sábado, 15 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25642: Os nossos seres, saberes e lazeres (632): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (158): Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve Paço Real, estamos perto da Venda Seca - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Houve inicialmente o intento de visitar a Casa Museu Leal da Câmara, na Rinchoa, o apetite por uma doçaria foi mais forte, avançou-se para um estabelecimento onde se vendem os fofos de Belas, é uma sensação estranhíssima andar por aquelas ruas estreitas, não é só a barulheira da CREL, o trânsito não dá tréguas, percorrem-se os passeios sempre a olhar para a rua, mais não seja para não levar com um espelho retrovisor no ombro. Satisfeita a guloseima, voltou-se à Quinta Nova da Assunção, visitada anos atrás, estava então de cara lavada, um miminho de cores, um recanto romântico seguramente idealizado por um comerciante com posses que partiu para as estrelas antes de ver tudo de pé e bem ajardinado; o jardim é um bálsamo, deve faltar dinheiro ou patrocínios para continuar os trabalhos de renovação e até de manutenção, aquela azulejaria que adorna os bancos de pedra corre riscos graves de perda irremediável. Há muito a visitar em Belas e nas redondezas, muita gente vinha fazer férias daqui até onde hoje fica Mira-Sintra, restam casas restauradas e outras na agonia. Belas teve marquesado, por aqui andou gente das famílias reais, resta a Quinta do Senhor da Serra, também conhecido por Paço Real, pelo que foi dado pesquisar na net aqui se celebram casamentos e batizados e eventos que tais.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (158):
Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve paço real, estamos perto da Venda Seca – 1


Mário Beja Santos

Há uma doçaria que faz muita gente viajar até Belas, que já foi concelho, que tem importantes ruínas pré-históricas e até romanas nas redondezas; povoação onde assentou alguma aristocracia, a residência dos marqueses de Belas, aqui conhecida por Paço Real ou Quinta do Senhor da Serra, esta é belíssima com os seus plátanos, teixos e buxos dentro de um enorme muro, num contraste brutal com a barulheira que vem da CREL, contudo Belas é irresistível para itinerâncias. Primeiro, ali no centro da vila, uma doçaria aprazível e com um descomunal tráfego incessante mesmo à porta, ali se manjam os fofos e se pode adquirir demais doçaria para pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares. Depois, segue-se, sempre a fugir do ruidoso trânsito, desde autocarros a motocicletas, para a Quinta Nova da Assunção, um interessantíssimo projeto de um comerciante endinheirado que aqui construiu casa apalaçada, habitações para trabalhadores quinteiros e visitas e esplêndidos jardins, isto no século XIX. No gradeamento pode ler-se: “A Quinta Nova da Assunção foi mandada edificar por José Maria da Silva Rego, nos terrenos herdados do seu tio Gregório da Silva Rego (comerciante que fez fortuna no Brasil). A sua mulher (está lá escrito esposa, linguagem de mestre de obras, sempre se falou em mulher e marido), Maria da Assunção Vieira, deu nome à quinta inaugurada em 15 de agosto de 1863, dia da celebração da Nossa Senhora da Assunção. José Maria da Silva Rego viria a morrer um ano depois, antes do término das obras. Trata-se de um conjunto arquitetónico que compreende um palacete residencial, uma casa de fresco, lagos, fontes e estruturas de apoio ao enorme jardim. Em toda a propriedade tentou-se criar um ambiente eclético de harmonização entre o neoclassicismo e o romantismo. Esta simbiose é evidente sobretudo no excesso decorativo do interior do palacete, onde as pinturas a fresco, os estuques e a azulejaria preenchem os espaços com motivos zoomórficos-vegetalistas, exotismos orientalistas, temáticas pompeianas e mitológicas, bem assim como as iniciais do proprietário.”

A Quinta Nova da Assunção tem esta fonte decorativa restaurada, temos um envolvimento de lugares sentados com azulejaria primorosa, como se pretende mostrar. O jardim tem manutenção, é um encanto passear por ali, não se dirão mesmo da conservação da casa apalaçada no seu exterior e começa a haver deterioração nestes belos azulejos, fica sempre o mistério se se trata de ladroagem ou é mesmo falta de manutenção, o tempo é inclemente, responda quem souber.
Para quem gosta de estudar movimentos artísticos, o que aqui se vê é uma etapa do naturalismo, ainda não se chegou à Arte Nova, as molduras são tipicamente clássicas, já começam a desaparecer azulejos.
Um tema recorrente na época é a chinesice, a atração pelo exótico oriental, no caminhar para o fim do século ao chinesismo juntar-se-á o japonesismo, uma das linhas da Arte Nova, figurará nas artes decorativas até ao anúncio da Arte Deco, aí pelo ano 1925
O mínimo que se pode dizer é que estes assentos de pedra tão bem decorados mereciam melhor sorte, não conheço uma gama de azulejos tão enternecedores como estes neste termo de Sintra.
Haverá um dia em que este edifício com pretensões neogóticas será recuperado, talvez equipado, polo de atração, sabe-se lá se residência para artistas ou até mesmo casa-museu, custa a entender como se restaurou a casa apalaçada e se esqueceu esta dependência.
Há alguns anos, quando visitei pela primeira vez a quinta, a casa estava de cara lavada, disse-me quem a guardava que era alugada para séries televisivas, consta que tem salas maravilhosamente decoradas, o comerciante não se poupou ao trabalho de apresentar a mansão à altura dos seus proventos. O senhor que está por detrás desta porta disse gentilmente pode olhar, mas não passa daí. Não perco a esperança de lá voltar e conhecer os tesouros ali existentes.
Atendendo a que se estava no inverno, bem surpreendido fiquei com esta floração quando tudo mais está adormecido.
Foi para mim uma surpresa ver esta alameda tão bem adornada, uns belos bancos, funcionais, bem mantidos. Caminhei nos dois sentidos, mas confesso que foram estas as duas perspetivas que mais me tocaram.
Esta é a fachada principal, o senhor José Maria da Silva Rego deve ter exigido alguma imponência no traçado da casa, é bem curioso ver como tem os fundamentos deste plano inclinado, casa apalaçada de um só andar, assente numa sólida plataforma e o arquiteto encontrou solução de pôr esta escadaria com alguma nobreza. Vista a Quinta Nova da Assunção, vai-se agora cirandar por Belas, que tem muito mais coisas por ver.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 8 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25620: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157): Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25641: Timor-Leste, passado e presente (5): a resistência luso-timorense e australiana na II Guerra Mundial



Mapa de Timor-Leste > Posição relativa de Bacau, a leste de Dili, a capital. Fonte: WikipediaWikipedia (com a devida vénia).


1. Não acompanhei na devida altura a série "Abandonados", que passou na RTP1,  de 21 de dezembro de 2022 (1º episódio) a 15 de fevereiro de 2023 (7º e último episódio). Mas conto poder vê-la na RTP Play.



Vejamos aqui a sinopse da série:

"Uma história de coragem e de sacrifício sobre-humano, ocorrida em Timor durante a II Guerra Mundial, com a invasão do Japão. Uma série de Francisco Manso com Marco Delgado, António Pedro Cerdeira, Chico Diaz, Elmano Sancho, Francisco Froes, Joaquim Nicolau, entre outros

"Baseada em factos reais, 'Abandonados' recorda a aliança inédita entre portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham.

"A série narra a situação dramática em que ficaram muitos desses homens e mulheres, esquecidos e abandonados em Timor e a luta persistente de um militar - o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final. Esta série mostra-nos os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a 'Abandonados' um significado universal".

Fonte: RTP > Programas > Abandonados
https://www.rtp.pt/programa/tv/p43285


2. Li,  entretanto, uma peça da agência Lusa sobre o livro que inspirou o realizador Francisco Manso, "O diário do tenente Pires", do historiador António Monteiro Cardoso (1950-2016). Faço a seguir um resumo dessa peça jornalística, servindo como introdução a um futura nota de leitura. 

O então jornalista da Lusa em Dili (2006-2008), o premiado escritor Pedro Rosa Mendes (autor, entre outros, da "Baía dos Tigres", 1999) aponta "a 'violência' da colonização de Timor, a 'brutalidade' da I República e o 'cinismo' da política de Salazar face à invasão japonesa" (sic) como  "as linhas que se cruzam na vida do tenente português Manuel de Jesus Pires" e que podem resumir o teor do livro "Timor na 2ª Guerra Mundial, O Diário do Tenente Pires", da autoria do historiador António Monteiro Cardoso (nascido em 1950 e prematuramente falecido em 2016, e que foi casado com a diplomata Ana Gomes),  

 A obra foi lançada em outubro de 2007,  em Díli, na Feira do Livro em Português. O autor conheceu Timor pela primeira vez, tendo aproveitado para visitar alguns dos locais onde se desenrolou a história heróica do tenente Pires, no leste do país, no município de Baucau (hoje a segunda maior cidade, a seguir à capital, da qual dista cerca de 120 km).
 
"O tenente Pires foi administrador da vila de Baucau, que entre 1936 e 1975 se chamou Vila Salazar, capital da circunscrição de São Domingos, e morreu em data e local desconhecidos, talvez no final de 1944, assassinado no cativeiro japonês."


"O pano de fundo do 'Diário do Tenente Pires'  a resistência à ocupação japonesa de Timor, a guerra de guerrilhas movida por forças australianas ajudadas por timorenses e portugueses, a saída de Pires para a Austrália e o seu regresso à ilha, numa missão suicida, para salvar os portugueses que tinham ficado e corriam perigo."

Baseado em abundantes fontes de arquivo, António Monteiro Cardoso procurou analisar e refutar neste livro "dois mitos persistentes", por um lado, "a bondade da colonização de Timor", e por outro, "o sucesso da política de Salazar na colónia mais distante da metrópole."
 
Para ele os livros sobre a História de Timor seriam "livros de exaltação do culto da bandeira e outras fantasias" (sic), disse na  entrevista que deu à Lusa.

Citando o autor do livro:

"A verdade é o que Pélissier contou: a colonização foi violenta e usou os métodos de guerra, guerra de timorenses contra timorenses, como na Guiné pelo Teixeira Pinto" (...). 

"Mantém-se a ilusão mitológica de que o colonialismo português não fazia mal a ninguém. Todos são maus a colonizar menos os portugueses". (...)

"O caso de Timor é o que melhor ajuda a criar este mito, devido à invasão indonésia. Há o mito da cristianização, da conquista das almas e não pela espada", explicou o historiador. "O timorense por definição era católico, falava português e adorava Portugal", recorda.

 (....) "Os indígenas são tão simpáticos, tão portugueses, dóceis, um pouco mandriões é certo. Conhecem as crianças? Assim são os indígenas", ironiza o historiador sobre a visão colonial do timorense.

Para além da história (trágica) do tenente  Pires, desconhecida dos portugueses,  o livro  procura 
 recuperar também "parte da história dos deportados portugueses em Timor", donde descendem  "clãs" importantes, como a família Carrascalão ou a família Ramos-Horta.

Conta António Monteiro Cardoso:

"A novidade é que os principais deportados não foram enviados pelo regime de Salazar. Os primeiros, o núcleo-duro, eram anarco-sindicalistas, enviados pela I República para a Guiné e Cabo Verde e que depois a ditadura militar aproveitou para mandar para mais longe".
 
Foi o caso dos alegados militantes da Legião Vermelha, "uma organização terrorista de contornos ocultos, de acção directa, destinada a atacar patrões, polícias e outros serventuários menores do capital". 

Um das vítimas desta organização  o comandante da polícia cívica de Lisboa, o capitão João Maria Ferreira do Amaral, originando uma brutal  vaga de repressão em  1925.

Em 1931, os deportados "sociais" e "políticos" portugueses em Timor atingia o meio milhar,  mais o que o total do funcionalismo público no território.

Sobre a política do Estado Novo em Timor, o historiador defende a tese de que Salazar "demonstrou um desprezo absoluto pela vida humana e um cinismo completo".  Na realidade, teria pedido aos portugueses, perseguidos pelos japoneses, "um 'massacre inútil', uma decisão que antecipa o que aconteceu em 1961 com a invasão de Goa", quando ordenou ao governador, gen Vassalo e Silva, que queria soldados e marinheiros "vitoriosos ou mortos".

Descurando a proteção (militar) do território, antes do início da guerra no Pacífico (fnais de 1941) , Portugal acabou por não dar quaisquer "garantias de efectiva neutralidade nem ao Japão nem à Austrália e às potências Aliadas".

Eis mais alguns excertos da entrevista:

"O tenente Pires e outros portugueses em Timor foram usados e sacrificados por Salazar para 'garantir' a soberania sobre a colónia. 

"Os mortos foram esquecidos e os sobreviventes perseguidos".

"Do tenente Pires, fica a história de um oficial que conseguiu salvar centenas de vidas " e que depois fica para a morte, acossado por todos os lados". (...)

"É um exemplo de dignidade, coragem e abnegação até à morte, para cumprir um compromisso"  (António Monteiro Cardoso).


O livro "Timor na 2º guerra mundial : o diário do Tenente Pires", de António Monteiro Cardoso, foi publicado de Centro de Estudos da História Contemporânea Portuguesa, Lisboa, 2007, 271 pp.

Fonte: Adapt., com a devida vénia, de RTP Notícias > Mundo > 26 Abril 2008, 14:59 > Histórias de Portugal e da II Guerra Mundial no "Diário do Tenente Pires" (*)


(*) Histórias de Portugal e da II Guerra Mundial no "Diário do Tenente Pires"
por © 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
Pedro Rosa Mendes, da agência Lusa, em Díli (26 de abril de 2008)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25594: Timor-Leste, passado e presente (4): Antes da invasão e ocupação do Japão (19 de fevereiro de 1942): imagens da "Vida Mundial Ilustrada" (Ano I, nº 41, 26 de fevereiro de 1942)


 

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25640: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águia Negras" (1966/74) - Parte I: Temos dois representantes na Tabanca Grande, o algarvio José António Viegas (1966/68) e o açoriano Mário Armas de Sousa (1968/70)...


Palmela > Poceirão > Casa do João Vaz > 2017 > Encontro do pessoal dos Pel Caç Nat 51, 52 e 54 > Elementos presentes, do Pel Caç Nat 54 > Da esquerda para a direita, Furriel Arlindo Costa (DFA), Furriel José António Viegas, 1º Cabo Marques, 1º Cabo Coelho (DFA) e 1º Cabo Manuel Januário (DFA)...Três DFA num grupo de cinco... Foi mais um encontro dos Pelotões de Caçadores Nativos, formados pelo nosso camarada Jorge Rosales, do 51 ao 56, no CIM de Bolama, e que serviram na Guiné entre 66 e 68. "É já muito dificil encontrar estes nossos camaradas, mas ainda assim juntámos o 51, 52 e 54. Na casa do ex-fur mil João Vaz (ex-prisioneiro em Conacri, libertado em 22 de novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde; pertenceu ao Pel Caç Nat 52)."

Foto (e legenda): © José Manuel Viegas (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]







Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Xime > 1970 > Malta da CCAÇ 12 (à direita), posando (e não "pou...sando")  junto a uma parede bidões com areia (que serviam de protecção em caso de ataque) juntamente com comaradas do Xime, à esquerda. Entre eles, estará o fur mil, açoriano, Mário Armas de Sousa, natural de Lajes das Flores, Ilha das Flores (mas que não conseguimos identificar)


Foto (e legenda): © Humberto Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Legenda de HR/LG:

"Começando da esquerda para a direita e de cima para baixo temos: o de boina já não me lembro quem era, o 2º julgo que era o fur mil vagomestre (do Xime) (parece-me ser o José Manuel Viçoso Soares, que vive no Porto, , os 3º, 4º e 5º também não me lembro), o 6º é o Sousa, ex-fur mil da CCAÇ 12 e o último sou eu (ainda com algum cabelo e sem barriga). [O 5º julgo ser o madeirense Sousa, o Mário Armas de Sousa, do Pel Caça Nat 54; ou será o fur mil António Fernando Marques, da nossa CCAÇ 12 ? L.G.].

"Na 1ª fila não me lembro quem é o 1º; o 2º, meio careca, era o fur mil dos obuses (da BAC de Bissau); os 3º e 4º também não me recordo; o 5º julgo que era o fur mil mecânico e o 6º é o Joaquim Fernandes, ex-fur mil da CCAÇ 12 e depois engenheiro civil na antiga CUF (já nesse tempo o Fernandes tinha jeito para as obras, pois foi ele que acompanhou todo o Reordenamento dos Nhabijões (a), por isso, quando cá chegou foi acabar o curso, o que muitos fizeram pois tinham-nos deixado a meio e até aldrabado nas habilitações literárias para ver se se baldavam de ir bater com os costados no Ultramar".


Em suma, o Mário Armas Sousa é decerto um deles, mas eu não sei qual... Tenho dúvidas é (i) quanto ao mês e ano em que foi tirada a foto e (ii) quanto à companhia a que pertenciam os camaradas que não eram da CCAÇ 12. Em princípio a foto deve sido tirada antes de julho de 1970, o pessoal do Xime pertenceria, portanto, à CART 2520 (1969/1971) (em meados de 1970, eles foram rendidos pela CART 2715 / BART 2917, 1970/72).

O Mário Armas de Sousa que, além do Xime, esteve em Porto Gole, Enxalé e Missirá, era do Pel Caç Nat 54 que, em novembro de 1969, foi render em Missirá o Pel Caç Nat 52, sob o comando do alf mil Mário Beja Santos (transferido para Bambadinca).

Com o Pel Caç Nat 52 (e também com o 54) fizémos (a CCAÇ 12 + CCAÇ 2636 + 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès...A tal operação em que alguns de nós tiveram que beber o próprio mijo para sobreviverem e não morrererem desidratados...





1. Temos 58 referências ao Pel Caç Nat 54, "Águias Negras", formado no CIM de Bolama, pelo nosso saudoso Jorge Rosales (1939-2019), a par dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 55 e 56. Mas sabemos pouco do historial desta subunidade, formada por graduados e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local, tal com as restantes.

O mais antigo representante deste Pelotão a integrar a Tabanca Grande é o Mário Armas de Sousa, açoriano da ilha das Flores, que esteve no CTIG em 1968/70:

Apresentou-se à Tabanca Grande, em 26 de setembro de 2005 (*) nestes termos:

(... ) "Sou ex-furriel miliciano e estive na Guiné de 1968 a 1970, em Porto Gole, Enxalé, Xime e Missirá. Também estou na fotografia da vossa página, tirada no quartel do Xime, junto dos bidões.Tenho alguma informação e fotografias do meu grupo de combate para acrescentar à vossa página se possível. (...)-

Ficamos a saber que em 1970 estava em Missirá, e que o pessoal metropolitano era o seguinte:19 (i) alf mil Correia (comandante); (ii) fur mil Mário Armas de Sousa; (iii) fur mil Inácio; (iv) fur mil Sousa Pereira; (v) 1º cabo Capitão; e (vi) 1º cabo Monteiro.





Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970.


Legenda do Mário Armas de Sousa:

(...) 1ª fila, da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro sou eu, furriel miliciano Mário Armas de Sousa; o terceiro é o 1º cabo Capitão;

2ª fila, da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba.

3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era turra e foi capturado e ficou no nosso exército).

Foto (e legenda): © Mário Armas de Sousa (2005) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Mário Armas de Sousa, que além do Xime esteve em Porto Gole, Enxalé e Missirá, era do Pel Caç Nat 54 que, em Novembro de 1969, foi render o Pel Caç Nat 52, sob o comando do alf mil Mário Beja Santos (transferido para Bmabadinca).

Com o Pel CAÇ NAT 52 (e também com o 54) fizémos (a CCAÇ 12 + CCAÇ 2636 + 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès... A tal operação em que alguns de nós tiveram que beber o próprio mijo para sobreviverem e não morrererem desidratados...

Em maio de 1970, já no final da comissão do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), havia três Pel Caç Nat no sector L1: o 52 (Bambadinca), o 54 (Missirá) e o 63 (Fá) (este comandado pelo alf mil at art Jorge Cabral, infelizmente já falecido).

Estas subunidades não se confundiam com os Pelotões de Milícias: nesta altura, havia já duas Companhias de Milícias no setor L1... As mílicias tinham uma função de autodefesa e eram constituídas apenas por elementos da população guineense (neste caso, predominante ou exclusivamente fulas).

O Henrique Matos, primeiro comandante do Pel Caç Nat 52, já nos disse aqui que esteve em Bolama com o Pel Caç Nat 53, do alf mil Serra (que ficou no Xime em reforço à CCAÇ 1550); o Pel Caç Nat 51, do alf mil João Perneco (que foi para Guileje); e o Pel Caç Nat 54, do alf mil Marchand (que foi inicialmente para Mansabá e, passado pouco tempo, foi parar ao Enxalé).



S/l > S/d > Convívio dos Pel Caç Nat 52 e 54 > Os antigos (e os primeiros) comandantes dos Pel Caç Nat 52 e 54 , respetivamente. alferes Henrique Matos e alferes Marchand (desconhecemos o seu primeir nome), este último falecido em há menos de um ano, em agosto de 2023.

Foto (e legenda): © José António Viegas (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > O alf mil Marchand avaliando os estragos do ataque de 22/12/1966


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > O Alf Mil Freitas, maeirense, da CCAÇ 1439 que estava no Enxalé e avançou com um grupo para as primeiras ajudas.


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > Alguns elementos do Pelotão e da CCaç 1439 (Enxalé), fotografados num cenário de destruição, na sequência do ataque do PAIGC.

Foto (e legenda): © José António Viegas / Henrique Matos (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Enxalé > Maio de 1967 > Uma evacuação por heli, AL III > O meu amigo e conterrâneo da Ilha de S. Jorge, Açores, ten pilav, Orlando Manuel da Silveira Bettencourt (que iria morrer 11 anos depois, em 1978, em acidente aéreo na BA 4, na Terceira, sendo já ten cor pilav), eu (Henrique Matos), a meio, com o Marchand, do Pel Caç Nat 54, à direita, e o Teles, da CCAÇ 1661, à esquerda.


Foto (e legenda): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José António Viegas (n. 1944, em Faro)


2. O segundo elemento do Pel Caç Nat 54 a ingressar na Tabanca Grande foi o ex-fur mil José António Viegas (Bolama, Enxalé, Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68).

Tem 60 referências no nosso blogue. Temos contactado regularmente.

Já quanto ao Mário Armas de Sousa, só temos 4 referências. E não temos notícias dele há muito.

Para já sabemos que o Pelotão teve como comandantes o Marchand (1966/68, Enxalé e Missirá) e o Correia (Missirá, Enxalé,Porto Gole, Xime, 1968/70). De um e do outro não sabemos o primeiro nome.




N/M Uíge > 30 de julho a 3 de agosto de 1966 > O José António Viegas, assinalado no rectângulo a vermelho: de rendição individual, foi juntar-se ao Pel Caç Nat 54, em formação no CIM de Bolama.

Foto (e legenda): © José António Viegas (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P193: Tabanca Grande: O açoriano Mário Armas de Sousa (Pel Caç Nat 54: Missirá, 1969/70)

(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3256: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (5): Lembrando o Ten Pil Av Bettencourt (Henrique Matos)

(***) Vd. poste de 6 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10626: Tabanca Grande (368): José António Viegas, natural de Faro, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54 (1966/68), grã tabanqueiro nº 587

Guiné 61/74 - P25639: Notas de leitura (1700): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1858 a 1861) (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
É evidente que a leitura de um Boletim Oficial pode dar-nos muito boas informações mas é por definição material incompleto, será a leitura que pude fazer deste período que vai de 1858 até determinada altura de 1861 (no próximo texto dar-se-á notícia da morte de D. Pedro V em novembro, aqui há o regozijo do monarca pelo casamento da sua mana, a Infanta D. Antónia que irá casar com um príncipe Leopoldo Hohenzollern Sigmaringen), teremos também o falecimento, que seguramente provocou grande consternação, de Honório Pereira Barreto; é período de epidemias, com destaque para a cólera morbo e a febre amarela, há diferentes referências a reorganizações dos serviços e ficamos a saber que a Guiné iria participar na III Exposição Universal, em Londres, devia enviar para o evento arroz, cera, marfim, tartaruga, azeite de palma, armaduras, peles de animais selvagens e penas de aves; tanto quanto parece, havia quarentena em Cabo Verde mas não na Guiné.

Um abraço do
Mário


Os Suplementos do Boletim Official trazem notícias do Estado. No caso vertente desta edição de 14 de outubro de 1861, o Sr. D. Pedro V determina às Possessões Ultramarinas que procedam a demonstrações de regozijo pelo casamento da Infanta D. Antónia com o Príncipe Leopoldo Estevão Carlos António Gustavo Eduardo Tassilo, Hohenzollern Sigmaringen, haverá três dias de folga, sendo prometidas demonstrações como iluminações, fogos de artifício e quaisquer outros festejos públicos


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1858 a 1861) (7)


Mário Beja Santos

Os próximos anos serão avaros com notícias da Guiné-Bissau, o que parece inexplicável, atendendo às grandes tensões existentes no Casamansa e em Bolama, para já não falar do quadro de permanentes sublevações e ataques a presídios. No Boletim Oficial n.º 29, de 14 de junho de 1858, vem uma portaria com o n.º 93, o Visconde Sá da Bandeira eleva Bissau à categoria de vila: “Tendo em consideração a povoação de Bissau é a capital da Guiné Portuguesa, e a residência do respeitável Governador, e que tem já um número bastante de habitantes para os diversos cargos municipais: hei por bem determinar que é mesmo a povoação que seja elevada à categoria de vila.” No Boletim n.º 30, de 25 de junho, Honório Pereira Barreto, Governador da Guiné, enviara ofício para o Governador Geral dando-lhe conta que encalhara na Costa da Ilha de Bissau uma canoa pertencente a João Marques de Barros, fora abandonada pela tripulação, depois roubada pelos gentios Papéis, mas o Governador obtivera dos mesmos gentios a restituição dos bens, houve louvor para o Governador pelo zelo mostrado.

Aqui e acolá vão surgindo artigos de saúde, e havia razões para tal, crescera o número de afetados pela febre amarela e pela cólera, proliferam os artigos de divulgação, fala-se de tudo desde o coral a poços artesianos. As informações sobre o serviço marítimo são abundantes. No Boletim n.º 43, de 24 de fevereiro de 1859, pela Portaria 221 do Ministério da Marinha e Ultramar, é nomeado o Tenente-Coronel Honório Pereira Barreto, adido ao Batalhão de Artilharia de 2.ª Linha, da cidade da Praia, em Governador da Guiné. E no Boletim de 4 de maio vêm más notícias, como se escreve:
“Da Guiné, aonde o ano passado passava uma epidemia devastadora, consta pelas notícias ultimamente recebidas que o estado sanitário é regular. A morte do honrado, inteligente e patriota desinteressado, Honório Pereira Barreto, Governador da Guiné, que muito temos a lastimar, não foi efeito de causas extraordinárias. A falta de o único homem que conhecia profundamente a Guiné; que estendia a sua influência para o interior e na Costa, a grande distância, instruído, e sempre pronto ao serviço do seu país, é uma perda irreparável”, declarou o Governador Geral, Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes no discurso de abertura da Junta Geral do Distrito, em 15 de maio.

Nada consta de minimamente interessante no ano de 1860. No ano seguinte, no Boletim Oficial n.º 6, de 9 de fevereiro, consta o Ofício n.º 8 do Governo da Guiné Portuguesa, e reza o seguinte: “Na noite de 24 de setembro de 1860, aportou a esta vila, uma lancha, conduzindo o capitão e a tripulação do brigue francês Timor, naufragado na madrugada de 19, nos baixos da Costa da Ilha de Orango, uma das do arquipélago dos Bijagós; imediatamente que aqui chegaram os náufragos, apresentou-se o capitão a dar-me parte do ocorrido, recusando todavia qualquer socorro que lhe ofereci, ainda mesmo o de mandar ver se era possível desencalhar o seu navio. Achava-me naquela ocasião e neste porto o palhabote Bissau, que sem perda de tempo mandei aprontar para ir levar os feridos náufragos a Goreia”, assina o Governador António Cândido Zagalo.

Passamos agora para o Boletim n.º 10 de 19 de março desse ano, um assunto da Justiça: “Atendendo a que os meses de agosto e dezembro, em que, pelo artigo 10.º do Decreto de 1 de outubro de 1856, os juízes do distrito da Província de Cabo Verde devem fazer a correição dos diversos julgados as respetivas comarcas são tempos de chuva na Guiné, e em que aquela região que é a mais insalubre, é quanto os meses de fevereiro, março e abril ou são inteiramente saudáveis ou muito menos doentios: hei por bem determinar o seguinte: a correição que o Juiz de Direito da Comarca de Sotavento da Província de Cabo Verde deve fazer anualmente nos Estabelecimentos na Guiné, terá lugar no tempo que decorres desde o princípio de fevereiro até ao fim de abril” – trata-se de uma portaria do Ministério da Marinha e do Ultramar.

Temos agora uma informação que não deixa de causar surpresa, consta do Suplemento ao n.º 24 do Boletim Official, de 18 de junho de 1961. A propósito da realização da III Exposição Universal, a decorrer em Londres, em maio de 1872, haverá previamente uma exposição onde participarão a agricultura, a indústria e o comércio. É criada em Cabo Verde, em Santiago, uma Comissão com a colaboração do Governador Zagalo pela Guiné, a fim de reunir os produtos que aqui se enviam quanto à Guiné: arroz, cera, marfim, tartaruga, azeite de palma, armaduras, peles de animais selvagens e penas de aves. No Boletim n.º 25, de 22 de junho, são referidas situações de quarentenas e estabelece-se regulamento para a quarentena na Província de Cabo Verde.

E despedimo-nos com uma referência ao Boletim n.º 42, de 2 de novembro, é a Portaria n.º 246 do Governo Geral da Província de Cabo Verde, vejamos o que nela é essencial:
“Sendo conveniente, e de toda a urgência, estabelecer um serviço de comunicações regulares entre este arquipélago e a Guiné Portuguesa; tendo sido para este fim expressamente destinado o palhabote de guerra Bissau; e atendendo às vantagens incontestáveis que de uma tal medida devem resultar, não só para o Governo, mas também para o comércio, que nas suas transações tem decerto sofrido bastante com a falta de absoluta correspondência: hei por conveniente determinar:
O referido palhabote sairá impreterivelmente do porto da cidade da Praia para Bissau no primeiro dia de cada um dos meses de janeiro, abril, junho e outubro; assim como partirá de Bissau para esta cidade, fazendo escala por Cacheu, no primeiro dia dos meses de maio, junho, setembro e outubro;
Durante o tempo que medeia entre o dia da chegada do palhabote a Bissau, e aquele em que fica determinado que deve voltar para a cidade da Praia, poderá ser o mesmo navio empregado em qualquer comissão pelo serviço que assim exija, sem que seta forma, ou sob qualquer pretexto, fique permitido alterar a sua partida regular dos dias já indicados;
Quando em Cacheu tenha tão somente de entregar e receber correspondência, para evitar o perigo da entrada da barra, poderá ficar fora do porto, mandando apenas o escaler a terra;
Por benefício do comércio e comodidade dos particulares, poderá o palhabote de Bissau receber carga e passageiros, até onde comportar a lotação do navio, sem prejuízo dos objetos e passageiros que tenha de transportar por conta da Fazenda.”


Justifica-se ainda uma observação quanto à Portaria n.º 247, também de 2 de novembro, o Governador Geral da Província de Cabo Verde esclarece a jurisdição da Comissão Fiscal da Guiné, as suas atribuições, composição, encargos.

Fotografia de D. Pedro V
Túmulo de Honório Pereira Barreto em Bissau
Forte de Cacheu, Honório Pereira Barreto numa escultura despedaçada
Igreja de Nossa Senhora da Natividade, Cacheu
Uma imagem que vale por milhentas palavras

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 7 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25614: Notas de leitura (1698): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1857) (6) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 10 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25628: Notas de leitura (1699): Kangalutas, por Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro



O atentado de 1 de fevereiro de 1908, na página 0169 da Ilustração Portuguesa, de 10 de fevereiro de 1908

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1908/N103/N103_item1/P3.html


Ilustração Portuguesa, edição semanal do jornal "O Século", 2ª série, nº 103, Lisboa, 10 de fevereiro de 1908.  

Diretor: Carlos Malheiro Dias. Propriedade: J.J. da Silva Graça. Diretor artístico: Francisco Teixeira. Assinatura anual (Portugal, colónias e Espanha): 4$800.

Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa | Câmara Municipal de Lisbia


 


Lisboa > Hospitais Civis de Lisboa > Hospital do Desterro > 1922 > Tomás de Melo Breyner, diretor de serviço, com assistentes  e estudantes.  Durante anos, organizou cursos de venereologia para os alunos do 4.º e 5.º anos de medicina.  Em 19121, tinha sido aprovado em concurso para professor da cadeira de Sifologia, da Faculdade de Meficina da Universidade de Lisboas. Na foto, é o segundo a contar da direita.   Imagem do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 

Fonte: In  "Saúde", volume nº 29, da autoria de Luís Graça, coleção "Memória de Portugal: 2 séculos de fotografia"  (Lisboa, Atlântico Press, 2020, p.15) (*)



Diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07),  que de manhã  via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica  no seu consultório privado da rua do Ouro 


1. Thomaz de Mello Breyner 
(1866-1933) 

Thomaz de Mello Breyner
Cortesia do portal
Geneall,net



Era uma figura conhecida (e estimada) nos meios da política, da sociedade e da medicina do princípio do Séc. XX.  Neto e filho de militares, nasceu no castelo de S. Jorge, quartel do Batalhão de Caçadores 5, de que o pai, coronel, o 2º conde de Mafra, era o comandante (sendo comandantes honorários os reis de Portugal, desde D. Pedro IV).

Foi sempre católico e monárquica mas liberal, o que não impedirá de, na vigência da República, de ser um antirrepublicano, de alma e coração, numa época em que muitos dos serus colegas médicos eram republicanos. 

Conviveu desde cedo com a  família real, a começar pelos príncipes Carlos e Afonso, de quem foi colega de brincadeiras.  Por razões de saúde, e por ser um menino muito protegido pelos pais, começou a estudar tardiamente, primeiro no  Colégio Académico Lisbonense e depois  na Escola Politécnica.  Fez o curso de medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, no Campo de Santana. Foi interno dos hospitais nos últimos anos do curso, acabando por fazer a sua carreira no Hospital de São e no Hospital do Desterro. É um dos pioneiros da dermatologia e da venerologia em Portugal, e um dos rostos da luta contra a sífilis.

Especializou-se em França, tendo concorrido em 1893 a médico do hospital de S. José.  Em 1897, ano do início do seu diário, vemo-lo diretor da consulta das “moléstias vergonhosas” (doenças sexualmente transmissíveis). Em 1906, passa para o Hospital do Desterro, ficando a dirigir  da Enfermaria de Santa Maria Madalena, onde iam parar as  "toleradas",  nome eufemístico para as prostitutas da cidade (que tinham de estar "cadastradas" na polícia e que eram sujeitas a inspeção sanitária periódica).

Nesse mesmo ano de 1897 é nomeado médico da real câmara por D. Carlos I e nessas funções acompanhou a rainha D. Amélia a Paris (em 1894), e a rainha viúva D. Maria Pia a Itália (em 1901). Vai-se ,manter no cargo até ao fim da monarquia.

Ainda em 1897 foi ao c
ongresso sobre peste bubónica que se realizou em Veneza, acompanhando  o seu mestre, o dr. Sousa Martins ( 1843-1897).  

Em 1903 irá representar Portugal no Congresso Internacional de Medicina de Madrid.  Em 1906, é  eleito secretário da comissão executiva desse mesmo  congresso , que se irá realizar em Lisboa, e que foi um sucessso, do ponto de vista organizativo, social e científico, devido muito ao mérito do Miguel Bombarda (1851-1910).

Na legislatura de 1906-1907, vamos encontrá-lo como deputado e  director de serviço clínico no Hospital do Desterro (enfermaria de Santa Maria Madalena). Em 1894 tinha casado com Sofia Burnay, filha mais nova dos 1ºs condes de Burnay,  tendo tido nove filhos.

 É, todavia, mais conhecido hoje  pelas suas “Memórias” (2 volumes), publicadas na década de 1930, bem como pelo seu monumental diário, excecional na nossa literatura memorialística: abarca um período de 36 anos, de 1 de janeiro de 1897 a 21 de outubro de 1933 (!). 

Na sua grossa agenda, anotava, compulsiva, disciplinada, metodicamente,  dia a dia, em estilo telegráfico, os "fait-divers" da sua vida pessoal, familiar, social, política e profissional,  tornando-se assim uma fonte riquíssima para estudar o quotidiano da sociedade portuguesa (e em particular lisboeta) de um largo período de tempo, que vai do final da monarquia até ao início do Estado Novo, passando pela República (1910-1926) e a Ditadura Militar (1926-1933).

Parte desse diário, manuscrito, foi  transcrito, anotado e publicado pelo seu neto, Gustavo de Mello Breyner Andresen (1923-2006),  em edição de autor, sob o título “Diário de um Monárquico” (abarcando os anos de 1902 a 1913). A Fundação Eng. António de Almeida fez uma edição em 3 volumes  (Porto, 2003). Um dos volumes que li com curiosidade e agrado abarca os anos de 1905-1907 (**), ou sejam, os últimos três anos da  Belle Époque portuguesa.  O reinado de Dom Carlos I acaba tragicamente, em 1 de fevereiro de 1908, com o regicidio.

De facto, nesse dia, de regresso da família real, vinda de Vila Viços, a monarquia portuguesa é ferida de morte: O rei D. Carlos (1863-1908) e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe  (1887-1908) são assassinados à esquina da Praça do Comércio com a Rua do Arsenal.

Thomaz de Mello Breyner, futuro 4º conde de Mafra (título outorgado por D. Manuel, já no exílio), médico da corte e amigo íntimo da família real , já por diversas vezes tinha manifestado a sua preocupação sobre o futuro da Pátria e da dinastia de Bragança:

  • "Onde está o meu Rei estou eu, sobretudo agora em tempo quase de guerra", escrevia ele a 8 de Dezembro de 1907 (Breyner, 2003. 344).
No final desse ano, anotava no seu diário:
  • "Acaba-se hoje um ano que não me deixa as menores saudades. Praza a Deus que o próximo seja melhor. Saúde para os meus, para o rei e para a Pátria é que se deseja e também para o João Franco" (31 de Dezembro de 1907).

Estava longe de imaginar que, dentro de um mês, estaria a chorar a perda dos seus queridos Rei e Príncipe Real e a embalsamar os seus corpos. Do seu Rei dirá:

  • "Que bom amigo e que bom homem! Era digno de melhor sorte. E de melhor Pátria!..." (30 de Dezembro de 1907).

É, de resto, um cidadão e português também minimamente atento ao (e preocupado com o) que se passa na cena internacional, e treme pelas coroas europeias:

  • "Há terríveis notícias de uma revolução na Rússia" (23 de Janeiro de 1905);
  • "Quando estava no quarto de El-Rei antes do jantar recebeu ele um telegrama dizendo que em Madrid foi esta manhã lançada uma bomba sobre o coche onde o rei Afonso XIII e a Rainha Vitória vinham, tendo acabado de casar. Os Reis ficaram ilesos, mas morreu muita gente à roda. São os anarquistas em acção. Ao nosso Príncipe Real nada aconteceu" (31 de Maio de 1906).

Relutante em meter-se na política, Mello Breyner não hesita, todavia, em apoiar o João Franco, indigitado por El-rei para formar governo (19 de Maio de 1906). Dias depois vai a casa de João Franco (1855-1929), líder do partido Regenerador Liberal (também conhecido como  "partido franquista"), entregar a sua "influência em Mafra" (sic), onde está garantido o apoio da "saloiada" (sic). Fica assim "ligado ao homem em que tenho confiança". A justificação é simples:

  • "Sou português e sou pai de filhos, por isso quero que a Pátria se endireite" (29 de Maio de 1906).

Mas um ano antes rejeitava a ideia dos seus apoiantes de Mafra para se envolver na política, citando o seu mestre Sousa Martins:

  • "A política é uma marafona com quem nunca tive nem desejo ter relações" (10 de Fevereiro de 1905).

A sua carreira política será, todavia, modesta e discreta: o João Franco resolveu fazer dele deputado e encarregá-lo da "reorganização do serviço de meretrizes" (sic) (19 de Junho de 1906). E de facto caber-lhe-á a criação do serviço de dermatologia e doenças venéreas no Hospital do Desterro.


Vai desportivamente, uma vez por outra, à Câmara dos Deputados, da parte da tarde. Em Vernet-les-Bains, nos Pirinéus franceses, onde o sogro tem interesses imobiliários, e onde a família faz férias de Outono-Inverno, escreve o nosso deputado absentista:

  • "Pelos jornais vejo que houve no dia 20 sessão tumultuosa na Câmara dos Deputados, sendo postos fora pela força armada os deputados republicanos Afonso Costa e Alexandre Braga. Parece-me que o João Franco precisa começar a dar porrada rija" (23 de Novembro de 1906).

A "porrada rija" de João Franco acabou mal, acabou numa curta ditadura (a partir de maio de 1907) e na tragédia do regicídio.

 É contudo um patriota e um leal monárquico. Estando em Madrid, no dia 1 de Dezembro de 1906, tem este pensamento:

  • "Amanheceu o dia puro e alegre como em Lisboa em 1640" (Madrid, 1 de Dezembro de 1906).

Curiosamente, esta frase faz-nos lembrar o poema da sua neta Sophia sobre o 25 de Abril de 1974, quase sete décadas depois:

  • "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo" (In: Sophia de Mello Breyner Andresen, ‘O Nome das Coisas’, 1977).

Mas o avô materno da grande poeta que foi a Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), era também um reputado e popular médico que fez carreira nos hospitais civis de Lisboa  (designação de 1914, eram até então Hospital de São José e Anexos)  e que privou com os maiores vultos da medicina de então, tendo inclusive sido docente da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, a mesma que depois, anos mais tarde, em 1911, será transformada em Faculdade de Medicina, integrada na Universidade de Lisboa.

Tomaz de Mello Breyner era casado com uma das filhas do homem mais rico de Portugal, o banqueiro Henrique de Burnay, Conde de Burnay (1838-1909), o homem forte da Companhia dos Tabacos. 

Era um extremoso pai de nove crianças e um homem afável, além de amigo do seu amigo. com amigos em todas as classes socais.

São algumas das notas do seu diário, incluindo os seus interessantes obituários, que nos permitem conhecer hoje, um pouco melhor, a prática da medicina, quer hospitalar quer privada, daquela época, tendo como pano de fundo a conturbada vida política da época, bem como a morbimortalidade que atingia as pessoas do seu círculo de relações (família, criados, amigos, colegas).

Thomaz de Mello Breyner mostrava ser um homem de hábitos, disciplinado, obsessivo com as horas. E com o tempo (e as suas variações) (***): 

Levantava-se cedo e, quando não dormia no Paço das Necessidades (então residência oficial da família real), saía da sua casa, na Junqueira, em Lisboa (sendo portanto vizinho dos seus sogros, que moravam no Palácio Burnay, sito no nº 86 da Rua da Junqueira, edifício hoje classificado como imóvel de interesse público, juntamente com os seus anexos e jardim), e ia directamente para o Hospital do Desterro, por volta das 7 horas, conduzindo ele próprio, muitas vezes, o seu automóvel, o que para os médicos da época era ainda um verdadeiro luxo!

No Hospital do Desterro, o dr. Thomaz Mello Breyner não deveria trabalhar mais do que duas a três horas (o que não o impedia de lá ir aos fins de semana). Para os médicos, em geral, o hospital ainda era um local de passagem, mas fundamental para a sua formação clínica.  Vemo-lo a sair por volta das 10h. Almoçava em casa ou nalgum hotel da Baixa. Da 13 às 15h (ou das 14 às 16h) estava, habitualmente, no seu consultório, na Rua do Ouro, 292-1º, que partilhava com o seu colega e sócio Agostinho Tavares (20 de Maio de 1906).

Noutras vezes sai directamente, de casa ou do Paço, para "ver os meus doentes" (22 de Janeiro de 1905). À noite, também sai, quando é chamado, para ver doentes:

  •  "À noite ainda fui ver um doente ao Hotel Porto" ( 10 de Fevereiro de 1905).

Não há uma única referência aos honorários que deveria receber da sua actividade privada. Mas sabemos que trabalhava muitas vezes "pro bono".

Embora pertencesse ao high life e ao mundo snob que era retratado pelo Diário Ilustrado, "o mais lido dos jornais do Partido Regenerador-Liberal, (...) o órgão da boa sociedade, preenchido por notícias da corte, de partidas e chegadas, de aniversários, soirées, recepções, nascimentos e casamentos" (Ramos, 1994. 274), Tomaz de Mello Breyner revela-se sobretudo um atento e sensível pai de família que procura ter tempo para os seus, sempre que as suas obrigações principais (médico da corte, juntamente com o seu colega de hospital, o cirurgião Artur Ravara, por exemplo) o permite:

  • "Fui de manhã no automóvel levar os pequenos ao colégio" [ em Campolide ] (3 de Julho de 1905);
  • "De tarde tive ao pé as minhas queridas filhas Maria e Teresa que continuam muito sarampadas" (21 de Fevereiro de 1905).
Vai a festas e outras reuniões sociais mas parece não morrer de amores por São Carlos:

  • "Hoje há récita de gala em S. Carlos, onde não fui por falta de pachorra" (23 de Março de 1905).
Em contrapartida, parece ser um admirador (acrítico) do talento do seu sogro para fazer negócios e lidar com os políticos:

  • "Hoje foi assinado o contrato entre o Governo Português e um grupo de banqueiros ligado à Companhia de Tabacos. É para a conversão e para exclusivo do fabrico de tabacos. É mais um triunfo para o meu sogro que deu nesta questão um golpe de mestre" (4 de Abril de 1905).

Recorde-se que o sogro, Conde de Burnay, era o todo-poderoso presidente do Conselho de Administração da Companhia de Tabacos, não admirando por isso que o genro fizesse parte do respectivo Conselho Fiscal (desde 1903 a 1933) (Mónica, 1992. 119-122).



Exemplo do diário que Thomaz de Mello Breyner manteve entre 1 de janeiro de 1897 e 21 de outubro de 1933. Esta cópia corresponde ao domingo, 2, e à segunda feira, 3, de outubro de 1910, na véspera do 5 de outubro (!)... 

Estava com a família no Paço de Mafra (onde ia com alguma frequência, com ou sem o rei e a família real)... Note-se que ele costumava fazer recortes de jornal que colava na agenda, como esta do Prof  Fulgence Raymond (1844-1910), professor dneurologia, sucessor da cátedra do famoso Charcot no Hospital da Salpêtrière, no período de 1894 a 1910. 

 Escreve ele:

" Morreu no passado dia 29 em Poitiers o professor de medicina Ful
gence Raymond que substituiu Charcot e que sempre foi muito amável comigo. R. I. P.  Vi-o em Paris em junho de 1909. Convidou-me a jantar" (Paço de Mafra, domingo, 2 de outubro de 1910).

E a segunda feira, dia 3, anotou: 

"Paço de Mafra: levantei-me cedíssimo, às 4 1/2 estava de pé. Os rapazes foram logo para a tapada até às 10. (...) De tarde fui aos terraços altos com a  Carol, Mary, Luz e o Evaristo. Tarde de ventania, mas bonita. Cansei-me deveras no passeio. Não ando bom; ando sobretudo preocupado com a política do país. Estamos com a certeza clara de vésperas (?)  de graves acontecimentos. No sábado em Lisboa tive más notícias pela minha gente do Hospital".

Fonte: Arquivo Nacional da Torre Do Tombo. Cortesia de Expresso > Sociedade > "um cronista invulgar: O diário escrito por Thomaz de Mello Breyner, nascido há 150 anos, faz um relato vivo e colorido dos últimos dias da monarquia, da I República e dos começos do Estado Novo". Artigo de Margarida de Magalhães Ramalho. Expresso, 11 de setembro de  2016 20:00 (****)

Algumas das últimas fotos do rei Dom Carlos e do príncipe herdeiro Luís Felipe, na sua herdade de Vila Viçosa, em traje de caça. A família real (incluindo D. Manuel) passou quase todo o mês de janeiro em Vila Viçosa, "realizando-se diversas caças na Tapada real. A pitoresca vila alenteja, antuga corte da sereníssim, casa e estado de Bragnça tem apresentado, por esse motivo, uma desausada animação"  (...). 

Uma estadia demorada que a "Ilustração Portuguesa" teve o privilégio de documentar "com alguns clichés de El-Rei e do Príncipe herdeiro", também eles bons fotógrafos (pág. 160), além do grande fotojornalista Joshua Benoliel que os acompanhava por toda a parte.

Ao que parece, o Thomaz de Mello Breyner, contrariamente aos gostos aristocráticos da época, não apreciava a caça nem os touros de morte...

Fonte: Ilustração Portuguesa, 2ª série, nº  102, Lisboa, 3 de fevereiro de 1908,  pp. 155-160



2. Uma medicina privada para os ricos e uma medicina hospitalar para os pobres


Médico hospitalar, especializado em França em doenças sexualmente transmissíveis, fazia medicina privada, como todos os médicos do seu tempo, para uma clientela rica (ou com posses). 

Mas o o seu consultório, situado na Baixa Lisboeta, então uma zona chique, também é usado na sua vida social. E provavelmente também como "tertúlia".  Tomás de Mello Breyner é fluente em inglês, além do francês, e amigo de escritores como John dos Passos (que está de passagem em Lisboa a 24 de Maio de 1905). Frequentemente é solicitado para servir de intérprete e até de fazer de relações públicas da corte.

Eis alguns excertos do seu diário, que apoiam a tese segundo a qual se podia falar na época, e até tarde, de uma medicina privada para as classes possidentes e uma medicina hospitalar para os pobres:

  • "Recebi [no consultório] a visita de Mr. Drexel, o milionário americano que há dias aqui chegou no seu iate" (23 de Maio de 1905);
  • Tive a visita do grande Guerra Junqueiro que foi mostrar-me um herpes loster que este tem há muito tempo" (26 de Junho de 1905);
  • "Fui depois a Cacilhas ver a mulher de um inglês chamado Symington" [presumivelmente ligado à indústria corticeira] (17 de Março de 1906);
  • "De manhã Hospital e às 11h. fui operar uma 'cocotte' espanhola à Rua do Grémio Lusitano" (23 de Março de 1906);
  • "De 1 às 3h. Consultório. Antes de vir para aqui [ Paço da Pena, Sintra] fui à avenida [ da Liberdade ] ver a minha doente D. Milagro Angulo que me deu um anel com 3 brilhantes para a minha filha Maria Amélia " (18 de Setembro de 1906);
  • "Fui depois com o [querido mestre Édouard ] Brissaud [ que estava em Lisboa por ocasião do XV Congresso Internacional de Medicina] ver o sr. Maia na avenida [da Liberdade], um brasileiro onde estava a Marbel Ellerton" (25 de Abril de 1906).

A partir de 30 de Junho de 1906, deixava o seu consultório na Rua do Ouro em virtude de o senhorio ter aumentado em 100 mil réis a renda anual. (A assinatura anual da "Ilustração Portuguesa" custava, nesse tempo, 4$800.) 

Mudou-se então para a Rua do Corpo Santo, 13-2º, "mas por enquanto dou a minha consulta aqui em casa [ na Junqueira ], das 2 às 4h. p.m." (30 de Junho de 1906).


3. A morbimortalidade do princípio do Séc. XX


Também há notas sobre a saúde pessoal do autor, dos seus familiares e das demais pessoas das suas relações:

  • Por exemplo, em 14 de Janeiro de 1905, o autor está muito "grippado" (sic) pelo que não saiu de casa;
  • No dia seguinte já estava "um pouco melhor (...) da constipação";
  • Típica frase de um médico, que é hipocondríaco e que lida mal com a doença que o atinge, a si e aos seus:"Não tenho tempo para estar doente";
  • A 17 é uma sobrinha que está convalescente do sarampo;
  • A 11 de Fevereiro os dois príncipes estão também com sarampo.
  • Quando chega a casa, de tarde, vai ver os pequenos, "mas de longe", com "medo de lhes levar o sarampo" (15 de Fevereiro de 1905);
  • A 4 de Fevereiro, vai de manhã a casa do criado Fernandinho (do Paço) que adoecera com um "bronchopneumonia" (sic).

As pessoas (mesmo as da classe alta) morrem cedo, e sobretudo de tuberculose e de outras doenças (a escarlatina, a difteria ou a febre tifóide) que hoje deixaram de ter grande peso na morbimortalidade da população portuguesa. (O próprio autor provem de uma família que já tinha perdido duas fillhas, por difteria,  antes de ele nascer.)

São frequentes, no seu diário, as notícias da morte de parentes,  amigos e conhecidos :

  • Henrique Stegner, professor de alemão, com 66 anos, de "lesão cardíaca" (8 de Fevereiro de 1905);
  • "Morreu esta manhã com 3 1/2 anos a filha mais velha dos Condes de S. Lourenço, neta dos Condes de Sabugosa. Era uma encantadora criança que uma escarlatina matou em 3 dias" (18 de Junho de 1905);
  • " Morreu ontem o Alfredo Casais com quem brinquei na minha infância (...). Era filho de uma criada inglesa (...). Tinha a minha idade. Era bom rapaz. (...) Foi uma vítima do vinho barato" (21 de Outubro de 1905);
  • "Morreu esta madrugada (...), vítima da tuberculose pulmonar, o meu primo e amigo Conde de Óbidos, (...) meirinho-mor do Reino, oficial-mor da Casa Real, Par do Reino e 2º tenente da Armada Real. Tinha (...) 31 anos (...) Pobre Pedro!, foi uma vítima do muito que subiu na alta roda. Em 2 anos morreram a mãe dele, Condessa do Sabugal, e na Suiça os dois irmãos Manuel e Luís, todos tuberculosos" (12 de Dezembro de 1905)";
  • (...) Morreu tísico em casa de seu pai na Rua de S. Domingos à Lapa o Conde de Arnoso (João), 2º tenente da Armada Real. Era um oficial distinto, um bom rapaz e um bom amigo" (6 de Junho de 1906);
  • "Morreu ontem com uma febre tifóide o meu colega e amigo Dr. Sebastião Ramos Chaves, filho do meu mestre de inglês Manuel Ramos Chaves. Tinha 34 anos" (21 de Dezembro de 1906);
  • "Morreu esta manhã quase repentinamente com um ataque de angina de peito, na sua casa (...) o Conselheiro João Ferraz de Macedo, lente de clínica médica na Escola Médica e Director Geral da Saúde Pública" (3 de Janeiro de 1907);
  • "[Fui] ao enterro do meu colega e amigo Dr. Virgílio Baptista, que morreu ontem ao meio dia, vitimado aos 33 anos por uma febre tifóide. Era rico, feliz, amável e trabalhador" (21 de Novembro de 1907);
  • "À tarde fui com o Jorge Cid ao Lumiar ver o Conde de Óbidos que está cada vez pior: último grau da tísica pulmonar" (16 de Agosto de 1905);
  • "Fui de manhã a Lisboa ver uma filha do meu amigo A.B.F. (Anselmo Braamcamp Freire) que tem uma moléstia terrível. Que dó, que aflição!" (21 de Outubro de 1905);
  • "Fui à vila de Santo António ver uma irmã da Caridade espanhola, que está tísica e moribunda" (13 de Outubro de 1906);
  • "Morreu esta manhã no convento das Dominicanas de Benfica onde era freira minha prima do Maria do Carmo Braamcamp de Mello Breyner (...). Morreu tísica" (1 de Abril de 1907).
O mal de viver, o suicídio e outras formas de morte violente como o homicídio também estão presentes nas página do diário:

  • "De tarde estive com o Prof. M. Bombarda e com o colega Arsénio Cordeiro uma conferência ao Afonso de Portugal que está alienado. Pobre rapaz! 30 anos, tenente de cavalaria e perdido. É o marido da filha mais nova do General Queiroz" (14 de Junho de 1905); no dia seguinte, o doente dá entrada no Rilhafolhes (actual Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda);
  • "Morreu hoje ao meio dia em Coimbra o Professor Sousa Refoyos em resultado de um tiro que lhe disparou ontem um médico chamado Rodrigo de Barros Teixeira. Dizem que era um louco, mas mais louco desde que o pobre Refoyos (...) resolveu persegui-lo sem cessar (...). O Refoyos era um bom cirurgião, o melhor ou antes o único de Coimbra" (4 de Dezembro de 1905);
  • "De tarde fui a Queluz no automóvel Mercedes (40 cavalos) do americano Henry Church. Este Church é um milionário neurasténico que tem 'le mal de l'argent' [itálico no original, o mal do dinheiro]. Tem apenas 25 anos e anda pelo mundo numa ânsia de divertimento sem saber o que há-de fazer ao dinheiro e à cabeça" (27 de Dezembro de 1905).


4. Um geração brilhante de médicos


Nessa época já estava a funcionar o Hospital Colonial. A 11 de Janeiro de 1905, o autor acompanhou um colega inglês do cruzador Essex numa visita aos hospitais de Lisboa, "acabando pelo Hospital Colonial na Junqueira onde estava o António de Lancastre que mostrou a doença do sono em seis pretos" (sic) (Breyner, 2003.19).

Este António de Lencastre, médico e aristocrata, é citado por Mira (1947. 475) como tendo sido enviado, pelo Governo, em 1899, "em comissão ao estrangeiro (...) para ali estudar os processos empregados no isolamento e hospitalização dos tísicos", iniciativa da qual iria nascer, nesse mesmo ano, a Assistência Nacional aos Tuberculosos

Há, por outro lado, várias referências, entusiásticas, ao Instituto Bacteriológico Câmara Pestana e aos progressos das ciências biomédicas:

  • "Quando esta manhã estava no Hospital do Desterro, disseram-me do Instituto Bacteriológico que a análise das membranas tiradas da garganta do meu filho Chico dava a existência de bacilos de difteria. Fiquei apenas apoquentado, mas se fosse há 10 anos quando hão havia ainda o soro Bering-Roux teria ficado louco. Fui logo buscar o colega Carlos França que veio e injectou dois frascos no ventre do pequeno. A montagem do Instituto para este serviço é perfeita e deve-se à Rainha D. Amélia (...). Às 6 h. da tarde já o Chico tinha melhorado, tendo a injecção sido feita ao meio dia! Viva o Roux! Viva o Bering! Viva a Rainha!" (15 de Março de 1905).
O Instituto Bacteriológico é, de resto, visita obrigatória dos médicos estrangeiros que passavam por Lisboa, sendo o dr. Tomaz de Mello Bryner o cicerone:

  • " (...) Fui de manhã com o automóvel de minha sogra ao Arsenal buscar o Dr. Bankart, médico do iate real Victoria & Albert, e o Dr. Hunt, médico do cruzador Cornwall e dali fomos todos ao Instituto Bacteriológico e à 1h. trouxe-os a almoçar a casa do meu sogro" (24 de Março de 1905).

Câmara Pestana é um dos fundadores da bacteriologia em Portugal, criando as condições para o desenvolvimento da medicina laboratorial. Em 1892, o Governo tinha criado o Instituto Bacteriológico de Lisboa e nomeado Câmara Pestana seu director.

Por falta de edifício próprio, o Instituto é provisoriamente instalado no Hospital de S. José. Em 1895, passou a designar-se Real Instituto Bacteriológico de Lisboa. Em 1899 é inaugurado o novo edifício. Passa a ter então a designação (IBCP) que tem hoje. Em 1911, é incorporado na recém-criada Universidade de Lisboa, anexo à Faculdade de Medicina de Lisboa até à publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa, em 1989.

Aníbal Bettencourt sucede, na direcção, ao malogrado Câmara Pestana, cujo futuro prometia ser brilhante, ao analisar-se a sua curta vida de médico (10 anos, dos quais um passado em estágio no Instituto Pasteur, de Paris) (Pina, 1947.454-456) (A sua brilhante dissertação inaugural sobre "O micróbio do carcinoma", apresentada e defendida, em Julho de 1889, perante a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, está disponível em formato pdf no sítio do IBCP)

Durante a primeira década do Séc. XX, o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana vai reunir um grupo de gente (médicos e veterinários) que irá produzir um conjunto notável de estudos científicos. O IBCP cria inclusive uma revista, os Arquivos do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, "escrita em francês para ser distribuída internacionalmente" (Mira, 1947. 457).

Deste grupo inicial, que representa o melhor que se faz em Portugal em termos de investigação biomédica, é de de citar Gomes de Resende, Carlos França, Reis Martins, Morais Sarmento, Marck Athias, Aires Kopke, Nicolau Bettencourt e Ildefonso Borges, entre outros (Mira, 1947.456). Carlos França e Marck Ahias são dois dos maiores vultos desta geração. É uma época de "notável distinção para a medicina portuguesa, e particularmente para a Escola de Lisboa" (Mira, 1947. 462), a qual ofuscava por completo a Faculdade de Medicina de Coimbra.

O nosso autor acompanha também o Rei ou a Rainha em visita a estabelecimentos e saúde:

  • "Fomos ao Hospital do Rego [actual Hospital Curry Cabral ] que está pronto e lindo. É pena que não haja mais aquecimento dentro das enfermarias (...). El-Rei foi recebido pelo ministro do Reino (S. D. José Caelho), Ferraz de Macedo [ Director-Geral de Saúde Pública ], Curry Cabral [ Enfermeiro-mor do Hospital de S. José e anexos entre 1901 e 1910 ] (...)"
  • "Da 1 às 2 1/2 Consultório e dali ao Hospital onde a rainha D. Amélia fez uma demorada visita ao Instituto Finden (...) (20 de Fevereiro de 1905).

Também há referências ao "saudoso mestre" Sousa Martins, nascido em Alhandra em 1843 e falecido em 1897, de tuberculose (na realidade cometeria suicídio):

  • "Fui (...) com o Alfredo [da ] Costa e mais uns amigos de Sousa Martins levar ao Casimiro José de Lima um presente em sinal de gratidão por tudo o que fez à memória do saudoso mestre. Custou-me o brinde à minha parte 30 mil réis mais do que eu dei para a estátua de Sousa Martins! Coisas da nossa terra, entusiasmos disparatados" (7 de Dezembro de 1905).

O Dr. Tomás de Mello Breyner usa e abusa dos favores dos seus colegas do hospital, grandes clínicos, como o Jorge Cid, o Carlos França, o Artur Ravara, o Alfredo da Costa, o Custódio Cabeça ou José Gentil, quando alguém da sua família ou das suas relações está doente:
  • "Fui de manhã ao Hospital e levei comigo o Chiquinho para ser visto pelo [ José ] Gentil. Tem com efeito tumores adenóides na faringe e precisa de ser operado. Valha-me Deus e Nossa Senhora" (20 de Maio de 1905);
  • "Quando cheguei [a casa, na Junqueira] encontrei a minha querida filha Maria Amélia com difteria, tendo já vindo o Carlos França fazer uma injecção de soro. Valha-me Deus" (27 de Março de 1906);
  • "A querida Mariazinha dormiu melhor e de manhã fui no automóvel buscar o Carlos França (...)" (29 de Março de 1906);
  • "Não fui ao Hospital porque o sogro [ Conde de Burnay ] passou mal a noite; organizei uma conferência com Ferraz de Macedo, Moreira José e Silva Carvalho e, muito de propósito, não assisti para os obrigar a deixar as instruções e opiniões por escrito. Assim se fez" (30 de Maio de 1905);
  • "Vim de Mafra e trouxe comigo a Mademoiselle Lebigot [ "a mestra francesa das pequenas"] para consultar o médico Nuno Porto" ( 16 de Agosto de 1905);

Nesta época ainda são os médicos (ou os estudantes de medicina) a fazerem os curativos ou ministrarem injecções, havendo escassas referências a pessoal de enfermagem :

  • "À noite sai para fazer o curativo do meu cunhado Roberto que vai melhorando um pouco" (25 de Abril de 1905);
  • "Às 4h. 40 vim para aqui fazer duas injecções de digitalmia a meu sogro que está um pouco assistólico e cá durmo para vigiar os efeitos" (18 de Maio de 1905);
  • "Voltei [ao Paço de Cascais] às 1h. 40 com o estudante do 4º ano que veio ajudar-me a extirpar um quisto ao Príncipe Real" (3 de Novembro de 1905);
  • "De manhã fiz o curativo ao Príncipe e uma massagem à Rainha [que na véspera fizera uma contusão na perna e no braço, devido a queda de cavalo]" (5 de Novembro de 1905);
  • "Fui depois [do Consultório] ver o João Pindella que continua moribundo e vacinar toda a família do Fernando Serpa" (2 de Junho de 1906);
  • "Às 7 h. a.m. fui ao Hospital. Às 10 h. (...) fui a Belém a casa do Pedro Franco cloroformizar [ anestesiar com clorofórmio] o meu amigo Feliz Saraiva para ser operado de apêndice pelo Dr. Cabeça. Correu bem a operação" (12 de Junho de 1906);
  • "Fui ao Hospital e às 10 1/2 vim aqui [a casa, na Junqueira] para ajudar o Dr. Valadares a cortar uma amígdala a minha filha Maria da Luz"
Como já se disse, há muitas poucas referências a novos profissionais de saúde, não médicos, como os técnicos de diagnóstico, os fisioterapeutas ou os enfermeiros:

  • "Vi no Século no dia 10 que morrera na véspera na sua casa em Lisboa (...) o meu amigo Alfredo Dias, massagista dos Hospitais e muito boa pessoa (...) Foi muito protegido pelo Sousa Martins".

Diz o nosso autor que lhe chamavam-lhe o Dias Mexano porque nos cartões de visita dizia ser " mechano-therapeutha" (sic) e houve uma enfermeira que lhe chamou "mexano".

  • "Pobre Dias! Éramos amigos de tu" (Pedras Salgadas, 11 e 12 de Julho de 1905)."Morreu ontem e enterrou-se hoje o Afonso, enfermeiro da Companhia Real em Santa Apolónia. Era inteligente, sabedor dos eu ofício e muito meu amigo (...). Foi enfermeiro no Hospital de São José e há 20 anos que estava em Santa Apolónia. Este Afonso era muito corado e o Júlio Mardel chamava-lhe ginja d' aguardente " (4 de Outubro de 1907).

Uma das coroas de glória do nosso médico é a organização e a realização, em Lisboa, em 1906, do .
XV Congresso Internacional de Medicina Tomaz de Mello Breyner era o secretário da Comissão Executiva, presidida por Miguel Bombarda:

  • "(...) Conferência com o Bombarda e o Lavrador José Palha Blanco sobre a festa ribatejana a dar aos congressistas" (7 de Fevereiro de 1906);
  • " (...) Fui com a Sofia [a esposa] para a nova Escola Médica [em Santa Marta]. A Sofia foi à reunião do Comité de Senhoras do Congresso de Medicina" (15 de Abril de 1906).
Este encontro foi um "sucesso", do ponto científico e social, tendo trazido a Portugal a elite médica da época:

  • "(...) Fui por ordem de El-Rei numa carruagem real levar aos Prof. Costa Alemão [do Porto, presidente do Congresso] e Miguel Bombarda as cartas régias e as insígnias de grã-cruz de Santiago (...). Ambos encantados e eu muito ancho de ter sido o portador" (26 de Abril de 1906);
  • " (...) Encerramento solene do Congresso. O próximo Congresso (XVI) será em Budapeste" (26 de Abril de 1906);


Lisboa > Sociedade de Geografia > Pavilhão de Portugal > 19 de abril de 1906 > Abertura do XV Congresso Internacional de Medicina. "El-Rei pronunciando o seu notável discurso de saudação aos médicos estrangeiros".

Fonte:  Ilustração Portuguesa, II Série, nº 10, Lisboa, 30 de abril de 1906, pp- 0304-0305 (Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa)

 

De facto, em plena "Belle Époque", Portugal também estava na moda, ou pelo menos a capital, Lisboa,  e a medicina portuguesa gozava de prestígio aquém e além fronteiras: em 1906, é um extraordinário sucesso, do ponto de vista organizativo, social e científico, devido muito ao mérito do Miguel Bombarda (1851-1910), a realização do XV Congresso  Internacional de Medicina (Lisboa, 19–26 de abril de 1906),  que juntou a elite médica, nacional e internacional, incluindo diversas celebridades,  num total de  1762 participantes de 35 países (145 de países de língua alemã, 221 fracófonos, 124 de língua inglesa, etc.) . A língua oficial era o francês. E até o rei D. Carlos fez o discurso de boas vindas… em francês, a língua científica da época!... (A Belle Époque foi também a idade de ouro da França.)

A sessão inaugural tinha sido na Sociedade de Geografia, no magnífico Pavilhão de Portugal (o maior salão de Lisboa) e as sessões científicas decorreram no novo edifício da Escola Médico-Cirúrgica, no campo de Santana, acabado de inaugurar. 

Se a parte científica, foi um rotundo êxito, o programa social não ficou atrás, com diversas receções oficiais e privadas, muito ao gosto da Belle Époque:  (i)“garden-party” oferecido pela Casa Real na tapada das Necessidades; (ii) uma tourada em Vila Franca; (iii) um passeio a Monserrate, em Sintra; (iv) exibição de grupos folclóricos, etc.

 




Lisboa > Campo de Santana > Escola Médico-Cirúrgica > c. 1906/1910 > Foi inaugurada em 1906 por ocasião do  
XV Congresso Internacional de Medicina, que se realizou em Lisboa. Imagem do Arquivo Municipal de Lisboa. Cortesia de Wikimedia Commons.



É também nesta altura que Tomaz de Mello Breyner é nomeado director do futuro serviço de dermatologia e dermatovenerologia do Hospital do Desterro (de que foi "patrão" entre 1906 e 1933):

  • "Tomei posse do meu novo serviço como assistente na enfermaria de meretrizes no Hospital do Desterro. Como é director um ilustre mandrião, chamado Evaristo de Almeida, segue-se que eu terei todo o trabalho" (15 de Janeiro de 1906). Dois dias depois, é colocado numa "situação duvidosa de Comissão".

Decide então usar as suas influências:

  • "Fui declarar ao enfermeiro-mor Curry Cabral que exijo a colocação a que tenho direito e resolvi não voltar ao hospital enquanto não ma derem" (18 de Janeiro de 1906).
  • Passados uns dias, é "assinado por El-Rei o decreto para a minha nomeação de director de enfermaria de Santa Maria Madalena (sic) no Hospital do Desterro" (1 de Fevereiro de 1906). 
  • E acrescenta: "Estou satisfeito porque sempre desejei trabalhar num serviço da minha especialidade".
No dia 6 de Fevereiro de 1906 pode ler-se:

  • "No Diário do Governo de hoje vem o meu despacho para director de enfermaria. Foi assinado por El-Rei em 31 do mês passado e despacho ontem pelo Director Geral [da Saúde Pública] João Ferraz de Macedo. Fui substituto 12 anos e 4 meses por isso que fiz concurso em Agosto de 1893".
Entretanto, são raras as referências ao que se passa por detrás dos muros do Hospital e, em particular, no seu serviço. Uma ou outra excepção:

  • "Fui com a [prima] Maria Ficalho distribuir amêndoas às doentes da minha enfermaria" (14 de Abril de 1906);"De manhã, hospital. Assistiram muitos médicos estrangeiros ao meu serviço" (18 de Abril de 1906);
  • "De manhã fui ao Hospital apresentar-me depois da licença" (11 de Setembro de 1906);
  • "Faz hoje um ano que tomei conta do meu serviço como director da enfermaria de Santa Maria Madalena no Desterro" (9 de Fevereiro de 1907);
Tomás de Mello Breyner tinha feito a sua especialidade, em Paris, nos primeiros anos da década de 1890. Tinha em França excelentes relações, no seu meio social e profissional. E ia lá com frequência. Em 27 de Setembro de 1905, por exemplo, vemo-lo partir no Sud-Express, com vários colegas (António de Lencastre, António de Pádua, Guerreiro Novo, Sousa Machado, Carlos Ferreira...), para Paris, para participar o Congresso Internacional da Tuberculose (2-7 de Outubro de 1905). Na época a viagem levava cerca de 36 horas.

Em 1906 foi proposto Membro da Sociedade Francesa de Dermatologia e Sifiligrafia (16 de Janeiro de 1906).

Refira-se, por fim, que nesta época ainda se usava a purga, as ventosas e a sangria:

  • "À noite fui ver o Conde da Ribeira que no fim de todo o sofrimento tem agora uma pneumonia (...). Toda a vida o conheci e sempre foi muito meu amigo. Estive ao pé dele até por volta da meia noite. Pus-lhe muitas ventosas que o aliviaram" (9 de Dezembro de 1907);
  • "Seis depois depois, o Conde da Ribeira Grande (D. José), irmão do escritor João da Câmara, expirava nos braço do seu primo e amigo. Tinha 64 anos (15 de Dezembro de 1907);
  • "Às 3 1/2 fui chamado à pressa para assistir [o cunhado João da Câmara, vítima de ] um ataque de eclampsia formal e terrível. Começou então a luta. veio o Porto, o Cid., o Pocariça. À noite sangramos o doente e passámo-lo para a sala. A noite foi medonha. Que grande desgraça. O terreno é mau ainda que é valente o arcabouço do doente e coração não está em muito mau estado" (28 de Dezembro de 1907);
  • "El-Rei está com febre e amadornado. Suponho que será do estômago. Mandei-o para a cama e vou dar-lhe uma purga" (2 de Outubro de 1907).
No dia seguinte, logo ás 6 da manhã, o médico do Rei foi visitá-lo. E escreveu o seguinte no seu diário:
  • "Noite agitada. Deus queira que não venha por ali alguma macacoa grande, tanto mais que não se pode contar muito com aquele real coração que deve estar flácido" (3 de Outubro de 1907).
A saúde do Rei era um problema de Estado. Sabe-se que D. Carlos estava longe de ter uma vida regrada e que sofria de diabetes... Essa dura notícia foi dada pessoalmente pelo nosso autor à Rainha D. Amélia em 25 de Janeiro de 1906:

  • "(...) El-Rei é um diabético. Com 22 g. 560 de açúcar por litro. É uma má notícia para todos, mas entendi que devia dá-la à Rainha em primeiro lugar. Foi o Virgílio Machado que fez a análise. Bem desconfiava eu quando em menos de um mês lhe caíram uns dentes molares. Vamos ver se conseguimos, pelo menos, um regime".
Thomaz de Mrello Breyner continuou a exercer medicina, ao longo da I República, numa época onde se começa a afirmar o poder médico e a diversifiocar a especialização médica
, sobretudo a partir dos anos de 1920.  É é lembrando como um pioneiro na área da dermatologia e venerologia.

Berço da clínica, o serviço hospitalar gozava de grande autonomia nessas décadas, tendo por base o poder discricionário dos grandes clínicos da época. Escolhidos entre os mais reputados e prestigiados, eram os verdadeiros donos da organização científica, técnica e material dos serviços hospitalares.

A relação dos chefes de serviço com os restantes médicos, colaboradores internos e externos, era a de mestre e aprendiz, segundo a lógica das corporações de ofícios medievais.

Na ausência dos sofisticados meios complementares de diagnóstico e terapêutica, a competência clínica assentava ainda muito na acuidade dos sentidos e na perspicácia, adquiridas pelo treino clínico na observação repetida de casos e por uma prática de muitos anos, pessoal e intransmissível, que lhes valeu o epíteto de "barões da medicina" (******).

A Belle Époque (grosso modo, 1871-1914) foi também  a do triunfo do positivismo, da crença no progresso ilimitado, trazido pela ciência e pela técnica. Na sociedade ocidental, e no campo da medicina, uma grande euforia perpassa então à medida que se começa a aplicar com relativa eficácia (e segurança) o princípio da vacinação preventiva e da seroterapia curativa a todas as doenças causadas por micróbios. A sociedade torna-se generosa para com os investigadores biomédicos. 

Em escassas dezenas de anos, os progressos da bacteriologia tornam-se espectaculares, ao ponto de permitir a identificação dos agentes patogénicos de praticamente todas as doenças transmissíveis que até então tinham sido responsáveis por milhões e milhões de mortos, ao longo da história do homem, como a varíola, a peste, a lepra, o tifo, a cólera, a sífilis, o paludismo, a tuberculose, etc. Abriam-se,  assim, a curto, médio e longo prazo,  caminhos para o diagnóstico precoce, a prevenção, a profilaxia, o tratamento e a cura de muitas destas doenças "infectocontagiosas" ou "transmissíveis" (Quadro 1).

Mas é preciso esperar pelo fim da II Guerra Mundial para que os países europeus passem a ter verdadeiros sistemas de saúde, e os hospitais se modernizem... De acordo com uma reportagem do jornal “O Século” sobre os Hospitais Civis de Lisboa, 
 2 de outubro de 1921 (citada no artigo Margarida de Magalhães Ramalho, "Expresso, 11 de setembro de  2016", eram degradantes, se não memso miseráveis, as condições de internamento e de trabalho  dos hospitais lisboetas: 

“Enfermarias sem condições nenhumas num abandono imperdoável, sujas, com um ambiente doentio, telhados em reparação há anos sem que as obras terminem e dando assim ocasião a que chova lá dentro. (...)”

(...) "Para Mello Breyner, que era entrevistado durante a visita do repórter ao Hospital do Desterro, essa situação era inadmissível. Por essa razão lutara para melhorar as condições da enfermaria que dirigia e que acolhia as mais “desventuradas das criaturas”. A diferença é referida pelo articulista. “Vê-se ali a melhor e boa ordem. Até é notável a correcção do pessoal de enfermagem, solicito em acudir à chamada de qualquer doente; os próprios doentes sorriem à chegada do médico que lhes fala carinhosamente, como um amigo. Mostramo-nos admirados com o contraste entre esta enfermaria e as outras.” (...)

O serviço de Mello Breyner vivia muita da beneficiência privada, o nome burguês oara a caridade cristã medieval:  por  exemplo, um farmacêutico,  Teixeira Lopes, oferecia centenas de ampolas 914 de neo–salvarsan, então o único medicamento eficaz que se  conhecia   para tratamento da sífilis. As doentes, que eram pobres, não tinham dinheiro para pagar o mediciamento e o hospital não o fornecia.  

Ficas-se a saber que, "além das precárias condições de higiene, não tinha cirurgião à noite, nem farmácia, nem mesmo eletricidade"... Estamos a falar de há um século atrás...Nenhuma "pessoa de bem" aceitava, a não ser in extremis, ir para um "hospital público": em 1911, tínhamos "uma geração de ouro" (grandes médicos e cirurgiões"), mas a saúde era um privilégio de classe. Daí fazer sentido dizer-se que havia uma medicina hospitalar para os pobres e uma medicina privada para os ricos.

(Referências bibliográficas: a completar oportunamente)

Nota do autor - Este artigo é uma versão, revista e aumentada, para a série "Manuscrito(s)",  de uma outra, de 2005, "A vida de um médico na Belle Époque", publicada na antiga página do autor, "Saúde e Trabalho", disponível em:

 
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Notas do editor:


(**) Breyner, T. M. - Diário de um monárquico 1905-1907: transc. Gustavo de Melo Breyner Andresen. [Porto] : Fundação Eng. António de Almeida, 2003, 359 pp.  

(***) Vd. poste de 14 de outubro de 2015 >  63/74 - P15248: Manuscrito(s) (Luís Graça) (65): O Tempo Parece Querer Mudar... (Coleção de citações do diário de Tomás de Mello Breyner, c. 1902-1904)

(****) Vd. também Thomaz de Mello Breyner - Relatos de uma Época Do final da Monarquia ao Estado Novo, de Margarida de Magalhães Ramalho. (Lisboa, INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda,  2018, 690 pp.

(*****) Vd. Graça, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).