sábado, 26 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20277: Os nossos seres, saberes e lazeres (361): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Finda a primeira etapa na Caldeira das Sete Cidades, impunha-se a rememoração de lugares e pessoas em Ponta Delgada, antes de partir para outro cenário edénico. Não se vive impunemente num lugar pouco menos de seis meses, aqui se deixaram raízes, amizades inquebrantáveis, esvoaçam lembranças de muito boas companhias.
Este Museu Carlos Machado é uma pérola de cultura, de zelo e de bom tratamento museológico e museográfico. Que quem visite São Miguel ou pelo menos Ponta Delgada não perca a ocasião de desfrutar este museu que fala da alma açoriana e da sua universalidade. Esta Ponta Delgada é sempre um desfruto para o viandante, é-lhe familiar, não raro toca uma campainha para espantar gente com quem conviveu há mais de cinquenta anos atrás, e experimentar assim um acolhimento sem paralelo, tão típico das gentes das ilhas.
Bastava este dia e estes reencontros para abençoar o regresso sempre tão desejado a São Miguel.

Um abraço do
Mário


A minha ilha é um cofre de Atlântidas (3)

Beja Santos

Assim findou a estada na Caldeira das Sete Cidades, o viandante vai apanhar a “carreira” para Ponta Delgada, será dia de revivências, quem ali aportou nos idos de outubro de 1967 rapidamente se procurou inserir no meio, fazendo amigos, buscando antros de cultura, indagando onde se via cinema ou se fazia teatro, e algo mais. No centro da cidade, num convento, de nome Santo André, em 1876 o Dr. Carlos Machado abriu ao público o Museu Açoreano, dele vamos falar. Antes, porém, agradecemos à potência celestial este céu enevoado onde o sol tenta expor-se irradiante, sem sucesso. Uma imagem que pode suscitar leituras imprevidentes, talvez um tornado à solta, um abismo cataclísmico, uma imaginação febril pode até antever uma erupção vulcânica. Nada disso, é uma manhã costumeira, o céu vai forrar-se, ficará plúmbeo, um céu dos Açores.


O museu hoje chama-se Museu Carlos Machado, tem ainda umas reminiscências de museu escolar, como foi concebido, o Dr. Machado pelava-se pela História Natural, comprovadamente presente, desde cachalotes e baleias até insetos. O museu foi crescendo ao longo do século XX. O viandante quando aqui chegou há meio século, achou-o estimulante mas soturno, de uma museologia convencional. Hoje está tudo diferente, as temáticas bem seriadas, a museografia a funcionar em pleno, é bem agradável o diálogo entre a arte religiosa, as marcas do mar, as belas-artes, as mensagens para a etnografia regional. O viandante ainda se lembra da primeira visita, do amplo espaço concedido aos objetos do quotidiano doméstico, às peças ligadas às atividades marítimas e agrícolas. Agora entra-se no museu e esta figura impressiona, dominava a popa de um navio, é a primeira ligação a esses Açores de longos mares.



Quem aqui vier, traga tempo e abertura para o multicultural, há muitas marcas do tempo, das espécies aquáticas, de objetos africanos, houve doadores de arte sacra e etnografia conventual. Quem aqui vier, interrompa o olhar de vez em quando, passe pelo claustro, contemple os céus, ponha os pés na igreja ou suba o coro, são visões complementares.





Quem vem ao Museu Carlos Machado prepare-se para uma viagem fora de portas. Que quem aqui se encontra sente-se enquadrado pelo espaço conventual, uma bela museologia e uma competente museografia põem o visitante a conversar em vários tempos, espaços, entre a ciência e as belas-artes. E há muito desvelo, repare-se como tudo está restaurado. Ao tempo em que por aqui andou o viandante lhe foi recordado que tinha que ir ver a secção de Arte Sacra a um outro espaço, a igreja do Colégio dos Jesuítas. Pena era que o Núcleo de Santa Bárbara, bem pertinho do Museu Carlos Machado não estava facultado ao público, montava-se uma grande retrospetiva do maior escultor açoriano do seu tempo, Canto da Maia. O viandante nem pestanejou, voltou a subir e a descer os diferentes andares deste Convento de Santo André, a mirar e a remirar. É um grande museu, oxalá que quem visite a cidade esteja informado deste potencial da cultura açoriana, sempre a falar português.




É entre subidas e descidas, entremeando pássaros e peixes, alfaias religiosas e armários de entomologista, que o viandante se depara com este surpreendente quadro azulejar da caldeira das Sete Cidades, fica-se mesmo a pensar que estaria exposta num ponto alto, talvez no Pico do Rei, que foi restaurado, e está num lugar merecido, protegido das inclemências do tempo.




Aqui se interrompe a viagem, ainda há umas secções para visitar, mas deixa-se a recordação de um parlatório, as monjas podiam conviver com gente de fora, mas havia o limite da grade, se alguém visitava e trazia comes e bebes, estes eram inspecionados noutro local. Aqui era só para conversar, os profanos viam, ouviam, sem poder almejar a vida de orações, de trabalhos, de penitência. E por aqui ficamos, repetindo que há muito para ver, desde arte sacra a brinquedos, espécies em pedra, uma igreja gloriosa, temos aqui um modo de discernir a ciência e a cultura metodicamente zeladas no universo açoriano.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20257: Os nossos seres, saberes e lazeres (360): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962


Angola > c. 1962/64 > Uma GMC destruída por uma mina A/C. Foto de Ângelo Ribau Teixeira, " "Retalhos das memórias de um ex-combatente" (edição de autor, 2009), p. 52. Com a devida vénia...

Do preâmbulo pp. 10/11): 

"As minas eram um terror! A estrada por onde teríamos de passar quando íamos ao abastecimento em São Salvador do Congo, numa zona de descida para o rio Luvo, era um local de terra barrenta que fazia derrapar as viaturas. Tinha sido atapetada com grainha de cobre – estávamos perto das minas do Mavoio – e esses restos do cobre evitavam a derrapagem das viaturas. Só que veio a guerra, e o inimigo aproveitando essa condição montava aí minas, onde era impossível o detector localizá-las. Ia sempre a cantar, como nós dizíamos. A única solução era a utilização de ferros afiados numa ponta com os quais picávamos a estrada.

"Para nós foi o período mais difícil. Estávamos preparados, física e psicologicamente para sofrer emboscadas e reagir a elas, para montar emboscadas e reagir à reacção do inimigo (IN). Mas como reagir ao rebentamento de uma mina anti-carro, não sabíamos! Se ao menos o IN fizesse fogo nós reagiríamos. Mas não, as minas eram armadas e colocadas durante a noite e bem dissimuladas. Que raiva…

Foi especialmente nessa zona que alguns companheiros nossos perderam a vida POR ANGOLA.
Só mais tarde descobrimos uma picada - caminho de pé posto - que passava perto desta zona e então compreendemos o que se estava a passar. Essa picada era passagem de reabastecimento do IN que, vindo do Congo, se dirigia para a região dos Dembos, aproveitando a sua passagem para nos deixarem tristes 'recordações' " (...)
.


1. Da leitura, rápida, do livro que me chegou às mãos,  em formato pdf, esta semana, da autoria do nosso camarada Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012),  ex-2º srgt mil, CCE 306 / BCAÇ 357 (Angola, 1962/64), "Retalhos das memórias de um ex-combatente" (edição de autor, 2009, 167 pp.) (*), chamou-me a atenção o capítulo 11, "Mina na Companhia 305" (pp. 62-64)...

Nesse trecho, pungente, são referidas as circunstâncias da morte do comandante da Companhia de Caçadores Especiais 305, vítima de mina A/C, no itinerário Buela - Pangala. A CCE 305 era  uma das subunidades de quadrícula do BCAÇ 357 (Angola, 1962/64).

O autor não identifica o oficial, mas sabemos que se tratava do cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes (Porto, 1927 - Buela, Pangala, Angola, 1962), um dos 47 oficiais da Escola do Exército / Academia Militar que morreram em combate, na guerra colonial (**).

Há uma gralha na data; não foi num domingo dia 10 de julho do ano de 1963, mas sim em 1962, numa terça feira,  dia 10 de julho.

O livro tem uma dedicatória tocante aos pais e esposa do autor, mas também "àqueles que lutaram mas, por eles, nem os sinos dobraram. Tudo à Pátria deram, e dela nada receberam, Por sua alma" (p. 1),

Também no prefácio escrito por antigo companheiro de armas, J. Eduardo Tenderio, lê-se_ ""Os que, sem serem militares de carreira, sem preparação específica, arrancados das suas vidas calmas para serem lançados na voragem de uma guerra – a guerra do Ultramar de tão triste memória – onde generosamente deram o seu melhor a despeito das muitas dúvidas que os assaltavam, como eu, certamente encontrarão na leitura destes escritos algum lenitivo."

O livro publicado já no acaso da vida do autor (, em 2009, presume-se), terá sido escrito em resposta às perguntas, persistentes e pertinentes, da sua neta Ana Rita, de 10 anos, como se percebe do preâmbulo (pp. 10/11):

"Olha, Ana Rita, és muito nova para te contar tudo o que lá se passava naquela época, mas eu prometo-te que vou escrever tudo, para tu, quando fores grande, leres e perceberes o que os 'rapazes' da minha idade lá passaram."...

E é do "terror das minas" que o autor guarda recordações mais dolorosas, como se pode ler no excerto a seguir reproduzimos, como nota de leitura (***)


Ângelo Ribau Teixeira, 2º srgt mil,
CCE 306 / BCAÇ  357 (Angola, 1962/64).
Nasceu em 1937, na Gafanha da Nazaré, 
Ílyavo, em 137,
 e faleceu em 2012)
"Retalhos das memórias de um ex-combatente" > 11. Mina na Companhia 305, pp. 62-64 

[excertos, com a devida vénia... e em homenagem ao autor, Ãngelo Ribau Teixeira,  nosso camarada,  já falecido, bem como ao infortunado cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes]


(...) Grande “Makas”

De repente, ouço um estrondo, muito ao longe. Parecia um trovão. “Que diabo é isto?!” Olhei em volta. Notava-se, ao longe, para os lados da Buela, uma coluna de fumo. Não era queimada! O fumo da queima do capim é cinzento, este era escuro. Era produto da queima de combustível de uma viatura. “Meu Deus - interroguei-me - outra mina?!”

Desci rapidamente do Posto de Observação e dirigi-me ao Comando, informando o Capitão do que tinha ouvido e visto.

- Deixa lá, não há-de ser nada! – respondeu ele.

Foi fora da nossa zona. Só pode ter sido alguma viatura na Companhia 305, que tinha o acampamento não muito distante do nosso.

- O que for,  soará – foi a sua resposta. E continuou sentado onde estava.

Desiludido com tal atitude, dirigi-me à nossa caserna, contando o sucedido.

- Aqui dentro não ouvimos nada – disseram os que lá estavam.

- Mas houve “maka” – afirmei com veemência. 
–  Vão lá acima ao Posto de Observação e ainda verão os restos do fumo da explosão.

Alguns assim fizeram e, ao regressarem, conversavam entre eles:

- Houve merda, pela certa. O tipo de fumo é igual ao da explosão que houve com o nosso pelotão.

O Sargento de Transmissões dirigiu-se logo ao Posto de Rádio para fazer uma “exploração” e ver se havia alguma comunicação. Pouco depois o Sargento Tendeiro informou-nos de que possivelmente teria havido um problemazeco qualquer mas que a recepção não estava nas melhores condições. Só quando chegasse a hora das comunicações com o Batalhão, tudo ficaria esclarecido.

Estranhei a atitude do Tendeiro que, rapaz de poucos fumos, se tenha sentado à mesa, tirado um cigarro que acendeu, e puxando grandes baforadas que expelia para o ar, ficava a olhá-las até desaparecerem contra o zinco quente do telhado.

Olhei-o de frente. Ao notar que estava a ser observado, olhou-me e encolheu os ombros. A minha resposta foi também um encolher de ombros.

Perto da noite veio a informação do Batalhão - havia um morto e um ferido. O morto era o Comandante da Companhia 305, o ferido tinha sido o Cabo Condutor, a quem no acampamento da Buela o médico, à falta de melhor alfaia e para evitar a gangrena, lhe tinha amputado o braço com um serrote de cortar madeira! Um alferes e um soldado sofreram ferimentos menos graves.

Ainda hoje recordo ter recebido do meu irmão mais velho (à espera da mobilização no Colégio Militar, no qual dava aulas), um aerograma perguntando que raio de guerra era esta, em que um Capitão morre com uma mina anti-carro! O Capitão tinha também dado aulas no Colégio Militar, onde era muito estimado! (****)

O meu irmão era de Artilharia e estava longe de imaginar o sítio para onde mais tarde o iriam mandar: para o coração dos Dembos!

Sobre este caso, tão chato, só agora o Tendeiro se abriu. Não podia revelá-lo antes, por ser uma mensagem confidencial. Só o Comandante do Destacamento podia ter conhecimento dela. Disse-nos, então, que quando sintonizou o rádio na frequência usada pelos pelotões em operação, ouviu o rádio da patrulha chamando aflitivamente para a Buela. Uma viatura tinha pisado uma mina anti-carro. Dos quatro ocupantes um tinha tido morte imediata, outro, o condutor do veículo, tinha o braço direito meio decepado e os outros dois estavam só ligeiramente feridos. Pediam duas macas com urgência, pois o condutor estava a esvair-se em sangue, embora o maqueiro já lhe tivesse aplicado um garrote!

- Que raio! Será que não conseguimos pôr a vista em cima dos gajos?! Serão invisíveis? Nem com todos os cuidados conseguimos evitar as baixas no nosso Batalhão! Merda p‟ra isto!

A nossa Companhia já tinha conseguido eliminar um inimigo. E da nossa parte já quatro haviam perdido a vida nesta luta do gato e do rato!

“Tic”...
O cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes
(1927-1962). Foto: cortesia de
Morais da Silva (2019)



Em Cuimba encontrei companheiros da 305. Falei com o Sousa, tentando saber mais pormenores sobre a mina que eles tinham accionado. Contou-me tudo o que eu já sabia, como é que actuava uma mina. Mas contou-me mais! A esposa do Capitão estava na Buela quando se deu o acidente. Julguei que em zona de guerra isso fosse proibido! Mas afinal não era como eu pensava.

Foi o Sousa que deitou os restos mortais do Capitão na cama – eram mesmo restos – compondo-os o melhor que pode. Pôs tudo em ordem e saiu.

A esposa queria ver o marido! Deixou-a entrar. Esta ficou a olhar, imóvel. O rosto do Capitão estava intacto - este tipo de minas actua de baixo para cima. A senhora nem uma palavra balbuciou. Que pensamentos eram os seus naquela hora? Ninguém sabia!

Os presentes retiraram-se em sinal de respeito.

Pouco depois ouviu-se um “tic”. Correram para trás e encontraram a senhora com a pistola encostada à cabeça. A sorte (?!) dela foi a arma não ter balas, tiradas propositadamente pelo Sousa antes de sair do quarto. Pensou, ou foi um anjo que lhe disse, que a pistola do Capitão, mesmo carregada, já não serviria para nada.

Aquela mulher, perante a impotência de acabar com o seu sofrimento, sentou-se numa cadeira e chorou copiosamente. Perante a surpresa deste infortúnio, não fazemos uma pequena ideia do quanto sofria aquela alma!

Lágrimas que o Império tece…
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Notas do editor LG:

(*) Vd.poste de 24 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20273: O Spínola que eu conheci (34): um testemunho, de um ex-combatente, Ângelo Ribau Teixeira (Angola, 1962/64), que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968) (Morais da Silva, cor art ref, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, 1970/72)

(**) Vd poste de 26 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19441: In Memoriam: os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte X: cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes (Porto, 1927 - Buela, Pangala, Angola, 1962)

(***) Salvo, seria o Manuel Ribau Teixeira, meu colega da Universidade NOVA de Lisboa, mas  que eu não conheço pessoalmente:

(i) doutorado em Física pela Universidade de Lisboa em 1984; (ii) como investigador foi responsável pelo Grupo de Investigação de Desenvolvimento e Aplicações de Lasers, de 1984 a 1996, no Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial; (iii) professor convidado do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, de 1985 a 2000,  responsável pelas disciplinas de Óptica e Optoelectrónica, da Licenciatura em Engenharia Física desta Universidade; (iv) aposentado.

Fonte: Gazeta de Física vol 34  nºs 3/4 , julho de 2011, com a devida vénia...

Último poste da série de 25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

********************

A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

Poste anterior de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  A famosa "torre de vigia" que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VII


[ Foto acima: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]





Estou a viver os primeiros dias em Fulacunda e os dias irão decorrer de acordo com a normalidade corresponde às razões da nossa mobilização.

Oficiais e sargentos partilham uma messe conjunta e periodicamente faziam-se umas paródias de confraternização. Cantava-se, improvisavam-se instrumentos musicais e o "Pitchas", como era alcunhado o Zé Luís, arranhava na guitarra. O Comandante acompanhava ao xilofone e eu tinha uma bateria improvisada com os invólucros das munições do obus 10,50cm, que tinham um som estridente e ao mesmo tempo suave. Tocava com umas "baquetas" que um soldado tinha feito de forma artesanal. Havia dois ou três dos presentes que emprestavam a voz e lá íamos comendo uns camarões e bebendo umas "cervejolas".

Periodicamente, o nosso 1º Sargento trazia-nos de Bissau uns camarões que constituía sempre uma noite especial.

Com os meus soldados do 22º PEL 
ART (Pelotão de Artilharia) e a colaboração sempre imprescindível dos meus camaradas e amigos, os furriéis Jacinto e Branco, íamos construindo os espaldões para os três obuses 10,50cm que tinham sido posicionados junto à pista de aviação.

Algumas árvores foram abatidas para permitir a redução do chamado "ângulo de sítio",  sempre que se fizesse fogo com os obuses e, mais importante, podermos fazer tiro direto.



Embora estes trabalhos 
tenham sido levados a efeito pelos soldados da artilharia, não devo esquecer aqui a ajuda de soldados "Boinas Negras” [, CCAV 2482, Tite e Fulacunda, 1968/70], do qual o único que mais me marcou foi um rapaz chamado Lérias. Corpulento de físico, mas com uma disponibilidade para ajuda e uma alma grande como se ajudasse os amigos da paróquia.

Sempre atento, o Comandante [, cap cav Henrique de Carvalho Maia,] indagava-me se tudo estava bem e se precisava de alguma coisa.

Recordo que aos fins-de-semana havia futebolada. Por vezes a disputa era acesa e a luta aquecia. Era o reflexo da adrenalina que vinha ao de cima e que era necessário controlar q.b.


Um dia sou convidado para jogar. Recusei, porque não era dotado para aquela prática, ao contrário do Jacinto que era um craque e por isso sempre disputado para a equipa A, ou B. Havia também um rapazito africano, o Seco, nome de um jovem de Fulacunda que trabalhava na messe conjunta dos Oficiais e Sargentos, servindo à mesa.

De vez em quando éramos alvo de umas rajadas de "costureirinha" [ A irritante Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha", de origem soviética]. Embora o aquartelamento fosse defendido segundo o método de "postos avançados" e com a artilharia sempre a postos, normalmente não se respondia ao fogo IN, por ser de fraca in
tensidade. 


Se bem me lembro, enquanto eu estive em Fulacunda, teremos respondido ao fogo uma ou duas vezes. Da que tenho mais presente, mas cuja data não menciono aqui, deu-se ao fim da tarde de um determinado dia, com morteirada forte.
Perto da hora do jantar estamos na messe.  Com o fogo intenso, o Comandante sai para subir à "torre de vigia" para tentar referenciar a origem do fogo e por analogia a posição do IN. Sigo o Capitão e,  na subida à torre pela escada exterior, passa-nos um rocket, que de raspão bate na parede da torre e não explode. É aí que sinto ficar ferido muito ligeiramente no braço esquerdo.

- Vem do lado da pista! -  grita o Comandante.

Desço da torre de vigia com a intenção de me deslocar rapidamente para os obuses.  Um dos alferes dá-me a chave de um dos jipes e vou acelerando para junto da pista onde estavam os 10,50cm.

Junto à casa do antigo Chefe de Posto, uma morteirada cai a uns 80 metros à frente do jipe. Um clarão que não impediu que o jipe se desviasse do trajeto. Sigo em frente e, já junto aos obuses, dou instrução de tiro:

- Vamos apontar para a orla da mata, rápido, rapazes, vamos lá mostrar como se faz fogo.

Os três obuses continuam a fazer fogo por cima da pista para a orla da mata. O IN, entretanto, tinha cessado o fogo.

Passados uns minutos, tudo fica em silêncio. A tensão mantém-se, o alerta é total.

Já não tenho presente o detalhe da situação, mas lembro-me de o Comandante ter chegado junto dos obuses um pouco "exaltado", por não estarmos a fazer fogo para o local que ele tinha identificado quando fez a observação da torre de vigia. Teríamos feito tiro na direção correta, mas para a orla da mata, estando o IN, entre a orla e a pista de aviação. O tiro passou por cima.

Ainda estamos nesta fase de tensão e eis que chega junto dos obuses o alferes que me tinha dado a chave do jipe. Ele estava confuso e confuso eu fiquei quando me diz que a chave que eu trouxe não era do jipe que eu tinha 
conduzido. Que teimosia se estabeleceu... Fomos experimentar.

Na verdade, a chave que eu tinha não entrava na ignição do jipe que eu tinha trazido. Experimentou-se com a chave que o alferes trazia na algibeira e foi uma "palhinha",  entrou na ignição e o jipe começou a trabalhar que nem uma máquina de costura.

Curiosidades destes aspetos da guerra. Afinal, não deve haver milagres, mas na ânsia de pôr aquele jipe a trabalhar devia ter enfiado a chave com mais pressão que a normal. Suavemente não entrava.

Mas..., ainda estávamos no rescaldo do ataque IN.

Pela manhã cedo do dia seguinte, um pelotão sai do aquartelamento e vai em reconhecimento ao local de onde se supunha ter vindo o ataque no dia anterior. Solicito autorização ao Comandante para acompanhar o pelotão de reconhecimento, que me foi concedida.

Após alguns minutos de marcha com a cautela que as condições recomendavam, lá encontrámos, em frente á pista de aviação, os vestígios do grupo terrorista atacante de véspera. Várias "camas" no chão sobre o capim vergado, com invólucros de munições espalhadas e vestígios diversos de que houve ali gente.

Passámos pela orla da mata e verificou-se a zona de fuga do IN.

De volta ao quartel, passámos pela pequena capela existente no aquartelamento onde os crentes podiam fazer as suas orações e assistir à realização da missa.

Um grupo de soldados está junto à capela,  o que revelou que algo se passava aos que se aproximavam. A Capela tinha sido construída sem a parede frontal e o telhado era de zinco. Na parede de topo da Capela, havia um nicho, estando nela colocada uma imagem de Nossa Senhora. Mas qual o espanto e a justificação de tantos à volta e dentro da capela, naquele preciso momento?

É que a capela tinha sido atingida com mais do que uma morteirada, a avaliar pela picagem das paredes e do estado das chapas de zinco que constituíam a cobertura. Perante tais morteiradas, tudo pareceria normal, não fosse o facto de o nicho e a imagem de Nossa Senhora estarem intactas. Isto é, sem o mais pequeno vestígio de estilhaço. Na prática, o telhado de zinco quase tinha ficado desfeito, as três paredes de suporte da Capela todas picadas pelos estilhaços da explosão das morteiradas.

A perplexidade de todos era, sem dúvida,  a circunstância da imagem de Nossa Senhora e o nicho onde esta se encontrava estarem incólumes.

Milagre, clamavam alguns..., mas, a vida é o que é e a crença pertence a cada um. O respeito por situações não compreensíveis ou inexplicáveis à luz da razoabilidade é o mínimo que se deve ter.

Os "Boina Negras" tinham uma relação fácil, amistosa e recíproca com grande parte da população de Fulacunda. Havia muitas crianças que, no tempo de "inverno", corriam contra o vento com uns panos passados pelos ombros acompanhando os braços, parecendo "Ícaros" a pretenderem levantar voo. 


No período em que eu estive em Fulacunda estes meninos não tinham escola. Porém, pouco tempo depois da minha saída passaram a ter aulas com a chegada de professoras primárias, naturais da Província. 

(Continua)
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Nota do editor:


ÚLtimo poste da série > 20 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20273: O Spínola que eu conheci (34): um testemunho, de um ex-combatente, Ângelo Ribau Teixeira (Angola, 1962/64), que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968) (Morais da Silva, cor art ref, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, 1970/72)


Capa do livro de Ângelo Ribau Teixeira, natural da Gafanha da Nazaré , Ílhavo,onde nasceu 1937,  fur mil op esp, CCE 306 / BCAÇ 357 (Angola, 1962/64), "Retalhos das memórias de um ex-combatente", presumivelmente edição de autor (2009, 167 pp.). 
Cortesia de Morais da Silva




1. Mensagem, com data de ontem,  do cor art ref António Carlos Morais da Silva , instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972, e que também conheceu o TO de Angola:


Assunto - Por uma Guiné Melhor

Bom dia

Tenho estado a ler o que este 2º sargento miliciano vivenciou em Angola nos primeiros tempos da guerra (1962) e encontrei este pedaço de prosa [, que a seguir se transcreve[

É mais um testemunho, de 1962,  que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968). Há muito que ele sabia que respeitar as diferentes etnias e dar espaço à colaboração da administração com as autoridades tradicionais era o caminho fundamental para reduzir/anular o apoio da POP à guerrilha.

Interessante para o blogue?

Abraço

Morais Silva


(...) 10. HOMEM DO MONÓCULO

O homem de que vos falo chama-se António Spínola. Era, salvo o erro, Comandante do Sector em São Salvador, com o posto de tenente-coronel. Pessoa reservada, parecia estar sempre com cara de mau. Amigo dos seus soldados como poucos. Dava o exemplo seguindo sempre na frente das colunas, quer fosse motorizadas ou apeadas!

Uma vez tive a sorte de me cruzar com ele. Ele soube do acidente que tinha vitimado os nossos companheiros. Através das comunicações que havia entre as Unidades, sabia que nesse dia iríamos deslocar-nos a São Salvador. Esperava-nos à entrada da cidade, passeando de um lado para o outro, farda amarela vestida, a boina preta de cavalaria com as duas espadas cruzadas, o pingalim batendo na perneira das calças, e o indispensável monóculo. Parecia nervoso. A minha viatura era a primeira. Mandou-me parar. Parei e desci do Unimog, fazendo continência, que ele ignorou.

- Qual é o teu posto?

- Sargento miliciano!

- Quem é o Comandante deste destacamento?

- O Alferes Miliciano Miranda. Vem na segunda viatura.

Nesta altura já o Alferes se encaminhava para nós. Fez continência e perguntou ao tenente-coronel se havia problema.

- Não há problema nenhum mas sei que a vossa Companhia [, CCE 306,]  teve há dias uma chatice e queria dizer-vos que todos lamentamos o sucedido. Tem de ter paciência e fazer como nós temos feito. Só tendo as populações do nosso lado conseguirá vencer. Só a "psico" nos ajudará. Não é com tiros que ganharemos esta guerra. Informem os vossos soldados que devem respeitar os autóctones.

Soubemos, por informação dos próprios, que militares da Unidade de Spínola tinham sido castigados por faltarem ao respeito aos pretos, como eles diziam.

- E qual foi o castigo que ele vos deu? – perguntei, curioso.

- Nem imaginas! Logo que havia uma operação, e durante uma série delas, eram chamados os “voluntários à força”. E lá tínhamos de ir, mesmo que não fosse a vez do nosso pelotão. Era um grande gozo para os que ficavam no acampamento." (...)

[Excerto do livro "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira, edição de autor, 2009, p. 60. O livro está reproduzido na página do AEJE - Agrupamento de Escolas José Estêvão, Aveiro]

2. Comentário do editor Luís Graça:

Caro amigo e caramada Morais da Silva:

Claro que tem todo o interesse para os leitores do nosso blogue. Vou-lhe pedir que me mande, se possível, a "ficha técnica" do livro: editora, local, ano, nº páginas, etc. Se é que se trata de um livro...Pode ser uma brochura, um documento mimeografado...

Não encontro, na PorBase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, referência ao seu autor, Ângelo Ribau Teixeira, mas há académicos com este apelido, Ribau Teixeira... Será que é uma edição de autor ? Se sim, ele não terá feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (, costumam ser as editoras ou as tipografias a tratar desta tarefa)...

Inclino-me mais para um documento policopiado... que formal e tecnicamente não é um livro, mas de qualquer modo é "literatura cinzenta" , relevante para a história da guerra de África, como os textos que publicamos no blogue... Ou as nossas Histórias de Unidade.

Encontrei no portal UTW - Ultramar TerraWeb uma referência ao autor e ao batalhão, com transcrição de excertos... Mas pode ser de outra fonte (que não é citada).

Quanto ao nosso general Spínola, também meu comandante-chefe, vi-o umas três vezes, a última no início do ano novo de 1971, eu já com quase vinte meses de comissão... Estava enfiado num buraco, com um grupo de combate. a defender a ponte do Rio Udunduma, na estrada Xime-Bambadinca. Veio lá desejar-nos bom ano e saber se precisávamos de alguma coisa... Veio de heli, a nova estrada Xime-Bambadinca ainda estava em construção, obra da TECNIL.  Eu estava com o cabelo e a barba já grandes...Não me disse nada, mas um dos oficiais superiores que o acompanhavam, penso que um coronel,  fez-me o reparo...e uma discreta sugestão para ir ao barbeiro quando regressasse a Bambadinca... Bons tempos, em que éramos todos mais novos, eu ia fazer dentro de dias, a 29 de janeiro,  os 24 anos...e dias depois desta visita, caí/caímos, uma viatura GMC com 2 secções, da CCAÇ 12, numa mina anticarro no reordenamento de Nhabijões, ali perto, a 13 de janeiro de 1971...

Um alfabravo, Luís

3. Nota sobre o autor,  Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012)

 O Morais da Silva mandou-me, em formato pdf, uma cópia do livro ou documento em questão: na ficha técnica, há apenas referência ao título "Retalhos das memórias de um ex-combatente" e ao autor: Ângelo Ribau Teixeira, de que se publica, a seguir,  uma foto e uma nota curricular.

O autor, nascido em 1937, na Gafanha da Nazaré, Ílhavo (e, infelizmente,  já falecido em 2012),   foi fur mil op esp., pertenceu à CCE 306, um das companhias de quadrícula do BCAÇ 357 (Norte de Angola, 12/5/1962 - 22/6/1964). Não há menção a editora ou tipografia nem ao ano de edição. O livro ou documento (ou melhor o ficheiro em pdf) tem 167 páginas numeradas, e ilustradas com várias fotos.

Pormenor biográfico  curioso mas revelador do tremendo sacrifício desta 1º geração de combatentes que foi chamado para ir para Angola, "rapidamente e em força": o autor foi para a tropa em 1958 e passou à peluda, seis anos depois, em 1964, a escassos meses de fazer 27 anos... Pela leitura, na vertical, que fiz ao livro, fico com a ideia que o Ângelo Ribau Teixeira, oriundo do meio rural, terá estudado num seminário diocesano ou de algum instituto religioso... Percebe-se sobretudo pelos seus diálogos com o capelão, Arnaldo, e pelas citações bíblicas. Por outro lado, quando partiu para Angola, no T/T Quanza, era já casado, deixava a mulher com um filho na mão e outro na barriga.

Há um índice com mais de 30 pequenos capítulos, alguns muito pequenos. O que acima reproduzimos é o "10. O homem do monóculo", e corresponde à página 60.

Um dos seus companheiros de armas, do seu pelotão (o 3º), J. Eduardo Tendeiro, assinou um curto prefácio (p. 6). Local e data: Covilhão, outubro de 2009. Presume-se que o livro seja uma edição de autor, e tenha saído nesse ano,  2009.





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Guiné 61/74 - P20272: In Memoriam (353): Júlio Herbert (Bissau, 1954 - Praia, 2019), diplomata e político, irmão do nosso grã-tabanqueiro Nelson Herbert (Zeca Macedo, ex-2º ten fuz esp. DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74)


Júlio Herbert (Bissau, 1954 - Praia, 2019). 
Fonte: Cortesia de A Semana, Praia, Cabo Verde


1. O nosso camarada da Tabanca da Diáspora Lusófona,  Zeca Macedo [ex-2º tenente fuzileiro especial, DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74), nascido na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951, e a viver nos Estados Unidos, onde é advogado, sendo membro da nossa Tabanca Grande desde 13/2/2008],  deu-nos a triste notícia da morte do irmão do nosso grã-tabanqueiro, Nelson Herbert.  

Trata-se de Júlio Herbert, que exercia funções no atual Governo da República de Cabo Verde, como ministro adjunto do  primeiro-ministro para a Integração Regional. Morreu, no passado dia 21, de morte súbita (, enfarte agudo do miocárdio), no seu gabinete, na Praia. Ia completar 65 anos no próximo dia 16 de novembro. Nasceu em Bissau em 1954, tal como o seu irmão Nelson Herbert.

Era formado em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco, de Brasília, e em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Era embaixador de carreira,  tendo desempenhado, entre outras funções, as de cônsul-geral adjunto de Cabo Verde em Boston, Estados Unidos da América, assessor político-diplomático da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), conselheiro do Presidente da República e conselheiro político e diplomático do primeiro-ministro.

Foi decretado dois dias de luto nacional em Cabo Verde. As cerimónias fúnebres decorretam esta quinta-feira, 24 de outubro,  no Palácio do Governo, na Várzea, seguidas da missa de corpo presente na Paróquia Nossa Senhora da Graça, terminando depois no cemitério da Várzea.

À família enlutada, e em particular ao nosso amigo Nelson Herbert, a Tabanca Grande apresenta a manifestação do seu pesar. Um alfabravo também para o Zeca Macedo, que nos mandou os elementos com que elaboramos a notícia, dada por A Semana, "on line"

Recorde.se que o o Nelson Herbert Lopes é jornalista, nascido em Bissau, filho da antiga glória do futebol cabo-verdiano e guineense, Armando Duarte Lopes, o "Búfalo Bill, vivendo nos EUA, onde trabalha ou trabalhou na VOA - Voice of America, e tendo  mais de meia centena de referências no nosso blogue. [Nelson Herbert, toto à esquerda]

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Nota do editor:

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20271: Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXXI: 1984/85: um regresso, quinze anos depois: (i) a primeira viagem de saudade


Foto nº   16 > Guiné-Bissau > O Virgílio Teixeira junto à instalação da fábrica descascar arroz,  desativada. Bissau, 5Jan85


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Bissau > 3 de janeiro de 1985 >  No Pilão, na porta da casa do nosso taxista fula, de nome Mamadu.


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  3 de janeiro de 1985 >A nova ponte acabada então de inaugurar, em Bafatá, com ligação a Fá Mandinga.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Esta era a picada entre Nova Lamego (hoje Gabu) e o aquartelamento de Cabuca, a uns 20 a 30 km da sede do comando do antigo sector L3.

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Em Cabuca recolhendo terra para amostras de produtividade e rendimento.



Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Aqui estamos numa lagoa, que faz fronteira com a Guiné-Conacri.


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > – Pormenor de um lago lodoso de águas paradas, e o aviso no placard da existência da mosca Tsé-Tsé. O nome escrito diz ONCORSECOSE (a doença mais conhecida por "cegueira do rio").

Foto nº 11 >  Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 > Vista geral complexo agroindustrial, inacabado e abandonado. Tratava-se de uma fábrica de descasque de arroz.


Foto nº 12 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 > Outra vista das instalações fabris que nunca chegaram a funcionar.


Foto nº 13 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Em primeiro plano, os porcos que se passeiam livremente pelo complexo industrial abandonado.



Foto nº 14 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Vista geral do complexo, Bissau, 5Jan85.


Foto nº 15 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Interior do complexo inacabado, Bissau, 5Jan85

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem, de 9 do corrente, do nosso amigo e camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde; tem já perto de 140 referências no nosso blogue- (*)


Luís, como estás? 

Segue o texto (e as fotos) para o tema T999: foi enviado por mail, em Junho de 1998, já passou mais de um ano. 

Não sei o que se passou, mas devo ter enviado em conjunto, no Wetransfer com prazo de 8 dias, e por isso perdeu-se. 

O interesse é mostrar no que se passou a seguir à Independência, aquele território tornou-se não no 3º mundo, mas uma parcela única do 4º mundo. Naquela altura a Guiné estava classificada como ‘o paíos mais pobre do planeta’… Pobre povo que tanto sofreu com esta mudança! 

Este poste trata de um assunto muito particular da minha vida, e agora estive e reler tudo, e achei que vale a pena tentar, e ver o feedback desta história. Não toquei em nada, foi escrito naquela data, era assim que pensava, e hoje igual. 

Tenho andado agora muito ocupado nas minhas rotas pelo Porto, já vou em mais de 7000 fotos, e eu que pensava conhecer o Porto, e afinal só conhecia as pedras da estrada, o paralelo, o alcatrão, a terra batida, e depois os restaurantes, hotéis e afins. 

Ontem fiz a minha mais dolorosa ronda. Para quem sabe, desci ‘as escadas do Codaçal’ e subi ‘as escadas dos Guindais’. São cerca de 400 escadas para baixo e para cima, mas depressa recuperei desta fadiga. Foram 158 fotos, coisas inéditas para mim, nunca lá tinha ido! 

Um dia talvez venha a publicar algumas, que interessam mais às gentes do Porto e do Norte. 

Quanto ao nosso Tema de hoje, esta descrição, apesar de longa, são 13 páginas, acho eu, está longe do todo, pois esta aventura já está escrita nas minhas memórias há muitos anos, nem me passava pela cabeça este Blogue, isto daria para mais 3 a 4 vezes, e isso, não sei se virei a contar na totalidade. 

O final do projecto não foi muito feliz, e contém tanta coisa pessoal e que tenho de preservar. Acho que, no final de tudo, quase desgracei a minha vida, e já se passaram 35 longos anos, desde que iniciei esta loucura. 

Em todo o caso, é parte da vida de um camarada da Guiné, e julgo que tem interesse para quem quer perceber o curso que seguiu aquele novo País de língua portuguesa. 

Isto como tem muito texto e fotografias, vai ter de se dividir em 3 postes ou em 3 partes, caso consideres que é um assunto de interesse para a malta. 

Um abraço, 

Virgilio Teixeira 

Em, 2019 –10- 09


2. Álbum fotográfico > Guiné 1967/69 

TEMA 999 – O REGRESSO À GUINÉ 15 ANOS DEPOIS

ANOS 1984 E 1985 : UMA VIAGEM DE SAUDADE ; DUAS VIAGENS DE NEGÓCIOS


I - Anotações e Introdução ao presente Tema

Este tema tem tanto de louco como apaixonante,

Não vou entrar em pormenores, porque para qualquer um que tivesse a ousadia de querer ler tudo o que já escrevi sobre o tema, teria aqui tanto para ler que até daria sono ao nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Já escrevi no meu livro ‘Não editado’ todos os dramas pessoais e familiares que esta saga me trouxe, nunca saberei se valeu a pena, abandonar a família, correr riscos, desbaratar dinheiro que viria a fazer falta, com resultados nulos.

Vou dividir isto em 3 partes que correspondem a 3 viagens, agora apenas escrevo sobre a primeira delas, aquela que mais me marcou, as restantes ficam para mais tarde…:

I Parte – A viagem de saudade à Guiné

II Parte – A viagem de negócios à Guiné e Senegal

III Parte – A viagem de arranque do projecto na Guiné


Parte 1 – A primeira viagem de saudade à Guiné


Corria o ano de 1984, e um dia qualquer, estava eu a ficar, podemos chamar com uma loucura incontrolável, tinha pesadelos diários com a Guiné, acordava todo suado, eram noites seguidas, anos a fio com estes sonhos, o meu regresso à Guiné, e o mais estranho é que até nos sonhos aparecia com a minha família toda, a caminho de lá. Incríveis.  estes sonhos, e porque não aguentava mais, resolvi que tinha de matar os fantasmas.

Vou ao Consulado da Guiné-Bissau no Porto, falo com o major Valentim Loureiro, era o Cônsul da Guiné em Portugal, na altura também era o tutor dos filhos do 'Nino' Vieira, que estudavam aqui no Porto. O Valentim era também já conhecido, ele e o meu pai,  eram já camaradas, estiveram a trabalhar juntos no RI 6 do Porto.

Nunca meti o meu pai nisto, conversei longamente com a minha mulher, expliquei que eu tinha de fazer isto sozinho, aliás ela também nunca iria, tem horror a África. Tinha eu então 41 anos feitos, a caminho dos 42, e a minha mulher em casa com 37 anos, e os meus três filhos, a mais velha com 13 anos, o rapaz seguinte com 12 e a mais nova com 10.

Abandonar a mulher e filhos, quando vivíamos todos felizes, como sempre até hoje, era uma obra do diabo, mas fui fazendo os preparativos para esta aventura de loucos, digo eu.  Passamos aqueles meses anteriores bastante tensos com esta perspectiva, pois nunca nos havíamos separado antes, eu amava a minha mulher e os meus filhos, eles eram todo o meu mundo, eu superprotegia-os. Como vou abandonar isto, e vou para o escuro ?... Há aqui dramas escondidos que só por si davam um romance, mas vamos em frente.

Sonhava que iria encontrar aquilo que lá deixei em 1969, um país normal de África, com todas aquelas mordomias que tinha quando lá estava, uma cidade de Bissau limpa, as esplanadas com aquelas maravilhosas ostras, os mariscos, a musse de chocolate gelada do Solar dos 10, e os restantes bons petiscos, e tudo bem acompanhado de cerveja gelada e uns uísques com muito gelo, o Grande Hotel, uns bons restaurantes, nada a faltar. Aquele calor insuportável, a humidade, tudo o que era de bom e mau, eu estaria mesmo louco.

Não vou descrever mais, sobre os dramas da partida, os preparativos, os encontros com outras pessoas que pudessem conhecer aquilo melhor, isto são coisas do nosso íntimo e não são fáceis para os outros perceberem. Posto isto, pedir o visto no passaporte por 15 dias, e a surpresa é que tive de esperar mais de um mês pela autorização do visto, mas o Valentim Loureiro alertou-me para não ir, que já não era nada daquilo que fora no tempo da tropa, mas desvalorizei, estava com umas palas como os burros e só via para a frente, ninguém me desviava do meu sentido.

E lá fui, depois de imensas peripécias que vou passar à frente, chego ao Aeroporto da Portela, pois o voo era por volta da meia-noite, de um sábado, como todos os voos para a Guiné, naquela época, em 20 de Outubro de 1984, chegando a Bissau na madrugada de 21 de Outubro. Vai fazer agora 35 longos anos, de recordação e muita angústia.

Era tudo escuro, os passageiros eram na maioria africanos, a confusão indescritível na fila para fazer o check-in e enviar as malas. Como já era hábito aquilo estava carregado de guineenses, que estavam cá a trabalhar ou a passar tempo, e, quando me apercebo,  já estava cercado por uns quantos que me entregavam caixas e embrulhos para meter na minha bagagem, e o peso não tinha importância pois a TAP facilitava isso.

Eu só pensei numa coisa. Se me metem droga nas malas e nas caixas deles, e quando lá chego e me revistam,  entro logo na prisão. Bom, em conversas acesas, pois eu não queria levar nada comigo, as hospedeiras convenceram-me que não havia problemas, era normal, eles só diziam que era ‘leite pra minino que está no Bissau’. Bom,  lá meteu mais uns 20 kg de carga e não paguei mais por isso, ainda perguntei a quem vou entregar aquilo, mas eles dizem que não se preocupe, alguém vai ter comigo e leva as embalagens.

O voo levantou uma hora mais tarde, pois aquilo era uma confusão total, mas eu estava decidido e já tinha gasto com a preparação da viagem e com a Agência, quase 200 contos [, 200  contos em 1984 é o equivalente a 4.754,87 €, a preços de hoje], incluindo viagens mas de fora a estadia. Eu não sabia nem tinha ideia para onde ia, tinha como referência o Grande Hotel de Bissau, mas nunca falei com ninguém nem marquei nada, fui mesmo à aventura, às cegas. 

Como já era normal, paramos no Sal, e comecei a sentir aquela sensação que já não estava habituado, aquilo não era uma Província de Portugal, é um País novo, e as pessoas, ainda com a sua jovem independência, olhavam e tratavam-me de uma forma não muito simpática. Eu tantas vezes lá tinha pousado, no antes, e era tudo nosso, fazia o que me apetecia. Mas não deixaram sair do aeroporto, agora já mais moderno, onde comprei qualquer coisa para entreter o estômago, afinal ainda era jovem, tinha os meus 41 anos, tinha apetite.

Lá deixamos aquilo, e voltamos ao avião Boeing 707 da TAP. Passado uma hora estava a sobrevoar aquela Guiné que já conhecia, os céus a mesma coisa, e cá para baixo a mesma paisagem. Como era ainda cedo, a neblina estava lá presente.

Escrevi durante a viagem, desde que deixei a família com um aperto enorme na garganta, uma carta com aquilo que estava a sentir, angústia e ansiedade. Já levava um envelope endereçado à minha mulher e, quando estava perto de aterrar,  chamei uma hospedeira, mostrei a carta com selo e endereço, e disse que ia metê-la no envelope, pedindo que ela na volta a Lisboa a colocasse no correio, e assim foi.

A aterragem deu-se pelas 9 horas da manhã, na mesma hora em que eu lá tinha chegado da primeira vez, em 21 de Setembro de 1967, ou seja 17 anos depois.  Mas agora era o dia 21 de Outubro de 1984, e estava num novo país independente.

Quando as portas se abrem, saindo daquele ar condicionado frio, pois ainda nos deram umas mantas para não se sentir aquele gelo dentro do avião, leva-se então com aquela baforada de ar quente e húmido, como se tivesse entrada no forno da minha cozinha. Entro da sala do aeroporto, e sem ar condicionado, tudo fechado, imediatamente o suor começa a cair pelas faces, pela roupa e em pouco tempo estou encharcado até à ponta dos pés. Nada que eu já não conhecesse, mas agora mais grave, pois cheguei a um novo país, ainda na minha mente um país... "inimigo" de Portugal.

As filas eram intermináveis para o check-in, pois o pessoal africano tinha prioridade sobre os brancos, e assim fui derretendo as poucas banhas que tinha. Chega a minha vez, apresento o passaporte de turista, e logo perguntam com grande autoridade: o que vem cá fazer? Eu disse que vinha fazer uma visita, não me veio mais nada à cabeça. Acharam estranho e, pouco tempo depois já me tinham chamado a uma sala reservada, eu levava comigo uma pasta preta de boa qualidade e marca conhecida, e uns homens, deduzo que da Polícia política local, ainda me perguntam se pertenço a algum ‘corpo diplomático’ e respondi que não, vinha apenas matar saudades dos tempos em que lá tinha estado na guerra colonial, há muitos anos atrás. Deram ordens para avançar, e fui para outra sala para a revista de tudo. Aí os guardas, como em todo o lado, logo me apanharam algumas coisas, era recordações para eles e família, cigarros, isqueiro, roupa, e coisas assim. Não levantei problemas.

Estava tudo em ordem, lá colocaram o visto de turista para 15 dias no passaporte. Voltei à fila do check-in, e perguntaram-me qual era a minha morada na Guiné, onde ia ficar. Fiquei indeciso, pois não tinha nenhum sítio marcado, disse que talvez fosse para o Grande Hotel. Escreveram tudo. Depois foi a vez do dinheiro, quanto é que levava, claro que declarei menos, e tive logo que cambiar o mínimo de 50 USD no Banco Local no aeroporto, tendo recebido 5.668,50 Pesos Guineenses, e alertaram que o câmbio de rua era ilegal, era crime e dava prisão. Ficou tudo escrito no passaporte. Eles olhavam-me muito desconfiados, não acreditavam em nada do que eu dizia. Mas finalmente consegui abandonar aquele forno.

Cá fora, lá estavam eles à minha espera, nem precisaram de procurar muito, pois os seus familiares em Lisboa devem ter dado todas as informações físicas da pessoa a contactar. E foi bom, porque tinham lá uma carrinha de caixa aberta e deram-me boleia até às portas do Grande Hotel. Despediram-se e foram à sua vida, e lá fiquei eu com a bagagem.

Mas o mais espantoso vem a seguir. Eu que estive na Guiné dois anos, e nunca vesti mais do que uma camisa, e de mangas curtas a maioria das vezes, levava então nesta viagem de loucos, já vestido um fato e gravata, e, num saco em separado, outro fato. Para quê? Só me estorvou o tempo todo. Meti-o na mala, ficou todo amachucado e deixei aquele apêndice que me estorvava os movimentos.

Quando desembarco do avião, aquela garra toda desaparece, como da primeira vez, e de imediato fico novamente apanhado pelo clima, e passo a andar como os outros, muito devagar, devagarinho, não há pressa para nada, nem capacidade física. E enquanto estou de viagem desde Bissalanca – agora aeroporto Osvaldo Vieira -, até à cidade, vou então confirmando os meus receios após a chegada, ou seja, que estou no sítio errado, aquilo não era a Guiné que conhecia.

A miséria era geral, e a falta de tudo em particular, era uma evidência. Vou passando pelos pontos conhecidos, A Base Aérea nada tinha, o quartel dos Comandas não existia, o quartel dos Paras nem se viu, passamos o quartel dos Adidos estava tudo destruído, até que passei pelo Hospital Militar e estava tudo coberto de mato, nada existia, a população levou tudo para casa ou para vender, e o edifício, o melhor hospital daquela zona do mundo, não existia mais.

Quando chego à entrada de Bissau, lá estava o mercado de Bandim, o cheiro era impressionante, o lixo abundava por todo o lado, passamos pela Bissau nova e está quase tudo em degradação, ainda fomos pela avenida principal, a antiga Avenida do Império, e não havia um único café, cervejaria, restaurante, casa de pasto, ou de comes e bebes, nada, tudo tinha desaparecido como se uma peste tivesse varrido a cidade de Bissau.

Quando entro do Grande Hotel aquilo estava a cair de podre, não havia ninguém, fui ver um quarto, meteu-me nojo, os preços eram pagos em Pesos Guineenses. Pediram 3500 Pesos por dia, que feitos os diversos câmbios oficiais, dava uns 2000$00 [, o equivalente a 47, 55 € a preços de hoje], por noite, ou seja o dobro do que tinha pago no dia anterior no Hotel Roma em Lisboa.

Claro que este valor pago com Pesos da candonga, significava então uns 200 Escudos Portugueses [, 4,75 €]... Claro que recusei logo, pois nem de graça eu lá ficava, abundava o lixo e a degradação total. Inacreditável o que via. Voltei a ver naquele espaço que tanto frequentei, os célebres "jagudis",  os abutres, à procura de carne podre, e os grandes lagartos a subir e a descer pelas palmeiras já minhas conhecidas.

Ter-me-ia enganado no local para onde comprei o Bilhete? Pelo sim, pelo não, fui logo de imediato à agência da TAP, que ficava na antiga Praça do Império, para ver se ainda podia apanhar o voo de regresso para Lisboa, mas já não era possível, então marquei logo para o próximo, uns 3 a 4 dias depois, quando a ideia era ficar 15 dias.

Lá fui ter não sei como, talvez num daqueles táxis que param em todo o lado para entrar e sair passageiros, e vou directo a Santa Luzia, onde diziam que havia o Hotel 24 de Setembro,  que era o melhor nessa época. O meu espanto é que estava a chegar ao antigo Club de Oficiais do tempo chamado agora de colonial. Eles fizeram daquele belo espaço um Hotel. Ainda construíram mais umas suites individuais, nos antigos terrenos e edifícios do Biafra, que era o sítio onde ficavam os oficiais milicianos quando passavam por Bissau.

Fui à recepção, e pedi um quarto, o preço eram 10 US Dólares, por dia – 2.000$00  [, o equivalente a 47, 55 € a preços de hoje] -, sem direito a nada. Com a ajuda de uma empregada negra, fomos para o quarto. Novo espanto, estava tudo partido, não havia ar condicionado, nem ventoinha, a água era escassa, os chuveiros estavam estragados, as baratas abundavam, e não tinha sanita, ou seja a sanita estava partida, não dava para uma pessoa se sentar, a empregada encolhia os ombros. Onde é que eu me meti, pensei com os meus botões?

Vou à recepção, o homem lá se desculpa, diz que há falta de manutenção, isso já eu sabia! Eu não queria aquele quarto, por isso ele sugeriu outro, dos novos, eram melhores, o preço era a 40 US Dólares por dia – 8.000$00  [190,19 €]...

Ok, fico para já, estava cansado e tinha novamente de pegar na bagagem e levar para outro quarto. Com o calor e de fato vestido, é fácil ver a cena. Instalei-me e tomei banho, deitei os fatos para o lado, e vesti calça e camisa. Tomei alguma coisa no bar, mas não havia quase nada, nem cerveja, nem uísque, só água com rótulo não conhecido. Mas tinha pressa em sair e ir conhecer melhor a cidade.

Fui a pé pela estrada de Santa Luzia abaixo, as bermas não existiam, estava tudo esburacado, as casas estavam em grande degradação. Procurei e encontrei logo a casa da minha primeira amiga cabo-verdiana, mas os novos inquilinos e vizinhos não sabiam nada dela nem da mãe. Fiquei desiludido, mas lembrei-me quando lá fui em fins de Julho de 1969 para me despedir dela e da mãe, me terem dito que ela tinha regressado a Cabo Verde, talvez seja verdade, e desejei que estivesse bem.

Fui por ali abaixo, na sombra dos grandes poilões, até chegar ao famigerado Pilão de Bissau. A população tinha aumentado para o dobro, as condições eram inimagináveis, nada que me fizesse lembrar as outras más condições do tempo colonial, agora aquilo eram mesmo bairros de lata ‘made in África’.

Vamos à Cidade, avenida abaixo, o calor e a sede aperta, procuro uma cerveja mas não há nada. Andam uns rapazes com uns bidões de barro com água e sumo de limão, diga-se que não estava quente nem fria. O serviço era em pé e na rua, e bebe-se pelo mesmo caneco sem lugar a lavagem, porque não há onde lavar. Paga-se qualquer coisa em pesos, era assim que se tratava o turismo de Bissau. Cansado sento-me na berma de um passeio, sempre na sombra de alguma árvore, o sol não perdoa, era implacável.

É preciso comer, aparece um dos muitos miúdos, que já antes existiam, com sacos ao pescoço, com mancarra descascada e torrada – amendoim, como se diz por cá – mas tão saboroso que parece marisco, era ainda igual àquela que se comia antes, uma primeira boa recordação. E mais umas canecas de água, tudo servido ali sentado no passeio esburacado.

Isto é surreal, estou sozinho sem saber o que fazer, mas vou continuar. Vou ter ao mercado local, onde há fruta e vegetais à venda. Os preços incrivelmente baratos. Compro ananás, bananas, mangas, limões, laranjas, e vou comendo tudo com a mão. Felizmente tinha levado um canivete suíço que dava para descascar aquilo. Já composto vou ver o que há para beber e comer, as primeiras necessidades.

Vou à antiga Casa Gouveia – agora são os Armazéns do Povo –, entro e está tudo vazio. Procuro nas prateleiras não há nada, mas encontro numa delas, isto fica na memória, pois não se pode esquecer..., encontro duas embalagens pequenas de sumos da Compal, daquelas latas pequenas de abrir com abre-latas em bico. Milagre. Vou ver os prazos já tinham passado vários anos de validade, e ainda por cima estão tipo caldo, não arrisquei, ficaram na memória, e na prateleira para o próximo cliente.

Não vou continuar mais a falar nisto, pois as surpresas acontecem à velocidade a que me desloco, não há lojas como antigamente, o famoso Café Bento desapareceu, as lojas fecharam, ainda vou até à Catedral de Bissau, pois está sombra e mais fresco. Rezei para que tudo corra bem para mim e para os meus familiares.

Agora os câmbios... I dinheiro que troquei no aeroporto e ficou registado no passaporte, eram 50 USD e deram-me um maço de Pesos Guineenses, a um câmbio que ficava tudo muito caro. Logo aparece sempre gente a tentar trocar Escudos ou US Dólares, por Pesos, a um câmbio 10 a 20 vezes menos do que o oficial. Ponderei para ver se não era nenhuma armadilha, depois arrisquei, e com 5 contos [, 118, 86 €, a preços de hoje,] fiquei com dinheiro para comprar quase tudo, o que era Nacional.

Mas não havia nada para comprar em divisas, só na segunda viagem já tinha aberto um chamado ‘Free Shopping’, onde se poderia comprar algumas coisas com moeda estrangeira. Mas o que havia era na maioria bebidas e pouco para comer. Daí que o mercado local era o abastecimento preferencial, comprava-se tudo por meia dúzia de tostões.

As surpresas estavam para vir, ao jantar no Hotel pouco ou nada havia, uns peixes secos daqueles que nunca antes havia comido, algum bife duro, pão só até acabar, vinho de garrafão fraco, quente, ou misturado com pedras de gelo da água do Geba. Não havia nem cerveja, quente ou fria. Sopa de estrelinhas, e compo sobremesa a fruta da época. Café de saco e nada de bebidas extras. Preço para isto tudo rondava os 1000 pesos, que com o câmbio no mercado paralelo, isto seria no nosso dinheiro 10 ou 20 escudos, nada mais [.o equivalente hoje a 0,24 € ou 0,48 €, respetivamente]. Tenho as facturas disto tudo, eram talões numerados com papel químico, e pagava no fim da estadia.

De manhã ainda pior, o café com leite, café de saco que não sabia a café, e o leite era ao natural, não tratado, aquilo e a manteiga derretida meteu-me nojo e só comi o pão sem nada, com uma chávena de café simples – digamos chicória.

Bom, a solução era mesmo o mercado, comprei tudo o que havia, muita fruta de toda a espécie, os preços ridículos, e assim comecei a comer no quarto a maioria das vezes. Tinha um frigorífico, onde também entravam as baratas, tirava-se um ananás inteiro, com a minha faca canivete cortava às rodelas e ia para a porta comer aquilo tudo, só com as mãos, tipo um sem-abrigo, enchia a barriga de fruta de vária categoria e sabia muito bem. O sumo de laranja fazia eu, partia várias laranjas a meio e com as mãos apertava aquilo e enchia um copo de sumo. Era tudo básico, não dá para acreditar. Era o mesmo com os limões.

O que fazer então?... Levava um contacto, o Ministro das Finanças local, fui falar com ele ao Ministério, que ficava num daqueles edifícios que se vê do cais na Marginal, à frente do Quartel da Amura. Recebeu-me porque eu levava o nome do Valentim, que por acaso também tratava das coisas dos filhos cá em Portugal. Apresentamo-nos, ele era mais velho do que eu, já tinha os cabelos meio brancos, falava com toda a educação e delicadeza. Acabamos por saber que tínhamos frequentado a Faculdade de Economia do Porto mais ou menos ao mesmo tempo, talvez nos tenhamos encontrado nos dois primeiros anos de 1964-66. Ficamos ‘amigos’, e até me convidou para ir jantar um dia a casa dele, ficava na Bissau nova, nas vivendas bem tratadas, onde não faltavam também nas paredes, dentro de casa, as ‘osgas’ que se passeavam calmamente. Chama-se Dr. Francisco Godinho. Foi-me orientando e até me apresentou outros Ministros e Secretários de Estado, das áreas do Comércio e Agricultura, que lhe chamavam de ‘desenvolvimento rural’.

Andei a deambular os primeiros dias, fui ver o novo Porto de Bissau, enorme, uma mudança radical, já tinha cais para encostarem os grandes navios, foi um investimento de um Banco Árabe, e construído por uma empresa portuguesa, a Somague.

Mas eu tinha de me desenrascar, e assim uma noite no Bar do Hotel, à volta dos copos e a sacudir e afugentar os mosquitos, estava um grupo de pessoas, falavam Português e notei logo pelo sotaque que eram do Porto, não me enganei. Eram uns 5 personagens, 4 de Portugal e um da Alemanha, Harald Muller. Estavam todos picados e com os braços inchados das picadelas dos mosquitos, e viram como eu estava normal sem os efeitos das picadelas dos mosquitos, pois eles não me pegavam, daí o início de uma conversa entre nós.

Expliquei que já lá tinha estado, contei a velha história, e que os mosquitos quando me ferravam eles é que morriam, o meu sangue era venenoso, eles não aguentavam. Acharam graça mas era assim, nunca tive nenhuma marca de mosquitos apesar de sentir as picadelas, acho que tem a ver com a cor e tipo de pele, a minha é escura, a deles era branquinha, os mosquitos aterravam e só largavam depois de lá deixar o ferrão, comigo felizmente não. Apesar de ter apanhado a Paludismo por duas vezes em 1968, não era imune a isso e não tomava nada para salvaguarda dos efeitos colaterais.

Resumindo vim a perceber que andavam por lá, com o aval do major Valentim Loureiro – que era o Cônsul da Guiné Bissau em Portugal – amigo do nosso ‘amigo’ Nino' Vieira–  , para um grande projecto agro-industrial no valor global de 20 milhões de US Dólares. Eram 4 milhões de contos [, o equivalente a 95 milhões de euros , a preços de hoje], o câmbio nessa altura era a 200$00 por cada Dólar.

Já tinham conseguido um ‘aval’ do presidente 'Nino', no qual era cedida ao grupo uma área bruta de 7000 hectares de terreno, nas margens do Rio Corubal, a 200 quilómetros da foz, por causa dos efeitos do sal, com o centro em Cabuca que eu já conhecia. Já tinham mapa de toda a área, e a cedência era pelo período de 100 anos.

Era preciso passar tudo por muitos estudos, e lutar ferozmente contra os ‘consultores’ do Leste que não queriam lá os ‘Tugas’. O Governo só confiava nos pareceres do Leste. Aquelas pessoas que encontrei, nenhuma delas tinha conhecimentos nem capacidade para demonstrar ao Governo que o seu projecto era viável, e muito.

Precisavam de um Economista para elaborar todo o projecto económico e financeiro, e tratar de toda a burocracia que um Investimento Estrangeiro precisa. Bateram na porta certa, pois já tinha no meu CV dezenas de projectos e estudos, e conhecia muitíssimo bem o CIE, os procedimentos do investimento estrangeiro, pois a Guiné Bissau, ‘copiou’ linha a linha o nosso Código do Investimento Estrangeiro (CIE), que eu tão bem conhecia por ter trabalhado com os Suecos tantos anos e que tinha de ser aplicado em Portugal. Estava nas minhas quintas.

Daí para diante tudo mudou, pois entrei dentro do sistema que estava já montado, são os amigos de negócios, e assim havia um esquema com as empresas de construção que lá estavam instaladas, a Somague, a Soares da Costa e muitas outras, portuguesas. Todas tinham os seus estaleiros e não faltava nada, era só mesmo ‘entrar’.

Regressei a Portugal ao fim dos 14 dias com os novos amigos e futuros sócios, e passamos a trabalhar no projecto no escritório deles no Porto, perto da Rua da Boavista, dedicando-me a 100% a este projecto, pois as expectativas eram muito grandes.

Depois disto, tem uma história muito longa, pois durou cerca de um ano inteiro, com 3 viagens à Guiné e uma a Dakar. Um dia talvez volte a este assunto, que não me é nada grato voltar a lembrar-me dele, pois não teve um fim feliz, mas é uma história verídica, e que ainda hoje não sei como fui capaz de embarcar em semelhante ‘loucura’! Fica para os próximos capítulos, se os houver.

Em, 06-06-2018 - Virgílio Teixeira


II - Legendas das fotos:

Nota: O primeiro parágrafo da legendagem explica o que significa a foto. Já nos seguintes, são notas e observações que faço em relação à história e contexto de cada foto no seu tempo.


F1 a F6 – INTRODUÇÃO:

– No Pilão em Bissau, na porta da casa do nosso Taxista Fula de nome Mamadu.

Fomos a casa dele para nos alugar o seu táxi – Citroen Mehari. Ele ficou 15 dias sem trabalhar e recebeu o mesmo como se andasse a trabalhar, foi um bom negócio para ele, e também para nós que ficamos sempre de carro, totalmente descapotável. Bissau, 02Jan85.

F2 – A nova ponte acabada de inaugurar, em Bafatá, com ligação a Fá Mandinga.

Esta ponte veio substituir outro troço de caminho, que não tinha ponte e era necessário dar umas voltas para o contornar. Acho que faz a ligação para Fá Mandinga, e assim fica uma ligação completa por estrada asfaltada, entre Bissau até Gabu e daí até Pirada na fronteira com o Senegal. E tem portagem perto de Safim. Pagávamos 2 pesos e meio para abrirem a barreira. Bafatá 03Jan85.

F3 – Esta era a picada entre Nova Lamego – Gabu – e o aquartelamento de Cabuca, a uns 20 a 30 km da sede do comando do sector L3.

Este troço estava em 1985 completamente tapado, de mato, árvores, capim, e muitos buracos no troço da picada. Foram precisas algumas horas até chegar ao local de destino, que era a zona onde se iria desenvolver um projecto agrícola de 7000 há. Cabuca, 03Jan85

F4 – Em Cabuca recolhendo terra para amostras de produtividade e rendimento.

Em primeiro plano o Isidro Quaresma Gomes, o Técnico agrícola vindo de Angola como refugiado, e que levou a cabo este estudo complicadíssimo. Depois tem mais 3 técnicos locais do Ministério do Desenvolvimento Rural da Guiné Bissau. O Jeep era do Estado, O fotógrafo era eu que não ficou na foto. Cabuca, 03Jan85.

F5 – Aqui estamos numa lagoa, que faz fronteira com a Guiné-Conacri.

O barco segundo me parece, pertencia a alguém que fazia a prospecção de diamantes na lagoa, o homem do leme era o responsável por isso, Nunca soube ao certo o que faziam, era tudo muito secreto. Na foto está o Quaresma, o barqueiro e o Virgílio, sou eu. Cabuca 03Jan85.

F6 – Pormenor de um lago lodoso de águas paradas, e o aviso no placard da existência da mosca Tsé-Tsé. O nome escrito diz ‘ONCORSECOSE’ deve ser o nome latim da mosca do sono.

Dado o perigo eminente desta maldição, não ficamos lá muito tempo, viemos embora sem olhar para trás, não vá aparecer alguma mosca maldita. Cabuca, 03Jan85.

F11 A F16 – Série de Fotos tiradas no complexo agroindustrial de uma fábrica de descasque de arroz, construída do lado esquerdo da foz do Geba, completamente abandonado. Acho que é o local se chamava de Cumeré.

Chamo a atenção que este complexo enorme, quase pronto, mas inacabado, nunca funcionou, estava ali uma fortuna enterrada em obras e equipamentos. O nosso objectivo seria recuperar o complexo e depois apoiar o projecto agrícola do arroz.

Isto tudo foi financiado pela Comunidade Internacional, numa ajuda ímpar à Guiné Bissau, país na cauda da miséria, que recebeu,  segundo estimativas dessa época, a maior ajuda mundial "per capita", que foi dada a um país, em termos de relação – montante investido, versus área e população.

A visão que me impressionou foi ver que no cais de desembarque de Bissau, encontravam-se centenas de contentores, arrumados há anos, nunca abertos, que continham componentes para montar várias fábricas, mas que por uma inoperância dos sucessivos governos locais, nunca foi levada a efeito, ficou tudo a apodrecer, ninguém queria trabalhar, o que interessavam eram os sacos de arroz que desembarcavam de ajuda alimentar mundial. Vi isso com os meus olhos. Bissau, 05Jan85.

(Continua)

Em, 06-06-2018 - Virgílio Teixeira

Propriedade, Autoria, Direitos Reservados: Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BCAÇ 1933 / RI 15, Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SeT67 a 04Ag69.

[Revisão / fixação de texto / conversão de escudos para euros, através do conversor da Pordata, para efeitos de edição neste blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXX: Viagem, de regresso, do Gabu a Bissau, em 26/2/1968: no 'barco turra', a partir de Bambadinca (II)