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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24049: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIX: Mais uma operação helitransportada no corredor de Sitató, junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 (Op Vamp)


Tabanca de Cuntima, na região do Oio, c. 1969/71.  Foto do álbum de Carlos Silva (Publicada, a preto e branco, no livro do Amadu Djaló, na pág. 142)


Operação helitransportada, em março de 1966. Lançamento na área de Sitató, um dos corredores de entrada do PAIGC, progressão junto à linha de fronteira até Faquina Mandinga e retirada para Cuntima. Carta de Colina do Norte (1956) (Escala 1/50 mil)

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015):

Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) descreve-se a seguir  mais uma operação helistransportada, a Op Vamp, no corredor de Sitató, junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 (Gr Cmds "Os Centuriões" e "Os Diabólicos") 


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIX:   

Mais uma operação helitransportada no corredor de Sitató, 
junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 
(Op Vamp) (pp. 138-143)

Outra vez os dois grupos, 15 homens dos “Centuriões” e 15 dos “Diabólicos”, para uma missão de nomadização [1]  na região a norte de Farim. Saímos de Bissalanca, em 6 helis, de manhã muito cedo, para sermos lançados na fronteira, junto a Sitató. 

A partir de uma certa altura, os pilotos defrontaram-se com muito nevoeiro e quando chegámos perto da linha de fronteira, não conseguiram distinguir bem se estávamos já no Senegal. Retiraram até à zona de Jumbembem e, depois, a voarem por cima das árvores, atingiram uma zona de bolanha, onde nos largaram. 

Estávamos nos finais de março [de 1966] e a água estava muito fria. Quando aterrei, a água deu-me até ao peito. Pão, bolachas, cigarros, fósforos, ficou tudo alagado. Saímos da água e ficámos um pouco de tempo abrigados, a auscultar os sons da mata. Depois, começámos a andar até atingirmos uma bolanha larga, por volta das 10 horas. Ficámos ali algum tempo a olhar para a mata em frente. Os dois alferes estiverem a conferenciar e decidiram atravessá-la. 

Abrimos em linha, distanciámo-nos uns dos outros e começámos a travessia com muito cuidado. Estávamos mais ou menos a meio, ouvimos um tiro. Agachei-me como os outros e ficámos na expectativa. Já sabíamos que o PAIGC estava à nossa frente. Retomámos a progressão em direcção da mata de onde partira o disparo, mais separados ainda. Depois outro tiro, momentos depois uma rajada e nem uma chicotada. 

Nós não íamos com o objectivo de fazer um golpe de mão. A missão que nos tinha levado a Sitató era progredirmos em direcção a Faquina Mandinga, ver bem os trilhos e se houvesse sinais montar uma emboscada. Mas não era isto que estava a acontecer. 

Os tiros que ouvimos, quando estávamos a atravessar a bolanha, alteraram a nossa missão. Continuámos, muito lentamente, a dirigirmo-nos para a mata, e começámos também a ouvir vozes e risos. Ficámos mais sossegados porque os tiros não devia ter nada a ver com a nossa presença naquele local. Ou então era o PAIGC que estava com grande confiança. 

Já sabia que o confronto era inevitável. Conseguimos chegar àquela pequena mata de palmeiras sem sermos vistos. Era uma mata escura, onde eles tinham armado um acampamento embora naquele momento ainda não soubéssemos. 

Logo à entrada vi um pequeno carreiro que entrava na mata e desaparecia dos meus olhos. Os alferes combinaram formar um L, o meu grupo ia progredir no carreiro enquanto o outro ficava em linha na orla da mata. Começámos a andar, um passo aqui, outro ali, com muito cuidado, até que ficámos de frente para umas barracas. Vimo-los a conversar uns com os outros, a rirem-se, sem saberem que tinham visitas. 

Eu pensei: E agora? Se não os atacássemos já éramos descobertos e poderíamos sofrer uma derrota inesquecível. O terreno tinha aquela pequena mata de palmeiras e à volta a vegetação era pouca. De certeza que eles conheciam a zona melhor que nós. Atacar já e retirar para Cuntima, foi a decisão que se tomou.  

A primeira fila de barracas estava mais ou menos a dez metros. Quando ouvimos a voz de fogo, eu, o cabo Raul e outros companheiros que estavam à minha beira, fizemos rajadas lá para dentro, a curta distância dos guerrilheiros. 

Uma grande gritaria ouviu-se quando parámos de atirar e depois tiros e gritos pararam de repente, ficou um silêncio total. Lançámo-nos lá para dentro, os companheiros do outro grupo romperam também e começámos a busca nas barracas. 

Depois de apanharmos material, já não havia mais nada para fazer a não ser chegar fogo ao acampamento. Lançámos granadas incendiárias e saímos a correr, para norte, a corta-mato. 

Uns minutos depois, já a uma ou duas centenas de metros das casas de mato, ouvimos fogo de morteiro, bazuca e armas automáticas. Eles queriam ver se nós respondíamos para depois concentrar o fogo em cima de nós. Mas nós não respondemos e eles ficaram sem saber nada a nosso respeito e nunca vieram a saber como nós chegámos junto deles. As morteiradas para a zona do acampamento continuavam e nós também continuávamos a andar, agora mais devagar. 

Estava muito calor e nós estávamos com sede. Logo, a sorte veio ter connosco outra vez, quando encontrámos um pequeno riacho. Momentos antes, o Mamadu Bari tinha caído com dores musculares. Parece que os músculos se tinham prendido e ele não podia andar. Tirámos-lhe a carga que ele trazia e demos-lhe ali uma massagem. Ele pareceu ficar melhor e nós recomeçámos a marcha. 

Quando entrei no riacho, meti a cabeça debaixo de água, para diminuir o calor e aumentar a força que já me faltava. Demos com a estrada que vinha da fronteira e de certeza que já não estávamos longe de Cuntima. Com o guia local que tínhamos levado, o milícia Pate Djamanca [2],  uma equipa meteu-se na estrada até ao arame farpado do aquartelamento de Cuntima [3] e, tempos depois, apareceram duas viaturas que nos transportaram até à povoação.

Fomos muito bem recebidos, tomámos banho e depois do jantar fomos visitar a tabanca com o nosso gira-discos. Passados uns minutos, juntaram-se rapazes e raparigas e foi música e dança até à meia-noite. 

No dia seguinte[4], depois do café, chegou uma coluna de Farim para nos recolher. Por volta das 10h00 ocupámos os nossos lugares nas viaturas e metemo-nos à estrada, que eu conhecia muito bem, e chegámos a Farim, ainda não eram 14h00.  

Fui para o quartel dos africanos, da antiga 1ª CCaç, onde tinha estado quase um ano como condutor “rebenta-minas”. Afinal, tinha sido daqui que eu tinha ido para os Comandos. O alferes, sobrinho do Governador Arnaldo Schulz, que era de informações e tinha vindo de Porto Gole, é que tinha sido o responsável pela minha saída de Farim. 

Ele costumava encarregar-se dos interrogatórios e usava a violência para obter informações dos prisioneiros. Naquela altura avisou-me, a respeito da carta do cabo-verdiano, para eu nunca mais receber fosse o que fosse de prisioneiros. Fiquei incomodado com a forma como ele reagiu à minha acção e lembro-me de ter regressado à caserna e de ter ficado uns tempos a matutar. O Adulai Djaló, meu colega, amigo e parente, andávamos sempre juntos, chegou-se a mim e perguntou se me doía a cabeça. Recordo muito bem esse episódio. 

Foi nessa altura que tiraram os bidões de água do meu carro e me puseram a “rebenta-minas”. Davam instruções para a segunda viatura, a que ia atrás da minha, manter a distância de, pelo menos, 100 metros. Nunca faltei a uma saída.

E foi por causa dele que eu e o Tomás Camará fomos para o grupo do Alferes Saraiva. 

Agora que estou a escrever este episódio da minha vida na Guerra da Guiné, recordo que na noite de 23 de Dezembro de 1971, o Adulai Djaló morreu nas minhas mãos, em Morés, numa noite em que tivemos cinco mortos e vários feridos, já não me lembro de quantos, só sei que um estava em estado muito grave. 

Agora, voltando ao regresso de Cuntima. Quando chegámos ao quartel de Nema, os colegas receberam-me com uma mesa cheia de bebidas. Ficámos ali até às 16h00, quando nos vieram buscar, e dali seguimos para a pista, entrámos num Dakota e pouco depois das 17 e tal estávamos em Brá.

(Continua)
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Notas do autor ou do editor literário ("copydesk") (VB):

[1] Nota do editor:  extraído do relatório: 28/03/66. Op Vamp: Faquina Fula, Colina do Norte, Cuntima, Farim. 

Informações relatavam a deslocação junto à fronteira com o Senegal de um numeroso grupo IN, prevendo-se a entrada por Sitató ou por Faquina Mandinga em direcção a Sulucó, Dando Mandinga-Cambajú. O plano previa a heliportagem para uma bolanha em Sitató, nomadização com a duração prevista de 48 horas, deslocação dos grupos até Cuntima pelos seus próprios meios e depois em coluna até Farim com regresso a Bissau em Dakota. 

30 elementos dos grupos “Centuriões” e “Diabólicos” saíram de Brá às 05h45. Partiram da BA 12 em seis Alouettes-III às 06h00. Às 7h00 foram largados na bolanha de Sitató. Cerca das 07h30 iniciaram a progressão rumo a Faquina Fula, que atingiram às 09h30. 

Por volta das 10h30, quando atravessavam uma bolanha entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, ouviram um tiro. A seguir, risos e vozes. Uma rajada, gargalhadas, outra rajada de três ou quatro tiros, mais risos. Dirigiram-se para a orla da mata, depois progrediram na direcção das vozes. 

Cerca das 11h00 encontraram elementos INs a conversarem enquanto um limpava uma arma, numa pequena clareira com casas de mato em volta. Abriram fogo à queima-roupa e entraram nas casas de mato. Seguiram-se momentos de grande confusão que impediram o uso das armas. 

Na primeira fase, o IN limitou-se a fugir. Minutos depois, quando se procedia à recolha do material abandonado (2 metralhadoras-ligeiras Degtyarev, 2 Simonovs, 1 PM Thompson, 1 PM Shpagim, 1 PM Beretta, 1 esp. Mauser, 18 granadas de mão, 1 granada de RPG, 27 carregadores para vários tipos de armas, bornais, porta-carregadores, munições e documentação diversa), abriu fogo de morteiro para dentro do acampamento. 

Cerca de meia hora depois de lançado o ataque, os grupos abandonaram o acampamento a arder. Entraram em Cuntima às 13h30. A CArt 732, em coluna auto, transportou-os no dia seguinte para Farim. O regresso a Brá foi feito num Dakota um dia depois.

[2] Meio-irmão do Comando Abdulai Queta Jamanca. 

[3] Nota do editor: na altura ocupado pela CArt 732 / BArt 733. 

[4] Nota do editor: 29 Março 1966.
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Nota do editor LG:

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3241: O meu baptismo de fogo (1): E depois, nunca mais houve paz em Cuntima... (Virgínio Briote)

Guiné > Zona Leste > Cuntima > CCAV 489 > Abril de 1965 > Na estrada que vinha do Senegal e atravessava a povoação de Cuntima (mais tarde conhecida pela Avenida do Senegal), a fotografia dos oficiais da CCAV 489. Da esquerda para a direita, o Adilson (Didi), o médico Dr. Lourenço (açoreano da Terceira), o Cap Pato Anselmo (mais tarde tornado famoso por se ter rendido em 25 de Abril de 1974 ao Cap Salgueiro Maia, com os carros de combate na Baixa lisboeta), eu (VB) e o outro alferes maçarico (que era assim que se chamavam na altura os recém-chegados), chamado Carvalho.

Foto e legenda: © Tantas Vidas, Blogue de Virgínio Briote, Lisboa (2008). Direitos reservados.


1. O nosso editor Virgínio Briote, convém lembrá-lo, foi Alf Mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (Jan/Mai 1965). Estava lá em rendição individual. Esta unidade participou na célebre Op Tridente (Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964). O Batalhão era comandado pelo Ten Cor Fernando Cavaleiro, que também foi o comandante das forças terrestres na Op Tridente.

O Briote fez depois, como voluntário, o 2º curso de instrução dos Comandos. Foi comandante do Grupo Diabólicos (Set 1965 / Jun 1966). Regressou a casa em Janeiro de 1967. O episódio que relata aqui, com muita finura de estilo e sentido de humor, passa-se no período em que estve com os velhinhos da CCAV 489, em Cuntima.

Espera-se que o nº 1 desta série seja o início de uma colecção de histórias, relatos ou depoimentos sobre a primeira vez do guerreiro, o tão ansiado (e temido) batptismo de fogo...

O nosso querido companheiro destas lides bloguísticas é, também ele, talentoso autor de um notável mas discreto blogue, Guiné, Ir e Voltar... Como eu já há tempos o defini, é "um blogue intimista sobre a arte da guerra e do amor em tempo de guerra, da amizade, da camaradagem, da solidariedade, da cumplicidade, da alegria de viver, da recusa da lógica estreita do matar para não morrer, da memória, do retorno, do ir e do voltar"... (LG)


2. O meu baptismo de fogo > Faquina Fula, Faquina Mandinga

por Virgínio Briote


Meu Capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados! Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos (1) que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!

O pessoal está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho, o Capitão para eles.

Mas Cuntima é uma pista desimpedida para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias. A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos azelhas.

Ao princípio da tarde numa conversa com o Furriel Covas, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do Capitão, que fez questão de assistir à partida.

Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir? Voluntários, só voluntários, o Capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou. Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu Capitão, o soldado a insistir! Dos Furriéis só não foi o Duarte que não tinha jeito para voluntário. Vinte e dois deram o passo em frente, mais um guia indígena e cinco auxiliares nativos.

Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.





Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.

Para os lados de Sitató (1), quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos e de pequenos baga-baga. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.

Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.

Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Já? A que propósito?

Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.





Não foi esta mas era uma coluna de abastecimentos do PAIGC, escoltada por elementos armados. Imagem do Centro de Documentação Amílcar Cabral, Fundação Mário Soares. Com a devida vénia.


Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? Família muito grande, não é?

E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?

Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.

Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e muita população civil. O Capitão ao encontro deles, então?

Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu Capitão? Tudo bem, queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando (3).

Uma desorganização total, meu Capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra...

Espera-lhe pela volta, o Didi a virar costas, quem havia de ser?

Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.

A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.

Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, o dr. Lourenço, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.

No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.

A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ferreira tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.

O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio de Janeiro, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.

O Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.








O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi. Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting.

O Capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos assustados. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel (4) daqueles.

O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? No Internacional, do Mário? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!



© Virgínio Briote (2008)

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Notas de vb:

(1) Referência à Op Tridente, Ilha do Como, em que a CCav 489 participou integrada no BCav 490 (Jan-Mar 1964).

(2) Corredor de passagem para Canjambari e daí para o Oio.

(3) “Nas regiões fronteiriças, o adversário procura pôr-se a coberto da acção das NT refugiando-se nos territórios vizinhos. Uma emboscada montada nas cercanias de Colina do Norte, Cuntima, foi bem sucedida e causou dois mortos e vários feridos confirmados. Os bandoleiros fugiram para a República do Senegal, donde flagelaram as NT. Nesta acção foi capturado armamento, munições, material diverso e abastecimentos.” Do Boletim nº 6, do E.M.

(4) Ten Cor Fernando Cavaleiro.