sábado, 8 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8870: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (28): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte IV) (Cherno Baldé)

Continuação do relato do Cherno Baldé [, cuja infância foi passada no quartel de Fajonquito, durante a guerra colonial, e hoje é quadro superior da administração pública da Guiné-Bissau, ] sobre as aventuras e desventuras do Chiquinho, enquanto estudante, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia  (1986-1989).


(4) No campo de férias de uma Sovkhoze

Aqueles que ficaram [, na Moldávia, durante as férias de verão de 1986,] (*) foram convidados para integrar as brigadas de trabalho de campo numa Sovkhoze (propriedade agrícola do Estado) (**).

Logo no primeiro dia levaram-nos para a colheita de maçãs. Mal sabiam do erro que tinham cometido. A fruta estava bem madura e bem saborosa, de diferentes cores e tamanhos numa área extensa. Os estudantes assaltaram as árvores como um bando de macacos. Depois do magistral banquete, deitaram-se à sombra. 

Quando os camiões que vinham para o carregamento da fruta chegaram,  ainda nem metade do trabalho estava feito e,  pior ainda, o trabalho não tinha servido de nada, pois no dia seguinte toda a colheita tinha sido deitada fora por causa das manchas pretas provocadas pela brutalidade dos desprevenidos trabalhadores, oriundos essencialmente de países tropicais. As maçãs tinham-se mostrado ser muito mais frágeis do que as frutas que a maioria conhecia na sua terra.

No segundo dia, tentaram corrigir o erro e mandaram-nos para uma plantação de apricots (damascos). Disseram-lhes que no fim, o pagamento seria feito mediante a quantidade de caixotes da fruta que tivessem enchido. A colheita durou alguns dias e tudo parecia bem encaminhado, mas a partir da segunda semana, já cansados da rotina, começaram a procurar uma estratégia de contornar a situação.

Foi um estudante de Bangladesh que deu o mote, e  que rapidamente foi adotado pelo resto do grupo. Colocaram ramos da árvore por baixo dos caixotes, completando a parte de cima com a fruta vermelho rubra. O rendimento tinha aumentado rapidamente, enchendo muitos camiões. Só descobriram o logro no dia seguinte.

Em retaliação desta aldrabice, o grupo foi desmantelado, os seus elementos foram dispersos, engrossando outras equipas. O Chiquinho continuou na companhia do Amin, o genial rapaz de Bangladesh que tinha mostrado claramente que não tinha aterrado naquela terra para se transformar num Kolkhoznik (trabalhador de colectividade agrícola).

Para acabar com a brincadeira, mandaram-nos para a poda de um extenso campo de pés de uvas recém-plantadas. Com o sol a queimar as espinhas no campo aberto, não tardou muito para que a maioria se despistasse à procura de água e de sombra. Quando os vieram buscar, ao fim da tarde do primeiro dia de trabalho, ainda não tinham avançado vinte metros ao longo das fileiras que se estendiam por mais de um quilómetro de comprimento.

Do campo de uvas, foram enviados para a colheita de abóboras verdes, mas os resultados não eram muito melhores, pois os estudantes,  esfomeados, comiam a maior parte das abóboras que encontravam e que eram destinadas aos animais e à indústria da conserva. No fim deste ciclo de insucessos, acabaram por ser dispensados do trabalho de campo, sem diploma de mérito nem contrapartida financeira.

O campo de férias prolongou-se ainda por mais algum tempo. Dispensados do trabalho, depois de terem demonstrado aquilo que não sabiam fazer,  que era trabalhar, criaram uma equipa de futebol para passar o resto dos dias que lhes restavam antes do regresso a Kichinev onde os esperava a afetação para as cidades onde deveriam continuar os estudos.

Cherno Baldé [, foto à esquerda, na Ucrânia, em 1989]

[ O texto acaba aqui. Mas presume-se que tenha continuação]

[ Revisão / fixação de texto: L.G.] 
________________

Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 6 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8863: Memórias do Chico, menino e moço (27): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte III) (Cherno Baldé)

(**) Sovkhoze (palavra russa) : s. m.  Na ex-U.R.S.S., grande herdade modelo do Estado, com a finalidade de exploração piloto. (Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  Também havia o kolkhoze  (palavra russa)  s. m. Na ex-U.R.S.S., cooperativa agrícola de produção, que detinha perpetuamente as terras que ocupava e a propriedade colectiva dos meios de produção.(Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

3 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Vou fazer um comentário.Depois.
Tenho os escritos guardados e continuo a aprender contigo Amigo.

Espero a continuação.
Por agora um abraço do T.

Antº Rosinha disse...

Tcherno, provavelmente já deve haver material para um enorme livro de um escritor africano lusófono.

Abre essas gavetas e põe cá fora esse material.

Em bilingue Russo e português dá bestseller.

Coragem, que é garantido, anda rápido porque os teus leitores estão a ficar velhos, cá e na União Soviética.

Hélder Valério disse...

Caro Cherno

Realmente, agora é de ficar à espera da continuação.

A vida não parou ali. A aprendizagem não terminou (aliás ela é contínua...). O encantamento e as desilusões também não teriam acabado. As tuas 'pequenas diabruras', ou seja, o teu sentido de humor, de observador e de marotice terão tido desenvolvimentos e embora não se pretenda que te exponhas totalmente (e deixa que repita que acho duma coragem tremenda tudo o que já tens revelado) fica-se com a ideia que "a história continua"...

Por isso vou aguardar o resto, dizendo que tens também muito mérito na forma escorreita como fazes as descrições das diferentes situações.

Abraço
Hélder S.