O Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) dizia-nos, em 2010, que ainda tinha lá em casa "5 garrafas de uísque das que trouxe da Guiné"... Eram elas "uma 'President', uma 'Something Special', uma 'Dimple', uma 'Smugler' e uma 'Logan' (conforme foto...). Umas autênticas belezas". (*)
E acrescentava:
1. Quais os artigos que mais se consumiam nas cantinas da tropa, no mato, na Guiné ?
Temos algumas indicações, a avaliar por uma pequena amostra das vendas (mensais) na cantina da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), de acordo com os dados do balancete que nos foi fornecido pelo nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-fur mil vagomestre.(**)
- Cerveja 0,3 l > 3977 (garrafas):
- Tabaco Porto > 1034 (maços);
- Coca-cola > 1402 (latas);
- Tabaco SG > 754 (maços);
- Fósforos > 718 (caixas);
- Leite c/ cacau 411 > 595 (embalagens);
- Tabaco Português Suave > 395 (maços);
- Cerveja 0,6 > 268 /garrafas);
- Laranjada Shellys > 223 (latas);
- Bacalhau > 96 (quilo ? embalagem ?);
- Água Castelo > 65 (garrafas);
- Sumol > 53 (garrafas ou latas);
- Pilhas 1,5 v > 51
2, Se agruparmos estes itens por géneros (cerveja, tabaco, refrigentes, bebidas destiladas), temos:
(i) Cerveja (0,3 l e 0,6 l) > 4245 garrafas (equivalente a 1353,9 l):
3. Admitindo que o mês de maio não era um mês "atípico" do ano, em matéria de consumo na cantina (estava-se no início da época das chuvas, já se saía menos vezes para o mato, embora no tempo seco, a partir de outubro, se pudesse beber mais cerveja...) podemos tentar calcular um valor médio anual "per capita" destas 4 categorias de bens consumidos:
(i) Cerveja:
- 1353,9 l a dividir por 150 homens (=9,026 l) e a multiplicar por 12 meses, dá um consumo "per capita" anual de 108,3 l;
- este valor pode estar subestimado; de qualquer modo, 108.3 l "per capita" era já um valor seguramente muito superior à média nacional de 1970, e mais do dobro do consumo atual (em 2022, foi de 53 litros, segundo dados da European Beer Trends);
(ii) Tabaco:
- 2215 maços de cigarros por mês dá uma média anual "per capita" de 177,2 maços;
- é peciso ter em conta que nem toda gente fumava: a prevalência de tabagismo entre homens com 15 anos ou mais anos de idade, em Portugal, era estimada entre 40% e 50% em meados da década de 1970;
- portanto, aqueles de nós que fumavam, consumiam pelo menos um maço de cigarros por dia;
- 1680,5 latas ou embalagens num ano: 83,4 % corresponde à coca-cola...
- consumo anual "per capita" da coca-cola (=1402 x 12 =16824) seria de 112 latas;
- recorde-se que era uma bebida proibida na metrópole, por teimosia de Salazar e das autoridades de saúde: além de ser vista como um símbolo do ostensivo estilo de vida americano, haveria também um "argumento de saúde pública": além de poder ser facilmente associada à cocaína ( e à "droga em geral"), o elevado teor de cafeína podia criar "habituação";
- temos um consumo mensal de 72,5 garrafas de 0,70l (ou de 0,75l, nalguns casos), o que dá 870 num ano;
- a maior parte é uísque de várias marcas =61 (84 %);
- o restante: brandy (Macieira)= 4,5; gin = 6; vodca=1;
- é mais difícil é saber o consumo destas bebibas "brancas" (muito mais caras na metrópole) porquanto havia quem comprasse uísque (mas também conhaque) para fazer "stock" e levar para casa, nas férias ou no final da comissão;
- apesar de ser mais barato (no CTIG), o uísque (e o conhaque) era ainda um artigo de luxo para a maior parte da malta (as praças); mas era era também uma mercadoria muito apreciada;
- temos mais de 60 dezenas de garrafas de uísque vendidas por mês (720 por ano), incluindo o consumo avulso, na cantina (ao copo, com água mineral e gelo, se o houvesse)
- além destas bebidas (cerveja e bebidas brancas), os militares portugueses tinham direito a um copo de vinho à refeição; e podiam também comprar na cantinha vinhos de marca como o Mateus Rosé ou o vinho verde branco Aveleda, Três Marias, Lagosta, etc.... (Vamos desprezar esses consumos, o vinho engarrafado era caro, a alternativa era a cerveja);
- se cada militar bebesse 1 copo de vinho (200 ml) à refeição (almoço e jantar), ao fim de 365 dias seriam 140 litros;
- admitindo que o vinho fornecido pela Intendência não ultrapassava os 10 graus, temos, um volume de álcool puro de 14 litros... (o vinho era mau e "batizado". toda a gente se queixava):
- sabendo que a cerveja Sagres tinha/tem 5º de teor alcoólico, o valor de 108,3 l consumido anualmente por cada militar correspondia a 5,415 l de álcool puro;
- o consumo anual médio, por companhia, poderia ser estimado (por baixo...) em 870 garrafas (0,70l, a 40º de teor alcoólico);
- a dividir por 150 homens corresponderia a 5,8 garrafas (pouco mais de 4 litros);
- 4060 ml x 0,40 (grau alcoolíco, médio) = 1624 ml de álcool puro;
- Somando o vinho (14 l), a cerveja (5,4 l) e as bebidas destiladas (1,6), são 21,0 litros no mínimo de álcool puro "per capita";
- claro que aqui temos a velha história da falácia da média estatística: metade não fumava, mas grande parte bebia; o álcool era uma necessidade fisiológica e psicológica... nas condições de isolamento e de guerra em que se vivia.
- de acordo com as estimativas mais recentes do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), referentes a 2019, o consumo anual per capita de álcool puro em Portugal (para a população com 15 ou mais anos) era de 12,1 litros;
- este valor inclui o consumo de vinho, cerveja e bebidas destiladas, tanto o consumo registado como uma estimativa do consumo não registado, e exclui o consumo por turistas;
- note-se que Portugal apresenta um dos consumos de álcool "per capita" mais elevados entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico).
Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5672: Estórias avulsas (23): Old Parr e Antiquary a 90$00 (Luís Dias)
(**) Vd. poste de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)
Vd. também 2 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26754: (In)citações (269): Quem se lembra destes preços? (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)
(***) Último poste da série > 2 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26644: A nossa guerra em números (28): Ainda a nossa 'adorável' ração de combate, nº 20...(que dava 3 refeições para um homem, por dia, no mato)