segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2011:

Queridos amigos,
Quero ser muito franco, o livro “Do Cacine ao Cumbijã”, cativa pelo ingenuidade e até pelo deslumbramento de quem regressa, pelo dever da memória, à reconstituição da formação de uma Unidade, de uma viagem marítima, de um treino operacional, tudo feito sem arrebiques, com a intenção de matar saudades na comunicação que pôde estabelecer com os seus camaradas. Só que quem lê vai ficar aturdido com os pormenores especiosos com que a obra arranca até ao súbito cansaço do autor que parece ter desfalecido quando as suas personagens estão bem vivas e a emergir num grande trauma.
É o sabor que lemos metade de um romance e temos de ficar à espera que o autor retome energia e recomece a sua comissão…

Um abraço do
Mário


Do Cacine ao Cumbijã

Beja Santos

“Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 68”, por Guilherme da Costa Ganança (Chiado Editora, 2011) é um livro singelo, supostamente um romance histórico alicerçado em personagens fictícias. Comporta uma ficha de autor, um funchalense nascido em 1945 e que depois de prestar serviço militar na Guiné entre 1967 e 1969 se licenciou em Engenharia Electrotécnica. É de presumir que Guilherme Ganança seja Gabriel Silva e tudo quanto escreve ande por portas e travessas no caminho autobiográfico. O jovem Gabriel Silva chega ao Funchal já promovido a aspirante, da Madeira regressará ao campo de instrução militar de Santa Margarida para formar uma Companhia de intervenção com destino à Guiné. Do aeroporto chega à freguesia da Lombada e apresenta-se à família, a notícia da mobilização deixa o rancho familiar transtornado. Gabriel despede-se da família e dos amigos, vai pedir ânimo à Senhora da Conceição. Toca-nos pela sinceridade.
Sai da capela, admira o vale profundo que vai beijar as águas da Ribeira da Ponta do Sol.

Temo-lo agora no dia 28 de Outubro de 1967 a embarca no paquete do Uíge. O Alferes Silva faz parte da Companhia 78081 comandada pelo Capitão Germano Neves. Espraia-se o autor na descrição da viagem e é feliz na descrição do jantar de despedida, já estão à beira de entrar no estuário do Geba, relata um jantar abrilhantado pelas ressonâncias de um concerto: “Os acordes, ora vigorosos, ora repousantes, desfilaram em cinco harmoniosos clássicos que arrebataram os passageiros, ao serem servidos as iguarias.

Os Capitães Rocha Leão e Alcides Faria confraternizaram à mesa do Alferes Silva e do Capelão Honório Ferraz. Enquanto saboreava uma canja à portuguesa apreciara o tema “Colas Breugnon – Abertura”, de Kabelavsky.

Momentos depois, vem uma lagosta à Parisiense e irrompeu a Sinfonia número 1 de Prokofief.

Sentiam-se os efeitos do vinho quando os espargos à Antártico acompanharam a Companhia Ligeira, de Suppé, que fez as delícias de primeira classe. Quando já todos falavam sem ouvir ninguém, voou para as mesas um peru assado à americana. Gabriel, de ouvido apurado, entrou na notalgia do concerto em dó menor de Grieg, ao escutar a subtileza dos sustenidos e bemóis.

Não acabaram sem o sabor de um Corbeille de Morangos e frutas diversas. O jantar de despedida aproximava-se do fim, tinha de acabar em festa. Ressoou uma Polca: “Relâmpagos e Trovões”, de Strauss. Festejaram de braços no ar e maças rosadas no rosto. As bebidas e os brindes desfilavam, eufóricos, no meio dos relâmpagos”.

De Bissau foram levados para o aquartelamento de Brá, daqui seguirão para Contuboel. É um período de adaptação, de descoberta, um outro camarada explica a Gabriel Silva quem eram as madrinhas de guerra e o apoio que podiam dar aos militares como retaguarda de suporte moral. Ao princípio Gabriel está reticente, depois escreve aerogramas para várias direcções. Percorrem Bissau, visitam o Pilão, chegou a hora do treino operacional. Nunca saberemos como irão de Bissau por camião até Contuboel (com muita imaginação, o autor diz que o percurso que ligava Bissau à cidade de Bafatá, não era considerado perigoso, se bem que não dispensasse medidas de segurança…). O capitão Germano já se impusera como líder, segundo o autor é um homem de grande humanismo. Em Contuboel vão fazer patrulhamentos e ter um cheirinho de guerra na região do Caresse. Tratou-se de um baptismo de fogo, a Operação Invicta moralizou a Companhia 78081.

Ficamos entretanto a perceber que há uma madrinha de guerra de eleição, de nome Raquel. Continuam as Operações na região e vão até à Bolanha de Sototo, tudo corre bem, concluído o treino operacional, chegou a hora de partirem para Bula, vão participar na Operação Bolo-rei, na região de Choquemone. Só há um ferido ligeiro, a estrela da sorte continua a acompanhar esta Companhia de intervenção.

Escoltados pelos fuzileiros, vão partir para Cabedu, entre Cacine o Cumbijã, é este o local que lhes foi atribuído. Temos uma descrição do quartel e da tabanca, como se procedia à defesa do perímetro, onde estavam as peças de artilharia, como foram cordiais logo os primeiros contactos entre o chefe da tabanca, de nome Duraman, e o capitão Germano Neves. O Capitão procura esclarecer-se da situação das forças do PAIGC na região de Cabedu, o Cantanhez está muito perto, posicionam-se nas tabancas de Catifine e Cafal, bem como em Cabanta e Catesse, os rios em torno da península de Cabedu são controlados pelo PAIGC. O Comando em Catió determina um conjunto de patrulhamentos. Apercebendo-se das inúmeras dificuldades impostas pelo terreno, Germano Neves cria um Pelotão com maior capacidade ofensiva que irá ficar conhecido como “Os Corsários”, dirigidos por Gabriel Silva, também conhecido como Grupo Especial de Comandos. Os aerogramas chegam e partem, a relação entre Raquel e Gabriel estreita-se. Há obras em Cabedu. Operação fatídica, nesse dia a Companhia 78081 perdeu o seu muito estimado Comandante na operação Alto Quilate. Acabara-se a estrela da sorte, é neste relato que o livro de Guilherme Ganança tem as suas melhores páginas.

Se até agora o autor entendia que o seu relato devia ser minucioso, imprevistamente tudo vai acelerar, ser alvo de uma inesperada síntese, Gabriel e os seus corsários ainda vão à ilha de Melo, as acções de vigilância nas matas prosseguem. Passadas umas semanas, chegou o substituto do Capitão, este novo Comandante veio trazer normalidade a uma Companhia esmorecida. Não se compreendera muito bem, a trama galopa para o final, o autor dá como encerado os capítulos desta história da Companhia 78081. E tudo termina assim: “Gabriel Silva tornara-se mais duro. Nos tempos que se seguiram muitas nuvens sombrias escondiam-lhe o azul do céu e esmoreciam a cor dos seus olhos. Mesmo assim nutria a certeza de vir a encontrar um futuro melhor. Um provir a que a sua juventude tinha direito”. O livro é apresentado como as memórias reais de um alferes salpicadas de momentos de pura ficção.

Não se fica a compreender o que leva Gabriel Ganança a escrever estas memórias. Percebe-se a transição entre o jovem inocente e o combatente que endureceu. Entende-se como aquela Companhia ficou enlutada com a perda de um Capitão muito especial. Mas há muito pouco entre o Cacine e o Cumbijã, é impossível que o leitor, seja ele qual for, não se sinta defraudado por não ficar a saber o que é que os Corsários fizeram nos meses seguintes. Estamos perante um estranho romance histórico, fica-se mesmo com a ideia que o jovem Alferes se desencantou com a sua escrita e deixou-nos em Cabedu à espera que a história continue…
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8840: Notas de leitura (279): Os Anos da Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8849: Notas de leitura (281): Nha Bijagó, de António Estácio. Prefácio de Eduardo J. R. Fernandes

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