Queridos amigos,
O rei da festa deste texto é o jornalista-cronista que acompanhou Craveiro Lopes em maio de 1955 à Guiné, é a matéria do primeiro volume que aqui se trata, o segundo volume prende-se com a continuação da viagem para Cabo Verde. Inusitadamente, o jornalista Rodrigues Matias sai do registo encomiástico, deixa Craveiro Lopes no altar e saúda a natureza, o feitiço africano entrou-lhe nas veias, como aqui se procura exemplificar. E mesmo quando tem que engalanar o ilustre visitante, a sua prosa parece assombrada, estes dias que já leva na Guiné trouxeram feitiço, ora vejam como termina um verdadeiro vendaval de dança Nalu na receção de Catió: "Um Sol de fogo chameja sobre o terreiro. Os nativos bailam, suando como esponjas espremidas. A três metros de alto, as caraças de trapo e madeira pintada esfuminham-se num turbilhão de poeira e, de cinco em cinco segundos, um rugido de dezenas de milhares de vozes grita vivas a Craveiro Lopes e a Portugal." De Catió, Craveiro Lopes irá a Cufar, regressando a Catió para pernoitar.
Um abraço do
Mário
O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3)
Mário Beja Santos
Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É Governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda. Continuamos a acompanhar o relato do jornalista Rodrigues Matias, verificará agora o leitor que ele nos aparece manifestamente inspirado. A ilustre comitiva partiu para São João, tinha então população predominantemente Biafada, temos agora um estirão de 42 km até Fulacunda. Diz-nos que a região é a das mais ricas de caça e, toda a Guiné, abundam aqui os búfalos, as gazelas, as cabras de mato e até os leopardos.
A prosa do narrador esmalta-se:
“A clareira por onde rolam os automóveis, remendada a vermelhões de baga-baga, foi machadada no corpo denso da floresta hidrófila, que ao Sul do Geba avança desde o mar, ladeando lalas e pântanos, através do Forreá, até ao limite das paragens montanhosas do Boé.
Vê-se neve na Guiné. Parece, mas não é. O grande poilão que se ergue no meio da neve, abre, a 40 metros de altura, a sua copa imensa sobre a vegetação que o circunda. E da mancha verde-escura da sua ramaria cerrada sacudida pela brisa, desprendem-se e caem flocos brancos de sumaúma chiada, que cobrem tudo por debaixo, vestindo a terra de brancores de neve…
Ébrios ainda da luz da manhã, que acende fulgurações tremeluzentes, na orvalheira do capim, esvoaçam, às sacudidelas bandos de rolas esmeraldinas, um solitário noitibó rabilongo, a freirinha, e a face laranja, habitantes das clareiras abertas.”
Após esta exuberância inusitada, Craveiro Lopes desembarca e recebe cumprimentos do administrador de Fulacunda, os cipaios apresentam armas, descreve Fulacunda, este nome quer dizer lugar de Fulas, é a região da Guiné mais rica de espécies florestais, estranhamente não tem serrações. Veladamente, tece uma crítica: “Fulacunda ficou sempre um produto de reforma administrativa, com autoridade, mas sem alma que a faça crescer. Deram-lhe, em 1946, um campo de aterragem, um quartel para cipaios e uma fonte pública em lugar aprazível, decorada com um painel de azulejos. Traçaram-lhe, à ilharga, na mesma altura, uma espantosa reserva de caça. No entanto, Fulacunda continua como a descrevemos.” E ficamos a saber que a estrada de Fulacunda vai até Catió. Craveiro Lopes procede à condecoração de quatro régulos, o régulo de Fulacunda ofertou duas pequenas onças, destinadas ao Jardim Zoológico de Lisboa.
Seguiu-se o habitual desfile dos povos da região, apresentando-se em grande maioria os Biafadas de Fulacunda, de São João e do Cubisseco, os Fulas de Buba, os Balantas de Tite e os representantes de grupos menos numerosos. A viagem agora continua rumo a Catió, mas o autor aproveita para fazer uma descrição detalhadíssima dos Biafadas, com base no trabalho do administrador Octávio C. Gomes Barbosa, intitulado “Breve Notícia dos Carateres Étnicos dos Indígenas da Tribo Biafada” publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, N.º 2, 1946.
Já chegámos a Catió, é sede de circunscrição. E vamos aprender com o relato do nosso jornalista. Catió nasceu da teimosia de um comerciante, de nome Abel Gil de Matos, mas a história de Catió vem de mais longe, vem do século XIX e da China. O que se segue já mereceu escritos do nosso saudoso António Estácio e do investigador Philip Havik. Vamos aos factos. Dois chineses, acusados de crime de homicídio e jogo clandestino, depois de condenados vieram para aqui desterrados. E o autor esclarece que a Guiné continuava então a ser uma verdadeira terra de degredo, bom local para desterro de assassinos. Pois bem, os dois chineses dedicaram-se à pesca, adquiriram embarcações e ganharam intimidade com os nativos, tendo-lhes pedido informações de terras que pudessem cultivar. Terão assim obtido a revelação de que no continente, subindo um grande rio até a umas terras mal conhecidas se encontravam enormes extensões de boa terra inundada, onde era abundante a produção do arrozal. Começava assim a sua aventura, cultivaram e foram bem-sucedidos. Depois, correu fama entre os Balantas de algures, no Tombali, a terra era milagrosa e produzia ouro sobre a forma de arroz.
Bissau e Bolama pasmaram com a qualidade do arroz do Tombali, cabo-verdianos e europeus pediram concessões de terrenos. Instalou-se um posto administrativo em Sugá, mas um comerciante discordou do local e assim nasceu Catió, hoje povoado de primeira, tem estação radiotelegráfica, delegação de saúde, capela e escola missionária, bem como recinto de jogos. Ponto curioso é haver povoados na circunscrição com nomes de inconfundível sabor chinês, como é o caso de Com-Hane.
Baseando-se no relato do ex-governador Carvalho Viegas, de sua obra Guiné Portuguesa, o jornalista faz-nos uma descrição do povo Nalu, dado o facto da circunscrição de Catió ser o chão característico dos Nalus. O jornalista já pôs de parte os seus enleios de prosador esmerado, agora o que pesa é o estilo noticiário. “Ao desembarcar do automóvel presidencial no topo da artéria, uma espécie de loucura coletiva se apossou daquelas dezenas de milhares de pessoas, que irromperam em vivas e palmas.” Craveiro Lopes entregou o seu retrato encaixilhado aos quatro régulos da região.
Estamos perante um jornalista que gosta da etnologia e da etnografia, a descrição que se segue é a observação das danças Nalus, é uma escrita empolgada:
“Os marinheiros tinham assentado no terreno as suas marimbas, em bataria, e percutiam-nas elevadamente, conduzindo os pés dos bailarinos em paralelo á dança das baquetas saltitantes. Lembravam executantes de ‘mssau’ zavala, acompanhando a contracanto a narração de pecados de amor que atraíssem sobre a tabanca as iras das divindades.
E dois bailarinos de exceção, os campós, metidos em saiões de monstros encimados de caraças horrendas varriam o terreno em fúrias de rodopio estonteante. Uma das caraças, vagamente sugerindo cabeça de cavalo, com cabeças amarelas de tachas luzindo ao Sol e riscos de zarcão circundando os olhos por sobre uma bocarra de alvaiade e lama, erguiam-se a mais de 3 metros, gesticulando hieróglifos macabros de ameaça, de espanto, de ataque e de fuga, de raiva e de medo.
Era a grande máscara da dança Nalu, aterrorizando os espíritos maus que vagueiam pelos matos do Tombali, para que o pavor os confunda e os afaste do trilho dos passos do Homem Grande, em cuja honra pipilavam as marimbas da tribo e dançava em festa o povo das suas tabancas.
Depois, entrou em cena a formação dos grandes tambores Nalus, presos à cintura de mais bailarinos, cuja fila executa marcações de reta, de círculo, de arco e de triângulo. As macetas batem na pele de todos os bombos ao mesmo tempo, ao ritmo lento de um comando que ninguém sabe de onde vem, e que faz a todos os dançarinos avançar a perna direita, fletir o joelho esquerdo, executar um golpe de rins, jogar a cabeça para trás, avançar ou recuar um passo. Conjuntamente, corpos e tambores executam a pancada uníssona, coletiva, lenta como o desespero. Depois, a fila faz repentinamente meia-volta e gira em sentido oposto. O ritmo das macetas acelera. Os tambores agitam-se, a golpes de rins mais frequentes.
E o cavalão-caraça, montado sob o bailarino estrela que obedece às marimbas, entra de novo em cena, faz vénias aos tambores e manda-os a anunciar aos longes, por bolanhas e matagais, que o Homem Grande chegou à terra dos Nalus e traz consigo a paz e a alegria e a fertilidade dos arrozais de Catió.”
E digam-me lá se este jornalista não estava verdadeiramente inspirado, a gravar as suas emoções para uma literatura luso-guineense.
Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
General Craveiro Lopes
Diário da Manhã de 11 de maio, general Craveiro Lopes junto da estátua de Nuno Tristão, imagem do Museu da Presidência, com a devida véniaPlaca evocativa da visita de Craveiro Lopes durante a construção da ponte sob o Corubal, maio de 1955, imagem de Albano Costa, com a devida vénia
1.ª página do Diário Popular de 7 de maio de 1955
De Bolama para São João
De São João para Fulacunda
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)