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segunda-feira, 7 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > CCAÇ 2479 / CART 11 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece (mas parece ser uma cara "familitar", a de futuro soldado da CCAÇ 12) ... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, anorte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...
 
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 

Foto (e legeenda) © José Cortes (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


III (e Última) Parte - De 14 a 15 de junho de 1998:  
De Bafatá a Fajonquito


por Cherno Baldé (*)


8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)

Na tarde do dia 14 de junho de 1998, uma semana depois do inicio da guerra ( a 7 de junho), chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. 

Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. 

Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. 

Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. 

O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum.

 Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas à volta da Cidade.

Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)


Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada,  vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). 

O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. 

A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros,  iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.


9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito:  "lar, doce lar"...

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito

Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura. (Distância Bambadinca-Cacine, 103 km).

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja,  10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar

Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.
                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
__________

Notas do autor:

(1) O sufixo el depois de qualquer nome na língua fula- Sekuel, Gadamael- Contuboel- significa pequenino e, logo, lindo. A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado ao que é pequeno, que não é grande.


5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998

domingo, 6 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23053: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: de 11 a 13 de junho de 1998, de Safim a Mansoa: uma dádiva de Deus


Guiné > Carta de Bissau (1949) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nissau, Ajuda , Brá, Bissalanca, Antula, Cumeré, Jal, Safim e Nhacra

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Guiné > Região de Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... (e depois Nhacra e Mansoa)

Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


Parte II-  De 11 a 13 de junho de 1998: De Safim a Mansoa, uma dádiva de Deus 

por Cherno Baldé (*)


5º dia,  11 de junho, quinta-feira, Safim. (*)

Na manhã do quinto dia, 11 de Junho de 1998, decidi que desta vez se a Djenaba, a minha cunhada, irmã mais velha da minha esposa,  não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. 

No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar, na zona de Brá. Ainda o fluxo da população era enorme. 

Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada de volta a Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade [Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças,  dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra

O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério, cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. 

A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar à estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine, que ainda não tinham sido exorcizados de todo.

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio,  seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. 

Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros, caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste, pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo, a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. 

As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. 

Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, para não dizer impossível, para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.



Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (28 km), Bissau (49 km)...; para leste, Enxalé (50 km), Bambadinca (65 km), Bafatá (93 km)... De Bissau a Fajonquito, o "refúgio" do Cherno Baldé e família eram caerca de 200 km.

Foto (e egendaO: Paulo Raposo (2006)Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


7º dia, 13 de junho, sábado, Mansoa:  O perigo ainda a espreita

No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte, o  leste e o sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e, para conseguir um lugar num desses camiões,  era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. 

Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito,  aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e os sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámo-nos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti, ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. 

Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação e, como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. 

O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e, chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira,  perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. 


Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos, sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Foto (à esquerda): Cherno Baldé em Fajinquito  (2010) . 

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte  já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste. E funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares. 

Por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [de Ansumane Mané,], aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo.

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa a Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei, então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. 

Foi com grande alívio que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, Fajonquito, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia a Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome,  pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.

(Continua)
___________
 
Nota do editor:

(*) Último poste da série > 5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998                                 

sábado, 5 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Bafatá > Setembro de 2000 > O filho mais velho do Cherno Baldé e de Geralda Santos Rocha, de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"... Hoje formado em engenharia de energias pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Fajonquito > 2006 >  Os quatro filhos de Cherno Baldé e de 
Geralda Santos Rocha. 


Guiné-Bissau > Bissau > s/d > "Minha mulher, Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, com quem sou casado desde 1992, período que coincide com a minha passagem por Lisboa (1992/94) para frequência do curso no ISCTE"

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1.  O nosso amigo e colaborador permanente do nosso blogue, Cherno Baldé, formado na antiga União Soviética em Planificação e Gestão Económica (Universidade de Kiev, 1990), com uma pós-gradução no ISCTE-IUL (Lisboa, 1992/94), é uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do seu tempo, desde miúdo, quando foi apanhado pela "guerra de libertação" ou guerra colonial, logo em 1964, na sua terra natal, no regulado de Sancorlã.

De 1968 a 1974 viveu em Fajonquito, tendo-se tornado um "cão rafeiro" do quartel local... Afeiçoou-se aos militares portugueses que passaram por aquele arquartelamento da região de Bafatá, sector de Contuboel, perto da fronteira com o Senegal, e que lhe puseram a alcunha de "Chico"... É autor de um notável série, "Memórias do Chico, menino e moço" (de que já publicámos, a partir de 2011, mais de meia centena de postes).  Integra a nossa Tabanca Grande desde 18 de junho de 2009. Tem  255 referências no nosso blogue.

Depois da independência, foi estudar para Bafatá, em 1975 (ciclo preparatório e parte do ensino secundário). Em 1979 vai frequentar o liceu de Bissau, que acaba em 1982. Em 1986 parte como estudante bolseiro para a URSS (Moldávia e Ucrânia). Teria já os seus 26/27 anos (nasceu por volta de 1959/60).

Regressa, com uma licenciatura, ao seu país em 1990, já depois da queda do "muro de Berlim" e a "implosão" da União Soviética. Casa-se em 1992 e faz uma pós-graduação no CEA - Centro de Estudos Africanos /ISCTE, em Lisboa (1992/94). 

Em 1998, está em Bissau, a trabalhar como quadro superior na administração pública, mais exatamente no  Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento. Vive em Brá, no chamado Bairro Militar, com algumas regalias.

No dia 7 de junho de 1998 é apanhado pelo golpe de Estado e a subsequente guerra civil de 1998/99.  É obrigado a deixar a sua casa, no Bairro Militar, e sair de Bissau com a família (ele, a esposa, o filho de 3 anos e uma sobrinha de cinco ), mais a família da irmã da sua esposa, de nome Djenaba, num total de 10 pessoas (3 adultos e 7 crianças),  refugiando-se na sua terra natal, Fajonquito. 

Deixam a casa, em Bissau, no dia 11,  chegam a Safim, procurando desesperadamente por um transporte que os leve para longe da guerra, para Fajonquito. Consegue, através dos seus conhecimentos, uma boleia para Mansoa, a 13 de junho, até apanhar um camião, que o leva ao seu "refúgio", em Fajonquito, aonde chega no dia  seguinte, passando por Bambadinca e Bafatá. Nesta viagem faz também uma "retrospetiva" do seu passado recente (os anos passados em Bafatá, em 1975/79, e depois na URSS, 1986/90).

Em 2001/02, o Cherno viu-se na contingência de ter de emigrar para Portugal, onde trabalhou na construção civil, como simples "trolha" na construção do complexo Alvalade XXI. É sportinguista de coração.

Voltamos a reproduzir, em três partes, as memórias que ele nos mandou, em 16 de setembro de 2010,  desses tempos difíceis, que ele soube enfrentar e superar com coragem, inteligência emocional,  lucidez e sentido de solidariedade (*).


 2. Excerto de mensagem que o Cherno Baldé nos mandou há quase 12 anos atrás:

Data - 16/09/2010, 12:40
Assunto - Recordações da guerra de Bissau

 Estimado amigo e irmão Luís Graça,

Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena família, melhor, do seu desajeitado chefe, no início da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do período que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este período se houver interesse. (**)

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei, em 2001/2002,  na construção do complexo Alvalade XXI (onde se enontra o novo Estádio José Alvalade, como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a "cunha" ou  ajuda de uma família Portuguesa com a qual mantínhamos excelentes relações de amizade e estima. 

Os encarregados topavam logo,  com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Aí reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor. (...)

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS - A foto mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em setembro de 1998. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU, 
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998

Parte I -  Bissau, 7-11 de junho de 1998

1º dia,  7 de junho de 1998, domingo: o rebentar do conflito

Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas,  acompanhados de rajadas de metralhadoras. 

Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos à mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
 É um golpe de estado, de certeza! – disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em Santa Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e, no início da tarde, houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado, seguido de um compasso de espera. 

As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.


2º dia, 8 de junho, segunda feira: o início de um calvário que só terminaria um ano depois, com o fim da guerra

A partir do segundo dia, 8 de junho, começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Companhia), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham-se amotinado contra o regime. 

As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. 

Oh, pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres, pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.


3º dia, 9 de junho, terça feira: saída da família do Bairro Militar para o Bairro da Ajuda

No terceiro dia, 9 de Junho, o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. 

Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba, no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha, fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. 

Foi aí que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo, desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.


4º dia,  10 de junho, quarta-feira: relembrando o pesadelo de Kiev, em 1990 ("Matem o macaco preto!")

Na manhã do quarto dia de conflito, 10 de junho, sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. 

Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “Manel Iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar, física e verbalmente. 

Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o "status quo". Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: "Matem o macaco preto!"... 

As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. 

Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas, doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de Perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.


“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível

No momento, nesse dia 10 de junho de 1998, também estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. 

A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. À minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela à frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. 

Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!” (1).

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

Julgo que caminhámos três quilómetros.
 Ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. 

Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. 

Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e, se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
 Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
 Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame.

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ?
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.

É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
 Já cheguei! – diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio, pensei comigo.
 Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho!  repetiu ela.
Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
Kuma kí´ú nomi?
 Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. 

Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. 

Em casa da Djenaba, minha cunhada, reinava uma calma aparente pois, estando o marido fora, ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
 Não!  disse-me prontamente Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro Militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.


5º dia, 11 de junho,  quinta-feira: a guerra civil em marcha

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. 

Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão "ad-hoc" de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. 

O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do Norte e do Sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.

(Continua)
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Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanço ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.


3. Comentário do editor LG:

Os portugueses, felizmente, não sabem o que é uma guerra civil desde os anos de 1830 (lutas entre liberais e absolutistas, 1828-1834) nem o que é a invasão do solo pátrio por tropas estrangeiras desde as invasões napoleónicas (1807-1810)...

Podemos, no entanto, tentar pôr-nos na pele dos nossos amigos guineenses, o Cherno Baldé e família, o Pepito e família, o Patrício Ribeiro e outros, que estavam lá, em 7 de Junho de 1998, quando a Junta Militar de Ansumane Mané tentou derrubar 'Nino' Vieira (o que viria a acontecer quase um ano depois, em maio de 1999, após um conflito sangrento, que incendiou todo o país e que levou muitos guineenses ao exílio  (caso do Pepito e da Isabel Levy,  por exemplo, que foram viver para Cabo Verde  durante cerca de um ano)ou a ref+ugio da terra natal (como foi o caso do Cherno Baldé e família).

É um período da história recente da Guiné-Bissau mal conhecido dos antigos combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial... Nessa altura (1998/99) andávamos distraídos com outras coisas e, se calhar, tínhamos pouca pachorra para sequer ouvir e entender os eternos problemas dos nossos pobres amigos  guineenses... Além disso, Lisboa estava em festa, com a Expo 98, que decorreria entre maio e setembro de 1998...

O Cherno dá a verdadeira dimensão, humana, ao conflito político-militar que levaria à queda de um regime, à invasão do país de tropas estrangeiras (Senegal e Guiné-Conacri), à desertificação e pilhagem de Bissau, à miséria, fome e pobreza,  enfim, ao agravamento, ainda mais brutal, das condições de vida dos guineenses... No final, o conflito saldou-se por alguns milhares de mortos e a duas ou três centenas de milhares de refugiados,

No caso do Cherno, era preciso pôr a família a salvo, numa viagem de mais de uma semana, de sobressaltos, de Bissau a Fajonquito (menos de 200 km), passando por Nhacra, Mansoa, Bambadinca e Bafatá... Tinha o seu filho mais velho três anos...

Obrigado, Cherno, é mais um depoimento comovente mas ao mesmo atravessado por surpreendentes reflexões filosóficas e éticas sobre a condição humana...  

PS - As marcas deste grave conflito político-militar ainda hoje são visíveis, nomeadamente em Bissau. Veja-se aqui uma reportagem (com vídeo) feita em 7 de junho de 2019 pela DW - Deutsche Well, da autoria do jornalista Braima Darame ( "Guerra de 7 junho deixou Guiné-Bissau frustrada e a culpa é dos políticos".
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Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 17 de setembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente 'Nino' Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito vai provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de julho de 1998, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua. 

 No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. 

A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de maio de 1999. Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos  em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23046: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte VI: Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado

1. Porque alguns dos nossos leitores mais recentes não acompanharam, na altura, a série "Memórias do Chico, menino e moço" (de que se publicaram, a partir de 2011, mais de meia centena de postes), decidimos "repescar" alguns postes do Cherno Baldé, no contexto do pós-independência da Guiné-Bissau, relacionados com o seu  percurso escolar (ciclo preparatório e liceu, em Bafatá e Bissau, 1975/1982, e depois universidade, na URSS, Moldávia e Ucrânia, 1986/1990). 

 Voltará ao seu país, em 1990, com uma licenciatura em Planificação e Gestão Económica, pela Universidade de Kiev, já depois da queda do muro de Berlim e do fim da URSS.(*)

Sobre o tempo de Kiev (1986/90), só temos alguns poemas, que republicamos, juntamente com alguns comentários sobre essa época, de que ele guarda, naturalmente,  boas e más recordações,

Recorde-se que o Cherno Baldé, que vive em Bissau, é nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas e, profissionalmemte, é gestor de projetos na empresa MF CAON FED, Guiné-Bissau. (Vd. aqui a sua página do Facebook). 

Segue-se então  colagem de vários comentários e excertos de postes ainda relacionados com o seu tempo passado no "império dos sovietes", inckuindo uam seleção dos seus poemas de Kiev (1986-1990).


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte VI:  Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado


por Cherno Baldé (*)


(...) Neste preciso momento a Ucrânia está a ferro e fogo. O meu coração está dilacerado e lamento que gente boa e pacífica que aprendi a gostar e admirar, esteja a sofrer por motivos que os ultrapassam.

Choro por Ucrânia, mas compreendo a Rússia. É uma guerra entre irmãos da mesma mãe, a Kievski Rush. A Russia tem suas raízes enterradas terras ucranianas apelidada nostálgicamente de "Ukraína" a nossa terra distante, longínqua.

Não há palavras para expressar nem de justificar (...)

24 de fevereiro de 2022 às 21:32

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(...) Eu estudei na antiga URSS, sim, onde, juntamente com o leite e mel servido na cama individual, também nos serviam expressões agradáveis como " Ó macaco preto,  volta para a tua terra!".

Uma vez, em Kiev, conversando entre amigos e colegas de turma de várias nacionalidades, um Russo nos interpelou cheio de curiosidade:
- Disseram-me que vocês,  africanos,  nos vossos países, vivem em cima das árvores, mas como é que conseguem montar as camas ?

E alguém dos nossos respondeu-lhe:
-Sim,  é verdade,  e se queres saber mais digo-te que o vosso embaixador que vive lá connosco, está hospedado e dorme na árvore mais alta da nossa floresta. (...)

14 de setembro de 2010

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(...) Para aqueles que não sabem (o que é pouco provável) quero informar que, também, nós, Africanos (Pretos, se quiserem), tivemos a oportunidade de viver em terras da Europa, esta velha Europa, orgulhosa e racista, mas que também sabe ser, às vezes, acolhedora e bondosa. E também nós tivemos, temos e teremos as nossas experiências não menos dramáticas com as Marias e as Natachas.

Diz um ditado popular que "o mundo é como o rabo de uma pomba" que faz viragens permanentes. Eu nunca utilizarei o termo puta porque penso que o não foram e aí o Jorge Cabral é bem explícito. Se todos os homens fossem tão humanos como o são as mulheres (todas as mulheres), o mundo seria mais justo e a vida mais fácil de viver. (...)  

20 de julho de 2009

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(...) O meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. 

Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.

Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu,  Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.

Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo. (...)


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Poemas da Juventude (Kiev, 1986-1990) (seleção)

PENSAR

Acontece-me pensar…Pensar…pensar…
Como aos poetas, sonhar.

No denso sepulcro da memória
No despertar inadiável da vida
O caminho ainda longo.

Acontece-me querer voltar ao passado longínquo da origem
Sempre presente em silêncio.
No passo das minhas pegadas, mal varridas pela erosão do tempo
Medir a força das lianas, razões de tropeço na caminhada.
Acontece-me pensar, acontece-me querer voltar
Aos tempos primeiros da infância
A altura daquelas montanhas agrestes, sulcadas pela corrente de suor,
Do meu corpo na luta
Uma vista de olhos passar a Baobab que eterniza a tabanca
Berço dos meus sonhos
Sentir no corpo e na alma, a brisa que embalou a infância
A voz da floresta em pranto e o gosto amargo das raízes violadas

Lá, mais para oeste …
De El-miná ou Ouida
De Badagry ou N´goré
O caminho do mar,
Em ondas lacrimosas da viagem sem regresso

(Kiev, Dezembro de 1987)



OBSERVADOR



Observador
Espectador
Nos parques
O mundo a renascer
Em cada primavera
Nas ruelas,
Em compassos lentos
Dos pares e dos sonhos floridos

E tu desvairado, aonde vais? Ao “magazin" (1)
Não! Eu vou para Magadan (2),
Ainda antes do Buran (3),
Antes do voo e das vozes do mundo,
Que estão por nascer.

(Kiev, Abril de 1990)

Legenda do autor:

1- Magazin – Loja, mercearia de produtos de primeira necessidade
2- Magadan – Localidade Russa situada algures na Sibéria oriental
3- Buran – Vaivém Espacial Soviético inaugurado em finais da década de 80


[Seleção, fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulo: LG]


24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...

23 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23018: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte II: Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...Tubab é uma senhora e senhora não é mulher

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - 23037: Memórias do Chico no império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte V: No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem contrapartida financeira


Cherno Baldé, em Kiev, Ucrânia, 1989


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte V:  No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem  contrapartida financeira


por Cherno Baldé (*)


(xvii) No campo de férias de uma Sovkhoze

Aqueles que ficaram [, na Moldávia, durante as férias de verão de 1986, como Chiquinho] (*) foram convidados para integrar as brigadas de trabalho de campo numa Sovkhoze (propriedade agrícola do Estado) (**).

Logo no primeiro dia levaram-nos para a colheita de maçãs. Mal sabiam do erro que tinham cometido. A fruta estava bem madura e bem saborosa, de diferentes cores e tamanhos numa área extensa. Os estudantes assaltaram as árvores como um bando de macacos. Depois do magistral banquete, deitaram-se à sombra. 

Quando os camiões que vinham para o carregamento da fruta chegaram,  ainda nem metade do trabalho estava feito e,  pior ainda, o trabalho não tinha servido de nada, pois no dia seguinte toda a colheita tinha sido deitada fora por causa das manchas pretas provocadas pela brutalidade dos desprevenidos trabalhadores, oriundos essencialmente de países tropicais. As maçãs tinham-se mostrado ser muito mais frágeis do que as frutas que a maioria conhecia na sua terra.

No segundo dia, tentaram corrigir o erro e mandaram-nos para uma plantação de apricots (damascos). Disseram-lhes que no fim, o pagamento seria feito mediante a quantidade de caixotes da fruta que tivessem enchido. A colheita durou alguns dias e tudo parecia bem encaminhado, mas a partir da segunda semana, já cansados da rotina, começaram a procurar uma estratégia de contornar a situação.

Foi um estudante de Bangladesh que deu o mote, e  que rapidamente foi adotado pelo resto do grupo. Colocaram ramos da árvore por baixo dos caixotes, completando a parte de cima com a fruta vermelho rubra. O rendimento tinha aumentado rapidamente, enchendo muitos camiões. Só descobriram o logro no dia seguinte.

Em retaliação desta aldrabice, o grupo foi desmantelado, os seus elementos foram dispersos, engrossando outras equipas. O Chiquinho continuou na companhia do Amin, o genial rapaz de Bangladesh que tinha mostrado claramente que não tinha aterrado naquela terra para se transformar num Kolkhoznik (trabalhador de colectividade agrícola).

Para acabar com a brincadeira, mandaram-nos para a poda de um extenso campo de pés de uvas recém-plantadas. Com o sol a queimar as espinhas no campo aberto, não tardou muito para que a maioria se despistasse à procura de água e de sombra. Quando os vieram buscar, ao fim da tarde do primeiro dia de trabalho, ainda não tinham avançado vinte metros ao longo das fileiras que se estendiam por mais de um quilómetro de comprimento.

Do campo de uvas, foram enviados para a colheita de abóboras verdes, mas os resultados não eram muito melhores, pois os estudantes,  esfomeados, comiam a maior parte das abóboras que encontravam e que eram destinadas aos animais e à indústria da conserva. 

(xix) Valeu-lhes a bola...

No fim deste ciclo de insucessos, acabaram por ser dispensados do trabalho de campo, sem diploma de mérito nem contrapartida financeira.

O campo de férias prolongou-se ainda por mais algum tempo. Dispensados do trabalho, depois de terem demonstrado aquilo que não sabiam fazer,  que era trabalhar, criaram uma equipa de futebol para passar o resto dos dias que lhes restavam antes do regresso a Kichinev onde os esperava a afetação para as cidades onde deveriam continuar os estudos (, que no caso do Chiquinho seria Kiev, capital da Ucrânia,  onde frequentou a universidade estatal nos anos letivos de 1986/87, 1987/88, 1988/89, 1989(1990, tendo se formado em economia; regressou da então URSS em 1990).

[Fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG] 

Texto original: Poste P8870 (***)

(Contimua)
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Notas do editor:

(**) Sovkhoze (palavra russa) : s. m.  Na ex-U.R.S.S., grande herdade modelo do Estado, com a finalidade de exploração piloto. (Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  

Também havia o kolkhoze  (palavra russa)  s. m. Na ex-U.R.S.S., cooperativa agrícola de produção, que detinha perpetuamente as terras que ocupava e a propriedade colectiva dos meios de produção.(Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

(***) Vd. poste de 8 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8870: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (28): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte IV) (Cherno Baldé)