quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8859: Notas de leitura (283): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte II) (Luís Graça)




 Excerto de Tarrafo, de Armor Pires Mota (1ª edição, Aveiro,  1965), p. 127. Este título foi substituído por "É com ferro estrangeiro", na 2ª edição (Braga, 1970), p. 192.


Continuação do poste P8830 (*):

1. Do livro de crónicas sobre a guerra colonial na Guiné,  Tarrafo, da autoria de Armor Pires Mota, há duas edições: a primeira, de 1965, logo de imediato posta fora do mercado, pela polícia política de então; e uma “2ª edição, autorizada” (sic), de 1970.

Possuímos, da 1ª edição, um exemplar fotocopiado, provável cópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro (de que o autor foi aluno) . 

Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” , além de cerca de um centena de parágrafos e frases sublinhados, possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção.  

Segundo o próprio autor, são marcas da PIDE, como ele próprio escreveu ao Beja Santos:

" (...) Finalmente, fiz seguir os livros, entre os quais o Tarrafo. Esgotado que está, envio-lho fotocopiado, um dos exemplares 'vistos' pela PIDE. É o único que tenho e que me veio às mãos quase por milagre. APM"

Possuímos, por outro lado, na biblioteca da Tabanca Grande,  um exemplar da 2ª edição (1970). Cotejando as duas versões, verifica-se que o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões supostamente  de “segurança militar",  impostas pelos "censores" (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… 

O mesmo se passa com alguns topónimos e datas, referentes à atividade operacional da CCAV 488, a que pertencia o Alf Mil Cav Pires Mota… E muitos dos parágrafos e frases assinalados com marcas dos "censores", no exemplar da 1ª edição, foram eliminados ou, no mínimo, revistos na versão de 1970 (publicada pela Pax Editora, de Braga).

Na I parte deste nosso texto de "notas de leitura" (*), vimos, a título de amostragem, e num primeiro resumo, que os censores em tempo de guerra fazem questão de esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo, certas situações sociais de miséria que eventualmente poderão ser exploradas pela propaganda inimiga, tanto no plano interno como a nível internacional (por ex., as crianças de Bissau, a prostituição no Pilão, a fome de mulheres, crianças e velhos no mato)…

Estupidamente ou não, os censores querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos combatentes debaixo de fogo… Sem que se saiba exatamente o que vai nas suas cabeças, preocupam-se aparentemente com o moral da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou sub-valorizar a força do inimigo...Aconteceu historicamente em todas as épocas e em quase todas as sociedades...

Referências à atividade operacional e a agressividade do IN, são eliminadas ou suavizadas na 2ª edição deste "livro de crónicas". Por exemplo, títulos como aquele que se reproduz acima ("Cem casas de mato", p. 127, 1ª edição) são inadmissíveis aos olhos dos "censores"... E na edição de 1970, o autor é obrigado encontrar um título mais neutro: "É com ferro estrangeiro" (referência à origem do material de guerra apreendido pelas NT, de diversa proveniência: 1 metralhadora Bren BK1, 1 pistola metralhadora Thompson, 2 carabinas Mosin Nagan)...

O autor relata, neste episódio, o assalto a (e a destruição de) um acampamento IN, em Fambantã, no setor de Farim (se não me engano), a 6 de Março de 1965. As fotos da pág. 129, mostrando a destruição do acampamento, foram retiradas. Também se explora, por outro lado,  os pontos fracos do IN, mas isso não levanta obviamente qualquer objeção por parte dos "censores", bem pelo contrário (mesmo mantendo a menção às tais cem casas de mato): 

(...)"Tão grande acampamento [, cem casas de mato,]  causou-se admiração, de certo modo, porque de facto, eles não se moviam muito há uns meses para cá. Apenas nos roubaram algumas vacas que andavam na pastagem e tentaram atacar o quartel à bazookada, mas falharam os intentos, porque caíram numa emboscada montada pelos fulas, Além disso, estão com os azeites: uns querem como chefe de zona Mamadú Indjai [, mandinga, que será gravemente ferido na Op Anda Cá, no Sector L1, Bambadinca, em Agosto de 1969]; outros não. Que deem com a cabeça nas árvores, que se esfolem e se matem. Trará vantagens. Outra causa, que os leva a não se mexer muito, é a fome. Só têm uma refeição por dia, às 9.30. Depois cada um que se oriente com as raízes e frutos selvagens" (edição de 1965, pp. 128 e 130).

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Tarrafo (2ª edição, 1970): o dia a dia da guerra de contra-guerrilha, no T0 da Guiné, entre Junho de 1963 e Junho de 1965, contado pela primeira vez na primeira pessoa do singular, por um comandante operacional, alferes miliciano, da CCAV 488, natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada,  onde nasceu em 1939. Reprodução das palavras do autor na contracapa. Tarrafo (1ª edição, 1965) é já a promessa do grande escritor que depois se veio a revelar Armor Pires Mota.
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Veja-se também, na 1ª edição, o parágrafo, a páginas 21/22, sobre o que se passava em Mansabá, em Outubro de 1963, com a guerra do gato e do rato: os “bandidos” punham abatises na picada, durante a noite, as NT removiam as árvores cortadas durante o dia…

(…) “ Depois, as coisas continuaram na mesma com poucas variantes. Eles punham de novo, noite dentro, as árvores que nós tirávamos até ao meio dia e derrubavam ainda mais. O estendal começou a tornar-se verde e seco. E assim andámos a fazer este jogo, até que resolvemos nós derrubar todas as árvores à beira do caminho. Mas nem assim nos deixaram em paz muito tempo, fazendo rebentar debaixo das viaturas dois fornilhos e, emboscados, carregaram” (…) . 

A referência aos "fornilhos" também desaparece subtilmente na edição de 1970 (pp. 38-43). Em boa verdade, os "fornilhos" sempre foram,  no TO da Guiné, talvez até mais do que as minas, o tipo de engenhos explosivos que mais terror nos causavam...

A descrição de ferimentos nas NT, o sofrimento dos feridos,  e a imediata prestação de socorros, pelos enfermeiros, também eram situações a eliminar ou a suavizar… (p. 22). 

Por outro lado, nessa época, ainda a G3 tinha coronha de madeira e os nossos camaradas usavam capacete (p. 24).

São anos de brasa, esses, em que mudou profundamente a geodemografia da Guiné, posta a ferro e fogo: aldeias inteiras foram destruídas, Mombocó, Cai, Flora,. etc.; populações inteiras são deslocadas...  E em que não se perdoava, de um lado e do outro,  a traição ou não colaboração (pp. 32/33). A história do “agente duplo” Malan (, antigo guerrilheiro, feito prisioneiro, depois reabilitado e posto ao serviço das NT como guia) fica a meio caminho, ou seja, fica  por contar o seu desfecho, na 2ª edição (1970)…

(…) Malan enganou. Ninguém sabia até esse dia que ele era engajador. Levava bajudas às casa de mato para noites de orgia. Nem ninguém sabia que ele era informador também do outro lado e tinha um rádio escondido numa mala.
- Mim bandido… Tropa amigo. Perdão!
Mas ninguém lhe perdoou.” (p. 33).


2. Notável, entretanto, é a descrição da travessia da bolanha, a caminho de Flora, em Novembro de 1963 (pp. 35-36). O autor vai buscar memórias da sua infância, os sargaços da Ria de Aveiro, mas também as suas leituras de guerra, a Indochina, o “Amanhecer no Pântano” (p.36), do “grande [Jean] Lartéguy”, acrescenta ele, na 2ª edição (p. 62).

Outra referência literária é o Platero, da obra homónima (Platero y yo, 1927) do poeta  espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958),  no episódio “Um burro com sorte, Bissorã, 24 de Novembro de 1963” (p. 37/38).  Platero é a alcunha do burro, aprisionado em Fajonquito…

(…) “Gosto do meu Platero e, ao cair da tarde, de armas a tiracolo, vou dar-lhe de beber ao rio.
- Arre, bandido! Goss, goss… (p. 38)…

3. A terminar esta 2ª parte das minhas "notas de leitura" do Tarrafo, escritas em plenas férias de verão, convirá fazer o seguinte aviso:  não há aqui, da minha  parte, nenhuma crítica subjacente ao autor no subtítulo: "censura e autocensura em tempo de guerra"... Sou um simples leitor, apaixonado, complacente, atento, crítico, curioso...

Não escrevi crónicas de guerra nos jornais da época, como Armor Pires Mota... Podia tê-lo feito, embora me faltasse a motivação. E também não o fiz pela simples razão de levar a sério a existência e a omnipresença da censura, no meu país...  Escrevi cartas a amigos, a partir do TO da Guiné, que nunca cheguei a pôr na caixa do correio... Queria entregá-las pessoalmente, na altura das férias... Acabei por nunca o fazer... Também nunca escrevi aerogramas, porque achava que eram ou podiam ser facilmente censurados... E as relativamente poucas cartas, tranquilizadoras,  que mandava para a família, com fotos minhas, nunca falavam da guerra... Eu também fiz autocensura. L.G.



 Tarrafo, 1ª edição,. 1965. Indice da obra, pp. 157-158. Comparando com a edição de1970, há títulos que foram retirados ou substituídos. Outros foram acrescentados (em 197'0)


(Continua)

Lourinhã, Agosto de 2011

[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]

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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)

4 comentários:

José Marques Ferreira disse...

Saúde e alegria para todos:

Venho por aqui, diariamente, e dei de caras com mais uma mão cheia de coisas, que só dois ilustres pensadores (leia-se escritores) sabem fazer: Luís Graça e Armor Pires Mota.
Este, que mo~ra aqui ao meu lado a pouco mais de uma dezena de quilómetros e com quem me encontro quando necessito de ajudas... «de palavras», «de escrita».
Além do que tem sido dito aqui, queria acrescentar, se é que se trata de ua novidade, que, além do livro «Tarrafo» há ainda «Guiné Sol e Sangue», do qual tenho em meu poder um exemplar. Claro autografado pelo autor e... imaginem, em 11/12/1970. A dedicatória não a vou aqui repetir.
Este livro surge quase na esteira do «Tarrafo» que aqui tem sido referido.
Foi editado pela Editora Pax - Braga - 1968, portanto pouco tempo depois do Armor ter regressado da Guiné. Viajamos no mesmo barco até Lisboa. O já, de certeza, «falecido» Niassa. Do modo como o Luís tem tratado o «Tarrafo», e bem, com a mesma competência pode ir tratando este «Guiné Sol e Sangue»
Falei agora com o Armor, e para surpresa minha, ainda não sabia nem viu o que os seus livros sobre a Guiné estão a originar na nossa tabanca grande...
Desculpem qualquer coisinha.

JM Ferreira

Antº Rosinha disse...

Luis, a propósito de censura ainda praticamos a censura e auto-censura mesmo sem guerra.

Censura é uma prática corrente de quem escreve.

Só não é censurado o leitor.

Mas apenas quando o leitor consegue ler nas entrelinhas do escrevinhador.

E, pessoalmente penso que hoje pratica-se menos a leitura de entrelinhas do que há 40 anos.

Hoje não há vagar nem capacidade para ler as entrelinhas, porque há mais escrevinhadores que leitores.

Mas neste blog ainda vamos lendo nas entrelinhas, como acabas de fazer.

Luís Graça disse...

Camarada Ferreira: Já que o Armor Pires Mota é teu vizinho e estás em contato com ele, transmite-lhe o meu pedido de autorização para publicar, no nosso blogue, as crónicas relativas à Ilha do Como (Op Tridente, Jan/Mar 1964)... Refiro-me à 1ª edição de Tarrafo (1965).

Lembra-lhe igualmente que continua de pé o nosso convite para ele integrar a nossa Tabanca Grande, convite que lhe enderecei pessoalmente na sessão de lançamento, em Lisboa, da 2ª edição da Estranha Noiva de Guerra. Um abraço para os dois bairradinos. Luís Graça

Luís Graça disse...

Que fique claro: todos os autores que aqui escrevem (incluindo os comentadores) têm total liberdade de escrever ou não segundo o Novo Acordo Ortográfico (NAO)...

Quem escrever segundo o NAO, deve mencioná-lo nos textos que enviar, para conveniente informação dos editores e dos leitores... Boa continuação do feriado. LG

PS - Tudo como dantes no quartel de Abrantes... Não há (nem podia haver a meio do campeonato) mudança das nossas "regras do jogo" que são para unir, não para desunir...