quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20270: Antropologia (34): Cultura e tradição na Guiné-Bissau, por António Carreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Ao lermos este texto, com mais de trinta anos de idade, podemos dar conta da solidez cultural deste historiador maior das coisas de Cabo Verde e da Guiné, incontornável quando escreve sobre o sistema esclavagista ou grupos étnicos e até panaria, possuía uma curiosidade que não se apagava, tinha a coragem de corrigir opiniões e a dívida cultural com que lhe ficamos é desmesurada. Basta ler este singelo texto que apresentava na Cooperativa Árvore do Porto uma exposição de artes plásticas que exibe escultura da melhor que há em África.

Um abraço do
Mário


Cultura e tradição na Guiné-Bissau, por António Carreira

Beja Santos

António Carreira
Em junho de 1984, a Cooperativa Árvore promoveu uma exposição sobre cultura e tradição na Guiné-Bissau, António Carreira foi convidado a apresentar o país, os dados culturais e o valor da tradição nas manifestações artísticas.

Depois da localização geográfica e de uma síntese histórica, desvelou a estrutura económica, que resumiu deste modo:
“A base fundamental da sua economia assenta na orizicultura e no cultivo dos milhos, como cereais de sustentação; e da mancarra, como produto de exportação. A cultura desta última teve início entre 1942 e 1945. Ao mesmo tempo há o aproveitamento dos frutos da palmeira-do-azeite, nos quais se extrai o coconote e o chamado azeite vermelho.
A orizicultura e o aproveitamento da palmeira-do-azeite constituem a actividade principal dos povos do litoral desde tempos imemoriais; processa-se através de uma técnica bastante aperfeiçoada pela requintada preparação das lalas (planícies alagadas ou alagáveis) e que prontas para o cultivo do arroz tomam a designação de bolanha. A preparação consiste na feitura de camalhões e diques de defesa que permitem a entrada da água do mar e dos rios em quantidades adequadas e, ao mesmo tempo, a descarga dos excedentes quando atingem determinados níveis. O cultivo do arroz nas terras do Quinara e do Tombali, foi introduzido no segundo quartel do século XIX pelos Balantas emigrados na região de Mansoa. À parte este tipo de culturas de arroz, processa-se um outro chamado Pampã, nas terras de sequeiro, sobretudo como cultura intercalar nos palmeirais. Trata-se de uma variedade de arroz especial, temporão, que permite acudir às necessidades alimentares nos períodos entressafras”.

E apresenta o mosaico étnico e a dinâmica cultural nos seguintes termos:
“No concernente à organização social, as comunidades étnicas e étnico-linguísticas mostram-se no geral bem organizadas, coesas, respeitando as suas tradições, os seus hábitos, comportamentos e costumes, tanto quanto o consentem as transformações sofridas nas últimas cinco décadas.
Em matérias de organização política tradicional, necessariamente em decadência, o factor mais saliente é o impacto produzido pelo contacto com outras culturas mais dinâmicas, podemos (ou poderíamos) compartimentar as etnias em dois grandes grupos, sobretudo às crenças ou cultos professados:

1) – o dos que possuem estruturas políticas fortes e eficientes dominando a área do Centro-Leste – Mandingas, Fulas, Beafadas, etc., uns ainda animistas, a grande maioria islamizados; e, no Litoral, os Papéis-Brames, localizados na área compreendida entre a margem esquerda do rio Cacheu até à ilha de Bissau (todos eles animistas). Em todos estes grupos, as autoridades dispunham de poder efectivo sobre as populações das respectivas áreas de jurisdição. Esse poder foi cedido indolentemente, quer devido à presença europeia quer pela mentalização da juventude.

2) – outro, dos que nunca possuíram o tipo de organização acima referido – Balantas, Felupes, Baiotes, Bijagós e outros – agrupando-se em comunidades de povoados, mais ou menos numerosos e submetendo os seus pleitos e conflitos à decisão do Conselho dos Grandes.
Os islamizados não ultrapassam os 40% da população total. A influência do Islão foi, quanto a nós, decisiva em muitos e amplos aspectos da vida deste mosaico. O Djila (negociante ambulante, em regra do grupo Mandinga) ao percorrer as regiões de animistas aproveitava-se da oportunidade para difundir o credo islâmico, isto começou pelos alvores do século XV-XVI e perdurou.

A título de exemplo, aponta-se a mandiguização do Balanta localizado na margem direita do rio Farim, conhecido por Balanta-Mané (Mané, apelido Mandinga), que de Balanta nada possui já; ao passo que do Mandinga assimilou o tipo de habitação, a técnica agrícola, o vestuário, os sistemas matrimoniais, a sucessão pela linha matrilinear, etc. Mas, para além destes aspectos, apontam-se a influência de grupos de cultura arabizada junto dos Nalus e dos Sossos (das áreas localizadas entre os rios Cacine e Cumbijã) que não só adoptaram o islamismo como religião (islamismo do tipo africano, entenda-se), como as regras de matrimónio (até aos anos 1930, os Sossos e os Nalus só faziam o casamento por troca, por ignorarem o sistema do dote ou compensação). E consoante a progressão do islamismo, assim puseram de lado a escultura em madeira de máscaras rituais em que ambos foram exímios. É ver as fabulosas máscaras Bandá, Ninte-Camatchol, etc., tão procuradas pelos coleccionadores europeus e norte-americanos. Não foram todavia só os Nalus que empobreceram os seus valores culturais. Os Manjacos, bons escultores de postes com figuras zoomórficas e antropomórficas, destinados a certos rituais e a assinalar as campas de indivíduos de alta posição social, decaíram ou desapareceram dos seus costumes.

O Corão proíbe toda esta simbologia esculpida. O islamismo, por muito que tenha oferecido aos animistas, foi o principal responsável pela decadência (e desaparecimento) da arte escultural dos Nalus, dos Sossos, dos Manjacos e dos próprios Bijagós. Isto contudo não impede que as apresentemos sob um outro esquema, embora simplificado. 
Assim, temos:

- Grupos étnicos nitidamente diferenciados, usando línguas aglutinantes do tipo das semi-bantas, definidas pelo uso de prefixos de classe e prefixos de concordância: Balantas e Bijagós, ambos com formas dialetais; Felupes-Baiotes; Banhuns-Cassangas.

- Grupos étnico-linguísticos nitidamente determinados: Papel-Brame (ou Mancanha)-Manjaco. A par deles a minoria Caboiana ou Cobiana (da região de Caboi) com um linguajar típico misto do Banhum-Cassanga e do Manjaco. Todos eles animistas. Os grupos de fundo linguístico semi-banta, incluindo minorias, abrangem 59,1% da população global (censo de 1950).

- Grupos étnicos falando línguas do tipo sudanês, definidas pelo emprego de sufixos plurativos, todos eles islamizados:

Mandingas e etnias mandinguizadas: Beafadas, Nalus, Sossos, Bambarãs, Saracolés, Landumás, Jalofos, Jacancas, Pajadincas. A par destes, apontam-se também os Balanta-Mané e os Cunantes ou Mansoancas, que usam um linguajar fortemente influenciado pela língua Mandinga; Fulas e os seus diferentes ramos: Fula-Preto, etnia constituída pelos antigos escravos das mais diversas origens, conhecidos também por Fula-djom, Fula cativo, em Mandinga e Fula Matchudô, em Fula; Fula-Forro, o havido por nobre ou filho de pais de longa data alforriados no ato de rapar a cabeça; Futa-Fula ou Fula do Futa – do Futa Djaló ou do Futa Toro, este também conhecido por Toranca e Tôrôdô; Fula do Boé ou Boenca, o oriundo da área do Boé-Kadé.”

No termo do seu trabalho da apresentação da exposição de artes plásticas da Guiné-Bissau no Porto, o historiador refere a importância do crioulo, considerando que todos estes dados somados são definidores de uma extraordinária diversidade, caso ímpar na diminuta dimensão de um território.



Imagens da arte Bijagó, reproduzidas do site Bestnet Leilões, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19840: Antropologia (33): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

A primeira imagem que ilustra o texto mostra, sem dúvida nenhuma, um apoio de cabeça para dormir. Quanto às outras duas, parece-me que mostram duas máscaras. Ou serão outra coisa?

Parece-me que o Mário Beja Santos é frequentador assíduo da Sociedade de Geografia de Lisboa. Pois no site desta instituição podem ver-se três esculturas originárias da Guiné, e pertencentes ao espólio da mesma Sociedade, que são dignas da maior admiração: um machado ritual bijagó, um irã também bijagó e uma máscara nalu. Estas três maravilhas estão na página http://www.socgeografialisboa.pt/museu-categorias/guine-bissau/.

No site do Musée du Quai Branly, de Paris, encontra-se uma fotografia de uma escultura, também ela bijagó, que, segundo diz a legenda, representa o general Spínola! Será mesmo ele, representado sem monóculo? A fotografia está nesta página: http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/866111-le-general-spinola-un-futiceiro/page/1/.

Fernando de Sousa Ribeiro