades de Darsalame.

Sobre esta época, de 1962, em que o PAIGC começou a fazer trabalho de formação político-militar, sobretudo nas regiões de Quínara e de Tombali, sabemos ainda muito pouco. Faltam os testemunhos, orais e escritos. Faltam os relatórios. Faltam as fotos. De resto, era ainda escassa a presença do exército português. Por tudo isso, é um período que se presta à especulação. O filme do George Freire ainda  mostra uma Guiné relativamente idílica, calma, tranquila, onde se pode viver e viajar tranquilamente, em segurança, nomeadamente no leste, no chão fula. Mas por quanto tempo ? Quando deixa Nova Lamego e é colocado em Bedanda, em novembro de 1962, com a sua 4ª CCAÇ, o cap Jorge Freire ainda leva consigo a esposa. Mas em dezembro ela é obrigada a regressar a Portugal, por razões de segurança. O que se terá passado ?

Tudo indica que o comandante Vitorino Costa terá morrido  na sequência de uma "acção punitiva" do nosso exército, depois de um conhecido comerciante de Empada ter sido assassinado barbaramente na estrada, no regresso de Darsalame para Empada.

Vitorino e Manuel Saturnino são dois dos históricos militantes enviados para a China para receber treino político-militar, juntamente com João Bernardo Vieira (Nino), Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira e Hilário Gomes, tendo sido recebidos pelo "grande timoneiro", Mao Zedong, em 1961.

Da leitura da carta que acima reproduzimos, dá para entender que Vitorino Costa era um homem muito próximo de Amílcar Cabral e que a sua morte foi sentida como um sério revés para a guerrilha, em preparação. Também Bobo Keita se refere ao seu nome, na sua biografia "De campo em campo", escrita por Norberto Tavares de Carvalho, ed. autor, 2011 É um dos seus vinte camaradas que morreram de morte violenta, e que ele evoca, no final do seu livro (p. 237):

(...) "Victorino Costa era responsável pela mobilização da zona de Quínara, Fulacunda, Tite, S. João.  Em plena campanha de recrutamento, foi pernoitar numa tabanca cujo chefe colaborava com os portugueses. (...) foi denunciado. (...)"

Não encontrei fotos de Vitorino Costa no Arquivo Amilcar Cabral que, em boa hora, passou a estar disponível, para consulta, a partir de 20 de janeiro de 2013.

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Nota do editor:

Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Caros e prezados amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Recebam o abração de sempre.
Em anexo, uma história tirada do meu caderno de memórias.

Passem bem.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

23 - As emboscadas

A operacionalidade da Companhia de Caçadores 816, certamente semelhante a muitas outras, no terreno, passava principalmente pelas seguintes ações:

Principalmente (e ligadas diretamente à guerra):

- Golpes-de-mão a refúgios do inimigo (as então chamadas “casas-de-mato”) dentro da quadrícula distribuída à Companhia.
- Defesa dos ataques ao aquartelamento
- Saídas para montagem de emboscadas ao inimigo.

Outras (que se relacionavam de algum modo com a guerra, mas não diretamente):

- Patrulhamento (batida ao terreno) na área da periferia adstrita ao aquartelamento.
- Recolha de nativos (operação “psico”) em moranças ou pequenas tabancas “clandestinas” algures no mato e controladas pelo inimigo
- Operações “Vaca” (no Olossato era bife XL todos os dias)
- Idas à lenha e/ou à água.
- Proteção aos nativos nas capinagens, apanha de mancarra, recolha de xabéu, etc..


Falando do 3.º item: EMBOSCADAS

Era das coisas não menos importantes neste tipo de guerra, mas que raramente surtiam qualquer efeito. Era muito difícil intercetar o inimigo no terreno, que ele conhecia muito bem, como as suas próprias mãos. Assim era certo que eles evitavam os carreiros, trilhos e principalmente as estradas, pondo-se assim a coberto de qualquer cilada da nossa parte.

Quando optavam utilizar os trilhos usavam muito a tática de enviar 1 ou 2 homens à frente, desarmados, tipo batedores, e denotando pacíficos caminhantes. Após alguns minutos então vinha o “grosso” da coluna: homens armados, pelo menos alguns, então transportando armas, víveres (normalmente arroz), caixas e cunhetes de munições diversas, livros, prospetos, isto é, diverso material bélico e também didático ou propagandístico.

A maior parte das vezes, no entanto, eles não davam qualquer sinal de vida; conhecedores do terreno como ninguém e sabendo a movimentação da tropa, esta controlada muitas vezes por carteiro adiantado.

Assim, a tropa normalmente regressava de uma emboscada, e, como se costuma dizer, de mãos a abanar. Houve uma altura que a Companhia, no efetivo de um pelotão, fez sucessivas emboscadas em Colissaré baseadas em informações de que o inimigo fazia por ali um corredor para (ou de) Morés. Nada, nada resultou. Eles conheciam bem o chão que pisavam e assim evitavam-nos, ao passo que a tropa via-se normalmente forçada a deslocar-se através dos carreiros e trilhos que havia, senão queria perder-se, ou mesmo por estrada, aqui necessariamente quando auto-transportada. Quero com isto dizer que assim éramos muito mais vítimas de emboscadas montadas por eles, do que algozes das nossas. Podia então bem dizer-se que o mato era deles e as povoações eram nossas. No entanto pode dizer-se que quando havia refrega, mesmo no mato, a vantagem e qualquer que fosse o sítio do recontro, era invariável e nitidamente nossa, pelo menos na zona do nosso domínio e parecia que quase em toda a Guiné. Isto em 1965-67. Em quase dois anos luta da 816 na Guiné pode-se dizer que as emboscadas - e foram largas dezenas - que eles nos montavam normalmente acabavam por debandada deles face ao nosso poderio quer em homens quer na qualidade do armamento e porque não dizer à nossa audácia. Ao cair da nossa primeira morteirada normalmente acabava com a emboscada. Normalmente eles usavam a tática do bate-e-foge. Ressalve-se no entanto e por paradoxal que pareça, que os nossos dois mortos foram-no em emboscadas e em alturas diferentes e feitas em retaliação a nossa “provocação” (leia-se: ataques nossos) e uma delas bastante forte. Foi feita inicialmente à base de arremesso de granadas de mão. Saraivada delas.

Tínhamos já ouvido falar deste tipo de emboscadas. Provaríamos mais tarde deste veneno. Um Furriel miliciano morto e vários feridos foi a consequência desta audácia inimiga.
Dizia-se que os lançadores das granadas que se posicionavam natural e necessariamente muito próximo da picada eram elementos que faziam isso por castigo - castigo por qualquer traiçãozinha na tribo.

Eles também eram duros na sua disciplina, sabia-se. O castigo muitas vezes era pô-los a atuarem como lançadores de granadas em emboscadas às nossas tropas.
A probabilidade de serem atingidos, e foram, era grande, daí uma missão para castigados,… ou drogados (também se ouvia isto).

Verdade se diga, que à medida que os meses passavam eles também ofereciam cada vez mais resistência, pois para além de irem obtendo armamento mais sofisticado, iam sendo mais bem organizados. E depois os cubanos e outros mercenários - O pequeno partido (?) que eles tiravam, então, das suas emboscadas, na altura, talvez fosse mais psicológico, como que a demonstrar a sua força (…), o querer dizer nós estamos aqui e não vos queremos cá, para além de nos fazer gastar munições. Lembro-me que em resposta a uma simples rajada da “costureirinha” (isto nos primeiros tempos), nós despejávamos os carregadores (periquitices). Com o tempo aquela rajada do inimigo, se isolada, não tinha resposta. Ao fim de alguns meses conhecíamos o tipo de tiro ao sair do cano. Aí já não era um sexto sentido mas um sétimo talvez. Era impressionante aí já o feeling da malta com o boom do tiro.

Vou contar, em primeiro lugar, (o assunto é “emboscadas”) o que se passou com uma das emboscadas feitas pelo meu Grupo de Combate, feita não muito longe muito da “casa-de-mato” de Iracunda, mais concretamente em Cudana, e que teve o seu quê de insólito.

( Insólita era a guerra também).
 Estávamos então a 26 de Fevereiro de 1966.

O meu Grupo de Combate foi então incumbido de fazer uma emboscada em certo ponto de um carreiro, em plena zona de Cudana, onde e pelos vistos, presumia-se (informações que chegavam) que passavam por lá elementos terroristas com alguma regularidade. Com o meu Grupo de Combate foram alguns dos nativos voluntários do Olossato que sempre se prontificavam a ir a qualquer espécie de operação, pois isso sempre lhes rendia alguns “Pesos”. Chegados ao carreiro pré-identificado e depois de escolhermos um lugar que nos oferecesse boas condições de êxito, instalamo-nos o melhor possível e eu, fiquei, ou melhor procurei ficar, junto de dois pretos veteranos, os tais que esgravatavam pesos. Perto de mim estava também o “bazookeiro do meu GComb, o “Doutor”.

Eu gostava de estar junto de um ou mais indígenas, daqueles calejados (alguns já andariam há pelo menos dois anos naquilo) e veteranos, pois estes além de silenciosos eram muito atentos, até parecia que nem pestanejavam; pressentiam o inimigo ainda bem longe e até ainda que oculto. Parecia que tinha um “faro” para descobrir pessoas e denunciar ou prever as oscilações climatéricas, isto é, o tempo que ia fazer dali a pouco, ou dali a muito.

Estávamos ali emboscados havia já algumas horas, quando um dos pretos que estavam ao pé de mim me tocou e sussurrou:
- Furriel, vêm aí dois pessoais bandido.

Então, sem me agitar muito, procurei vislumbrá-los entre a folhagem que nos encobria o que com dificuldade consegui, pois vinham ainda muito longe e mal se distinguiam no emaranhado do mato, e então aqui a ideia que eu fazia de que os pretos, pelo menos os mais experimentados e que nos acompanhavam operacionalmente, eram dotados de um sexto sentido incomum, saiu reforçada, pois fiquei deveras impressionado como eles toparam os dois “turras” a tão longa e sinuosa distância. Tomei o devido cuidado pois eles podiam muito bem vir armados, segurei a arma em posição adequada. O silêncio que era quase absoluto até aí, passou a sê-lo mesmo pois então e pelos vistos, entretanto, toda a malta já estava prevenida da aproximação dos dois indivíduos.

Eles vieram pelo carreiro onde nós estávamos emboscados e no seu andar normal. Então e aqui é que tem o seu quê de piadético, qual não é a nossa surpresa, eis que eles, precisamente à nossa frente, numa pequena poça de água, que se calhar ninguém tinha reparado da sua existência, resolvem despir o seu reduzido e rudimentar trajo e aprestam-se para aquilo que seria uma banhoca. Julgo que a poça de água ali foi uma coincidência.

Detrás de uma pequena sebe saltam logo o “Fafe” (mais tarde com grande condecoração e já falecido há algum tempo, já depois do regresso - paz à sua alma), que era sempre o primeiro nestas coisas, outro soldado que não reconheci, mais o Sargento Tavares, que em jeito de far west, de armas sobre a anca e apontadas aos tipos, ordenam-lhes que se rendam. Um então, que era um verdadeiro atleta, tenta logo fugir, mas uma rajada, que lhe esfacelou um braço, faz-lhe gorar os intentos e então deixa-se dominar. O outro, que tremia de alto a baixo, nada tentou e… também nunca mais deixou de tremer. Bom, de qualquer forma, armados ou não, eles seriam sempre apanhados, mas, na circunstância, não havia armas em seu poder. A piada da história está então no raro azar que eles tiveram em lembrarem-se de se refrescarem logo naquele sítio mesmo em frente da tropa emboscada. Trouxemo-los para o Olossato. O ferimento provocado pela rajada não foi de modo a que ele não pudesse prosseguir pelo seu pé, mas, de vez em quando, fazia-se desfalecer e atirava-se declaradamente para o chão. Claro que isto provocava atraso no regresso da coluna e então logo nos apercebemos que a intenção dele era precisamente essa: retardar o mais possível a nossa marcha para que os seus colegas de uma base ali perto, que seria provavelmente a de Iracunda, uma vez alertados com a nossa rajada feita momentos antes, tivessem tempo de vir ao nosso encontro e fazerem-nos uma emboscada. Mas não, nada houve.

Mas, a emboscada de maior êxito, a emboscada que resultou no aprisionamento de mais de 10.000 (!) cartuchos de diversos calibres e no infligir de 4 confirmadas baixas e mais 2 feridos - ficaram aos olhos de toda a malta - foi uma levada a cabo pelo 2.º Grupo de Combate da 816 e que por si só justifica este “Post” . Adiante também o extrato do relatório que regista o acontecimento.

Este Grupo instalou-se num ponto estratégico do trilho que ligava Bissajar a Maqué e intercetou um grupo de 6 terroristas que transportavam à cabeça sacos cheios de munições, na circunstância cartuchos e mais cartuchos.

Foi nesta emboscada que se constatou que eles tinham a tática de mandar uns minutos antes alguém à frente e desarmado. O homem nem sonhou que tinha passado pouco antes por dezenas de G3 apontadas.

Foi uma caçada em grande, que teve o seu quê de insólito, pois tal êxito era de todo em todo inesperado.

Aquela quantidade de cartuchos e cujo destino provável era a base de Maqué, dava para um ataque a um quartel durante uma noite inteira, calculamos nós. Como o quartel mais próximo era o nosso, logo deduzimos que provavelmente aquilo estava reservado para um ataque a Olossato. A 566 (que nós fomos substituir no Olossato), que diga do ataque que lhes fizeram na véspera de deixarem a guerra.

Esta foi então uma emboscada que resultou de uma forma bastante positiva (captura de armamento e baixas ao inimigo) pois, como já disse, na grande maioria das vezes eles nem sequer davam sinais de si a não ser às vezes um ou outro que aparecia, que muitas das vezes nem “turra” era, embora fosse tomado como tal e consoante a zona em que era intercetado.


Um Obus no Olossato, calibre 8.8 (granadas de 11,54 Kg; alcance de 11800 jardas)

Na foto acima um dos dois Obuses no Olossato ao tempo (1965/66). Duas secções de Artilharia superiormente comandadas pelo meu grande amigo Alf. Miliciano M. Brandão que quando o inimigo, para atacar o aquartelamento, se instalava preferencialmente no outro lado da pista das aeronaves e precisamente de frente para os Obuses, dado aquele julgar, erradamente, que eles só batiam zonas distantes, mas aconteceu ser necessário fazer tiro direto, inclusive para junto do arame farpado (trilho entre os Obuses e a pista das aeronaves)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P10701: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (22): O Boby

Guiné 63/74 - P11003: Efemérides (118): Data da Operação Irã (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Boa Noite
Em resposta à questão colocada como comentário ao post 10990*, em anexo remeto o que consegui apurar.

Por cruzamento de dados, o que faço normalmente por deformação profissional - sou contabilista - o facto deve ter ocorrido em 1965, já porque as unidades que participaram na operação só chegaram à Guiné em data posterior a mesma data do ano de 1964.

Um grande abraço
José Martins


DATA DA OPERAÇÃO IRÃ

► ► Suponho que a questão que se coloca, é a referência que consta nas páginas 30 e 31, mapa, no que concerne ao nº 3
“1965 – Maio – Operação Irã – Tropas portuguesas atacam guerrilheiros na zona do Morés, controlada pelo PAIGC”
(In Correio da Manhã – Revista Domingo – separata da edição nº 12.277).

 ► ► Na obra “GUERRA COLONIAL (Angola – Guiné – Moçambique)" de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes - Edição do Diário de Noticias - Fascículos publicados entre 21/9/97 e 13/9/98”, refere: 
Na “Fita do tempo” ou “Cronologia” refere com data de 1965.05 (Maio de 1965):
Acção das forças portuguesas na região do Morés, Guiné, com captura de diversos material de guerra, incluindo metralhadoras Borsig, Bren e M52, minas A/C TM-46, granadas-foguete, granadas de mão, etc.

► ► No caderno nº 2 da colecção “As Grandes Operações da Guerra Colonial”, edição de 10 livros publicados entre 8 de Julho e 9 de Setembro de 2010, refere, na página 4, como “abertura de texto”:
“Golpe de Mão no Morés Em 3 de Maio de 1965, uma segunda-feira, duas companhias de Artilharia lançam um ataque a posições da guerrilha numa das mais difíceis zonas de guerra da Guiné – o Mores, por onde as tropas portuguesas nunca se tinham aventurado. A acção militar – com o nome de código de Operação Irã – foi um êxito relativo. Conseguiu-se a captura de cerca de uma tonelada de material de guerra – mas o PAIGC continuou a controlar a zona. Ao longo do conflito, de resto, as tropas portugueses só muito pontualmente penetravam no Morés.”
No desenvolvimento do texto refere que as Companhias de Artilharia são as 566 e 730. [É mencionada a CArt 556, mas não existe na Guiné. Deve ler-se “566”].

► ► Nos cadernos “Os anos da Guerra Colonial” de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, composto por 16 cadernos, editado por QuidNovi em 2009, no nº 6, relativo ao ano de 1963, na página 32, refere: 
“Maio, 3 Operação IRÃ – Acção das forças portuguesas na região do Mores, Guiné, com captura de diverso material de guerra. Esta operação foi realizada pelo Batalhão de Artilharia 733 (Companhias de Artilharia 566, 730 e 732) que alcançaram arrecadações de material com metralhadoras Borsig, Bren e M52, minas A/C TM-46, granadas foguete e granadas de mão. Ao descolar com o material capturado um helicóptero foi atingido. O Morés era já uma área controlada pelo PAIGC e, como sucederia ao longo da guerra, as forças portuguesas só pontualmente ai penetravam.”


► ► Do 7º Volume - Fichas das Unidades – da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974)

► Breve historial do Comando de Agrupamento nº 16
Mobilizado pelo Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora, foi comandado pelo Tenente-coronel José Augusto Henriques Monteiro Fortes Pinto Soares, tendo como Chefe do Estado Maior o Major de Infantaria António Coelho da Silva e, posteriormente, o Major de Artilharia Raul Pereira Baptista.
Tinha como divisa: “Juntos Venceremos”
Embarca em 23 de Maio de 1964 e desembarca em Bissau em 30 de Maio de 1964.
O regresso foi em 14 de Maio de 1966.
Em 15 de Junho de 1964, ainda instalado em Bissau, assume a responsabilidade da zona Oeste, que incluiu Bula, Farim e Mansoa.
A partir de 31 de Julho de 1964 instala-se em Mansoa.
Foi rendido pelo Comando de Agrupamento nº 1976 em 13 de Maio de 1966.


Breve historial do Batalhão de Artilharia nº 733

Mobilizado no Regimento de Artilharia Ligeira nº 1, em Lisboa, e comandado pelo Tenente-coronel José da Glória Alves e, posteriormente, pelo Tenente-coronel Orlando Rodrigues da Costa e tinha como divisa “Valorosos, Audazes, Corajosos”.
Tinha como unidades orgânicas além da CCS, as Companhias de Artilharia nºs 730, 731 e 732.
Embarcaram em 8 de Outubro de 1964 e chegaram a Bissau a 14 de Outubro de 1966.
Regressaram em 7 de Agosto de 1966 (A CArt 730 regressou em 14 de Agosto de 1966).



Breve historial da Companhia de Artilharia nº 566

Mobilizada no Regimento de Artilharia Pesada nº 2, em Vila Nova de Gaia, comandada pelo Capitão de Artilharia Adriano de Albuquerque Nogueira, tendo por divisa “Bravos e Sempre Leais”.
Foi mobilizada para Cabo Verde onde esteve até 28 de Julho de 1964, mas foi deslocada para a Guiné, trocando com a Companhia de Caçadores nº 414.
Inicialmente em Bissau foi, em 4 de Setembro de 1964, para Bissorã em reforço da guarnição local, tendo um pelotão no Olossato, no dispositivo de manobra do Batalhão de Artilharia nº 645.
Fez operações no Morés, Iracunda, Cansambo, Maqué, entre outras.
A 9 de Dezembro de 1964 a companhia é deslocada para o Olossato, com a responsabilidade do subsector criado na zona de acção do BArt 645.
A 25 de Setembro de 1965 regressa a Bissorã e em 24 de Outubro de 1965, recolhe a Mansoa e posteriormente a Bissau.


Breve historial da Companhia de Artilharia nº 730

Além do referido no BArt 733, era comandado pelo Capitão de Artilharia Amaro Rodrigues Garcia.
Após o desembarque foi para Bironque, em reforço da Batalhão de Cavalaria nº 705, de 13 de Outubro a 23 de Novembro de 1964, instalou-se em Bissorã.
Para actuar nas região de Morés e Tiligi, esteve na área do BArt 645 e em reforço deste, desde 14 de Dezembro de 1964 até 4 de Junho de 1965.
Em 7 de Junho de 1965 assumiu a responsabilidade do subsector de Jumbembém, destacando um pelotão para Canjambari, até 20 de Julho de 1965 altura em que se desloca para Farim, até 8 de Agosto de 1966, data em que regressa a Bissau para embarque para a metrópole, pelo que não regressou com o Batalhão.


OBS: - Emblemas da colecção do nosso camarada Carlos Coutinho.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10990: Efemérides (116): 50 anos anos da guerra colonial no CTIG ? 23 de janeiro de 1963, o fim do princípio ou o princípio do fim (José Martins / Carlos Silva)

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Ora viva Carlos,
Depois da pompa e circunstância de apresentação do Cândido Morais, quiçá a personagem mais importante de Perre desde que integrou o blogue, hoje apresento-te uma página negra da estória daquele furriel miliciano.
Está ali tudo, tim-tim-por-tim-tim. Que o traste seja julgado na praça pública, e se não houver galés, que seja condenado a presentear-me com outro salsichão de que ele herdou a mestria da composição.
E ainda tem que dar o vinho.
Que comigo não há imunidade, nem prescrição.

Se repararem, na fotografia da tela sobre o Morais, não faltam os acepipes, nem o vinho, entre outras coisas. Espero que se divirtam com uma estória verdadeira.

Para ti e para a Tabanca vai aquele abraço
JD


A VINGANÇA SERVE-SE FRIA

Tinha saído com os primeiros alvores para uma patrulha pela fronteira, com emboscada num imaginado trilho de penetração. O dia fora igual a tantos outros: palmilhámos uns quilómetros pela mata, abancámos junto a um trilho à espera de ninguém, prolongámos o passeio ao longo da fronteira por mais algum tempo, comemos meia ração, e bebemos a água do cantil, que naqueles azimutes parecia uma bebida fina. A meio da tarde, quando andava próximo da ZA de Pirada, decidi regressar à base. Tínhamos ainda tempo diurno para o que fosse necessário.

Despedimo-nos à entrada do arame, e cada um tomou o rumo do alojamento. Encostei a arma no lugar do costume, junto à cama onde dormia. Abri o armário do bacalhau, e remexi à procura de uma camisa ou camisola (na época ainda não se usava o termo t'shirt) sem pó, despi-me, enfiei os chinelos, peguei na saboneteira, e dirigi-me para a "sala das orgias". Ali, convenientemente nuzinho, abri a torneira da espécie de duche, e recebi a água morna numa torrente de muito agrado. Lembrei-me do que um gajo qualquer me contou à chegada: que naquele dia o Morais tinha recebido uma encomenda com vários salpicões que o pai lhe mandara. E rematou com uma superlativa apreciação à qualidade dos enchidos. Enquanto passava a toalha pelo corpo, afiava o dente para atacar um bocado da maravilha.

A "sala das orgias" deve a designação a uma inspiração pictórica da minha parte. 
O segundo painel representa uma pintura abstracta, como abstractos seriam a maior parte dos pensamentos dos utilizadores da cagadeira. 
O painel que segue, representa um penico estilizado, indicador da função atribuída ao local. 
O último dos painéis homenageia os aflitos, ali representados pelo cãozinho que só tinha 3 patas, e um dia, muito aflito para chichizar, levantou uma pata e caiu

Saí daquela sala, e ouvi vozes na messe, logo ali à frente. Para lá me dirigi pois tinha distinguido o Morais entre os palrantes.

- Então Morais, hoje houve salpicãozinho de Perre? - Perguntei, mas com uma sonoridade afirmativa.
- Eh pá, o meu pai mandou-me uns salpicões de categoria, - afirmou visivelmente agradado o nosso tropa.
- Porreiro pá, arranja aí um bocadinho, que eu venho com uma fome do diabo.
- Oh pá, já não há nada, estes gajos são uns brutos a comer. Estava a ver que nem chegava para mim, - retorquiu tranquilo.
- O quê? Então não tiveste a lembrança de guardar um bocadinho para mim? - Interroguei-o acusadora e ofendidamente.
- Eh pá, que é que queres? Para já não eram muitos, e depois estes gajos atacaram neles que nem selvagens.

E para acentuar a sua inocência, virou-se para os outros e perguntou-lhes:
- Oh rapazes, eram bons ou não?

Os rapazes, apalermados, responderam quase ensaiadamente que sim, que o pai dele devia mandar mais e mais vezes.

- Foda-se pá!!! - Reagi com indignação. - Quando recebo uma encomenda tenho sempre a preocupação de me lembrar de ti, e agora pregas-me a partida,-  respondi com desagrado.

Virei costas e fui para o quarto, por uma camisa e calções, que a hora do jantar aproximava-se. Dirigi-me ao armário para qualquer coisa, para colocar umas gotas de Old Spice para me preservar do cheiro a catinga, ou por outra razão, e deparei com alguns aerogramas ali amontoados na desorganização arrumativa que me caracteriza. Tan-Tan!!! fez-se-me uma luz.

Tirei um dos aerogramas, peguei na esferográfica, sentei-me na cama, e com um livro a fazer de base escrevinhadora, endossei o correio para o Exmo. Senhor Manuel Luís Morais, Perre, Viana do Castelo, Metrópole.

Depois escrevi-lhe a dar boas notícias do filho, da amizade que todos nutríamos por ele, e expus a razão da minha comunicação. Estava-se mesmo a ver, claro, que os salpicões não tinham chegado para mim, e que o filho cometera a enorme falha de não me guardar um bocadinho para prova. Como sabia que o senhor era inexcedível nas relações familiares, e sendo eu um amigo indefectível do Cândido, imaginava quanta alegria lhe iria proporcionar, por poder enviar-me uma pequenina encomenda com um salpicão.

Não veio um. Vieram quatro ou cinco, numa embalagem destinada ao Fur Mil José Dinis.

Ao jantar ainda gozaram comigo, uns sacanas ordinários, que não só realçavam a qualidade dos aromatizados enchidos, como me tratavam por lorpa, como se tivesse ido voluntariamente para o mato, para mais, calculem, com meia ração de combate. Alinhei naquilo, e a rapaziada divertia-se à minha custa.

Poucos dias depois, antes do almoço, tirei um salpicão, abarbatei-me a uma cervejola e a um naco de pão, e sentei-me à mesa quando o pessoal se dispunha para almoçar.

- Que é isso pá? - Alguém questionou.
- Não tens óculos? Vai buscá-los que logo vês, já que pelo cheirinho não distingues uma salsicha de uma bota da tropa. - E ferrei a naifa na carne apetitosa.
- Eh pá, dá-me um bocadinho, - pediu outro.
- Não posso! - Respondi seco, enquanto mastigava uma fatia do gostoso salpicão.

Não demorou nada para que se iniciasse o burburinho. Eles pediam, tratavam-me de merdoso egoísta, ameaçavam roubar-me o salpicão, e eu respondia que não podia dar, que da última vez também não me deram nada, e que fodia com tiros o primeiro que ousasse roubar-me.

Afastei-me da mesa e apercebi-me de como aceitaram o argumento. Daquela multidão indignada, acerco-se o Morais, muito cuidadosamente, a referir-me que o salpicão era mesmo parecido com os salpicões do pai dele. Respondi-lhe que os salpicões são todos parecidos. Pediu-me para provar, mas lembrei-lhe que não senhor, ele ainda há poucos dias não tivera o misericordioso acto de me guardar uma fatia quando o pai lhe enviara éne salpicões.

De repente o Morais transforma-se em provocador perigoso, e dizia que o salpicão, de certeza, era de casa do pai, e questionava-me onde é fui arranjar aquilo. Desfeiteei-o mais uma vez, e insinuei que fosse ao Vítor pedir um vallium para acalmar. Mas o Morais estava a perder a cabeça, e insistia que sabia muito bem que o salpicão era da sua casa. Onde é que eu arranjara aquilo?

O pessoal, entre o divertido e o indignado, se não fazia apostas, já se mostrava tenso com o desenvolvimento da contenda. O Morais estava mais que desconsolado, estava irritado e ameaçador.

Arrumei o salpicão na folha de papel, e, provocadoramente, prometi oferecer a alguns depois do jantar. Mas só a alguns, sublinhei. Com o serviço da bianda (ou seria esparguete?) o pessoal amainou.
No fim da refeição disse a um para ir ao meu armário buscar a encomenda, que eu estava mais generoso. Quando veio a encomenda o Morais foi logo identificar a letra do pai, e quase perdia a cabeça.

- Eu sabia! Eu sabia que o salpicão era da casa do meu pai.
- Pois sabias, - confirmei eu, - o que tu não sabias, e parece que não queres saber, é que os salpicões são meus, e foram oferecidos pelo teu pai, um gajo porreiro, aliás, que não tem comparação com o merdoso do filho que está na Guiné.

Desatámos a rir, a trinchar e a comer os milagrosos salpicões que, de facto, revelavam grande saber na composição e manifestavam uma tão grande satisfação ao palato
Acabou em festa, e os outros sacanas nunca mais pensaram em ressarcir-me daquele inopinado extra.

JMMD


2. Comentário de CV:

Ainda sobre esta saborosa (literalmente) estória, que só podia ter sido urdida por "um José Manuel Matos Dinis", cabe aqui e agora um aditamento por parte do visado, o nosso recente camarada Morais:

Meus caros
Eu tinha medo que esta história viesse a lume... na verdade, eu lembro-me desse episódio, mas infelizmente só na parte da minha zanga com o Dinis.
Eu recebia realmente várias encomendas de Perre e lembro-me que gozava de boa saúde porque pegava no presunto e no chouriço que sobrava para mim, dirigia-me à padaria e pedia lá um casqueiro dos grandes, que enchia com alho e cebola, que depois cobria com presunto ou chouriço, conforme a circunstância. Eu creio que isso ajudou a preservar, e muito, a minha saúde física e mental.


O motivo da minha zanga, não estava relacionado com o facto dos amigos se alambazarem com o conteúdo das minhas encomendas, pois eu acabava por distribuir por eles quase tudo, mesmo até aqueles frascos de uvas engarrafadas com aguardente, que tantas angústias me suavizaram, ou as latas de conserva que o meu pai esvaziava em casa, para encher com rojões de porco da última matança caseira, envoltos na sua própria banha (uma delícia!).
Eu zanguei-me porque estava persuadido que o Dinis violara uma coisa que para mim era sagrada, que era a encomenda do meu pai, vinda da minha terra, que todos os dias lembrava com saudade. Eu creio que ele até é benevolente comigo quando agora fala na minha zanga, porque eu penso que passei para além do que ele relata (se não sabeis, sou do signo Touro, afeiçoado à terra, parece que meigo e paciente, mas violento...).


Mas, se o Dinis diz que escreveu para o meu pai, também sei que o meu pai não teria hesitado em corresponder a esse apelo, e por isso acredito no que ele diz. Aliás, foi o meu pai que quis ter o prazer e a honra de ser o primeiro dos progenitores a receber os meus amigos (aquela cambada...) na nossa casa depois do regresso da Guiné.

Só desejo que o Dinis me perdoe o ar irado dessa altura, embora eu pense ter, logo a partir do dia seguinte, abrandado a pressão e continuado a cimentar a grande amizade que preservamos.

Um abraço.
Cândido Morais

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10979: História da CCAÇ 2679 (60): Ir ou não ir para a vala... eis a questão (Cândido Morais)