quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8861: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (26): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte II) (Cherno Baldé)

 
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Kichinev, Moldávia, ex-URSS > Dezembro de 1985 > O Cherno Balde (à esquerda)  e um outro bolseiro. peruano,  de nome Aníbal...

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.



Continuação do texto do Cherno sobre as suas memórias de estudante na ex-URSS (*)

2.
2.  Moscovo,  escala de boa esperança

Em 1985, debaixo de uma chuva torrencial do mês de Agosto, [o Chiquinho e outros bolseiros] saíram finalmente para o Aeroporto a fim de apanhar o avião da Aeroflot. 

Na despedida a Irmã Beatriz ofereceu-lhe uma pequena bíblia de cor azul para lembrança da sua amizade e disse-lhe que, dentro em breve, iria ter a oportunidade de conhecer um pais do primeiro mundo. 

Chegaram a Moscovo no dia seguinte, com escalas em Nouakchot (Mauritânia), Casablanca (Marrocos) e Budapeste (Hungria). Do Aeroporto levaram-nos para uma residência de estudantes onde já se encontravam centenas de outros bolseiros vindos dos quatro cantos do mundo. 

Havia mais de 24 horas que não dormia, mas mesmo assim não conseguia pregar olho. A alegria e a curiosidade da descoberta de um novo mundo constituíam um lenitivo que suplantava tudo o resto. Sob o efeito contagiante da alegria, tinha saído para o corredor, passado ao jardim, depois à rua. Queria contemplar, queria absorver tudo, queria abraçar Moscovo e seus habitantes metidos nos seus trajes sombrios num dia enublado com brisa suave de fim de verão. 

Foi assim que ele se deixou levar num passeio pela cidade, indo de autocarro até uma estação do Metro de Moscovo donde penetraram por meio de escadas rolantes compridas descendo, descendo, para dentro das entranhas da terra, gritando uns aos outros, sob o olhar atónito de alguns utentes que se içavam para cima no sentido inverso. 

Não foi difícil perceber que os silenciosos moscovitas faziam o possível para evitar o contacto com o grupo dos jovens africanos, inebriados com a sua bem expressiva e barulhenta maneira de falar, gesticulando ora à direita ora à esquerda. E, provavelmente, teriam um cheiro diferente, peculiar, no meio dos brancos em seu habitat natural. 

Eram recordações antigas que afluíam à mente misturando-se na indiferente algazarra a entrada e a saída do Metro que, de resto, era de fácil orientação, pois circulava em forma de anel à volta do centro da cidade e depois se expandia como uma teia de aranha cobrindo as diferentes zonas da grande megalópole: Paveletskaya, Aktyabrskaya, Krasnapresyenskaya, Kamsamolskaya... O Metro de Moscovo não tinha limites de espaço nem de tempo. Acabámos por voltar à nossa residência, já era noite. 

Sílvia, a boliviana, a primeira paixão

O grupo do Chiquinho ficou dois dias em Moscovo, o tempo suficiente para preparar a sua afetação. O único acontecimento relevante nesses dias da sua primeira passagem por Moscovo foi uma breve aproximação com uma boliviana,  de nome Sílvia. Bastaram alguns segundos para tocar o seu coração. Baixinha, cabeleira farta e reluzente, sorriso aberto, parecia uma rapariga lusa da geração mais antiga, daquela que não escondia a cor dos seus cabelos de origem árabe. 

Apaixonou-se pelos seus olhos grandemente abertos debaixo de umas sobrancelhas pretas a condizer. No seu rosto largo vislumbravam-se feições mestiças, amazónicas. Aproximou-se dela, falou em português, ela sorria, mas parecia não perceber. Não sabia nada da Guiné-Bissau, e provavelmente, não sabia mesmo nada de África. Alguém a chamou, ela foi e não voltou. O voo de um pirilampo na escuridão da noite. Nunca mais voltaria a encontrá-la. Sílvia...  

Apaixonar-se por imagens fugidias, amores impossíveis, era um defeito natural que o Chiquinho trazia da sua infância e adolescência, feitas de miséria e de mil privações. Introvertido e tímido, nunca tivera muito sucesso com as meninas, limitando-se a consumir com frugalidade o que via ou ouvia dos colegas. 

A brusca ausência da Sílvia fez reavivar os velhos fantasmas do antigamente que, como um balde de água fria, fizeram descer a pressão interna que embriagava os seus sentidos, fazendo sentir o cansaço e fome. 

Mais tarde saberia que a bonita Sílvia assim como a maioria daquela geração de estudantes latino-americana, amiga da farra e da boa comida,  detestava, no entanto, o ofício de cozinhar. Nessa altura agradeceria a Deus e à sua estrela de sorte, pois era de admitir a possibilidade de ser cozinheiro por um dia sim, mas toda a vida, não. 

 Colocado em Kichinev, Moldávia, para frequência da fase preparatória

Do seu grupo de mais de quarenta jovens, Moscovo só aceitou receber dois, os restantes foram repartidos por diferentes cidades da imensa URSS. Pelas informações dos antigos estudantes, sabiam que as Repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso eram de evitar a todo o custo, devido à intolerância racial para com os pretos, numa região fortemente influenciada pela civilização Árabe e Turco-Otomana.  

Ao Chiquinho, calhou a cidade de Kichinev, capital da Moldávia, uma pequena porção de terra situada entre a Ucrânia e a Roménia, integrando um grupo de mais de cinquenta jovens de diferentes origens, para a frequência da fase preparatória. 

Mais uma vez, o Chiquinho estava com a sua estrela de sorte, pois não iria viver no meio dos bárbaros do Cáucaso nem ficaria na Universidade Patrice Lumumba onde a maioria dos estudantes era africana. Nem que fosse por algum tempo, ele queria ficar longe de África e dos africanos. 


(ix) Namorar, sim, mas não casar com uma...tubab

Na verdade, o Chiquinho alimentava um sonho secreto e antigo, nascido não sabia donde, de namorar uma europeia. Sim, só namorar. A sua imaginação, sendo muito ousada a este respeito não se atrevia, todavia, a pensar no casamento. “Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...” Era o eco da voz discordante da sua avó que lhe perseguia.[ Avó materna, Mariana Baldé, Fajonquito, Sancorlã, 1900-1993; foto à esquerda].

Ela conseguia adivinhar todas as suas intenções e, armada de verdades e razões ocultas da velha sabedoria fula e africana, denunciava os aspectos mais desviantes da sua educação infecta. “A mulher tubab é uma senhora e uma senhora não é uma mulher”, dizia ela. O Chiquinho não comprendia esta relação ilógica do tipo: α=β, β≠α. Talvez não casasse. 

Na verdade, também não conhecia nenhum antecedente de um fim feliz nas relações preto/branco e vice-versa. As histórias eram muitas e antigas num caminho ainda estreito, semeado de armadilhas reais ou imaginárias. 

Ainda assim, ele queria uma europeia. A vida não é um cenário de jogo onde se ganha e se perde!?... Pensava, teimosamente.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

 _______________

Nota do editor:

 (*) Vd. poste anterior da série 4 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

7 comentários:

Antº Rosinha disse...

Devido às colonizações antigas e modernas e respectivas descolonizações, o mundo mais globalizado deve ser África.

Mas de todos os paises africanos a Guiné Bissau deve ser o país africano mais globalizado, devido à permeabilização fronteiriça, como as "ajudas" de infinitos cooperantes internacionais atraídos por Amilcar e Luis Cabral, e à mistura de tantas etnias e religiões em território tão diminuto.

Mas tambem porque os guineenses movem tudo para uma "viagensinha", seja na Aeroflot, seja escondido num contentor de mercadorias.

Mas de todos os Guineenses, os mais globalizados devem ser os Fulas porque, penso eu, de todos são os que se agarram menos ao «nó tchon».

E como globalização é cultura, os guineenses em geral são um caso sério de vivência internacional e cultural.

Cherno, na tua geração foram milhares os livros da editora Caminho, devorados no Jardim do Alto Crim.

Talvez das centenas de estudantes que usavam as sombras daquele jardim para a leitura, e estudo, talvez tu lá tenhas passado algumas horas.

Até que em Outubro de 1980 um caterpilar da TECNIL, vos destruiu aquele "refúgio" verde de leitura.

Ali apareciam desde Saramago a Mao e os Pensamentos de Enver Oxa e o Livro Verde de Kadafy.

Mas, penso que com o fim de Luis as leituras devoradoras diminuiram, será Cherno?

Cumprimentos

Anónimo disse...

Pois é, Cherno

É isso: a vida é um jogo onde se ganha e se perde...
ou como diz a letra de uma canção sul-americana (nacionalidade? talvez mexicana): "La vida es una roleta donde apostamos todos..."

Fico à espera de mais.
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Caro Cherno:

Tu à procura de uma namorada branca, outros (brancos) à procura de namoradas pretas.Hoje,cada vez mais frequentemente, são imagens de uma grande riqueza estética, as dos casais bicolores - oásis de paz e amor, num deserto onde os seres humanos se maltratam estupidamente.

Um abraço

Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

Caro amigo Cherno

Apetece-me escrever "sim senhor, este 'menino' saiu-me cá uma encomenda!"...
Espero que percebas que esta expressão portuguesa é (pode ser) em simultâneo, um elogio e também uma observação a alguma actuação maliciosa...

Esta tua peregrinação pela memória da tua juventude, onde continuas a revelar-te por inteiro, nas tuas expectativas, ilusões, ganhos, descobertas, desencantos, etc., é realmente uma preciosidade, tanto mais que está repassada de autenticidade.

Agora, essa tua fixação numa namorada de pele clara, está visto que não passou despercebida à sabedoria ancestral da tua avó... ela lá te conhecia bem, meu maroto!

Bem, caro amigo, continuo à espera de ler o que já sei ser a terceira parte deste teu escrito que, como te deves ter apercebido, já tem também seguidores atentos no Brasil e que esperam por mais.

Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Cherno, os grandes sentimentos humanos (o amor, a amizade, a camaradagem, a compaixão, a ternura, a solidariedade...) não têm cor...

Como diz o poema do nosso camarada Armor Pires Mota ("Para a morte de Mamadu"):

(...) "Para a morte do negro soldado Mamadu,
levo, pela mão, as raparigas da tabanca,
que lavam, de manhã, as fardas de sangue,
e, à tarde, as feridas com seus dedos de ternura branca" (...).

In: Armor Pires Mota - Impossível um Pássaro. Braga: Paz, 1979. 8-9.

Anónimo disse...

Bonito o poema escolhido,de um inesperado poeta. Um abraco.

Cherno Balde disse...

Caros amigos,

Sobre Portugal, muitas vezes, apeteceu-me perguntar:
- Que pais este que faz de poetas soldados e de soldados poetas?...

Ao Luis Graca quero aqui apresentar as minhas desculpas pela desatencao e irregularidade e dizer que estou muito satisfeito pela forma como apresenta os meus textos na nossa Tabanca com ou sem acordo ortografico. Na verdade, tento escrever respeitando o acordo, mas nem sempre consigo faze-lo por ignorancia minha e nem sempre me soa tao bem, por forca do habito.

Eu estou de acordo com o A. Almeida, quando diz que o mais importante é: "Ter algo a dizer e dize-lo".

Na minha opiniao, nao obstante o acordo assinado, se Portugal quiser manter uma certa originalidade da sua/nossa lingua, tera que investir nas novas tecnologias da informacao porque constatei que neste momento, o tradutor do Google faz a traducao em Portugués Brasileiro e vai ter muita aceitacao entre utilizadores nao Portugueses.

Pessoalmente nao tenho nada contra e confesso que nem sempre compreendia os meus professores em Portugal, quando nas recomendacoes de leitura omitiam os autores e/ou traducoes Brasileiras, quando a maior parte dos livros recomendados estavam em Inglés ou Francés.

Até prova em contrario, nao vejo nenhum inconveniente em utilizar o termo rafeiro que preferi ao termo cao, mais pejorativo mas nem por isso menos digno. O cao é um animal que simboliza a mais forte e a melhor da lealdade.

Fico muito grato a todos pelo apoio moral e encorajamento.

Um grande abraco a todos,

Cherno Balde