Mostrar mensagens com a etiqueta marxismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta marxismo. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23027: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte IV: Chiquinho, aspirante comunista, não entendia a atração dos africanos (e dos próprios soviéticos) pelas bugigangas do Ocidente



Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte IV: Chiquinho, aspirante comunista, não entendia a atração dos  africanos (e  dos próprios soviéticos) pelas bugigangas do Ocidente 


por Cherno Baldé (*)


(xv)  Primavera, 1986: recuperação da boa disposição mental

Estava de novo apaixonado, o Chiquinho, desta vez, por uma mulher do Iémen do Norte (ou era do Sul?), sem hipótese de aproximação. Ela era casada e vivia com o marido num quarto isolado. Tinha tanta inveja do homem que queria matá-lo. Foi, talvez, a mulher mais bonita que os seus olhos alguma vez tinham visto.

Mas, ou era o sentido universalmente humano que o guiava ou era a tolice de um coração desorientado, pois no meio de tanta diversidade étnica e cultural, tinha que apaixonar-se logo por uma mulher árabe, com a carga de desprezo secular que estes beduínos do deserto nutrem pelos negros.

- Acorda, preto!.. - apetecia dizê-lo. 

Era mais um daqueles amores platónicos, impossíveis, destinados a colmatar o vazio do seu coração. O frio agudizava o seu sentimento de solidão. Começou, assim, a criar o hábito de deambular sozinho pelos parques da cidade na secreta esperançaa de encontrar, numa viragem qualquer, a sua europeia de cabeleira reluzente, a promessa de um destino que o empurrava para o desconhecido.

No entanto, ainda tinha muitas questões sem resposta. Por exemplo, por onde a pegaria?... Pela mão, no braço ou por cima dos seus ombros?... Seria capaz de adivinhar seus sentimentos encarando os seus olhos azul-marinhos?... O que lhe diria, e como lhe diria?... Contar a verdade ou mentir descaradamente sobre a sua vida como faziam alguns colegas para melhor seduzir?... Na sua terra natal ouvira dizer que a mulher conquista-se com a mentira e mantem-se com a verdade. E para os europeus, seria o mesmo?... Tinha muitas duvidas e uma certeza, a certeza de que a amaria muito, dentro do seu coração.

Com a chegada da primavera, o Chiquinho começou também a recuperar a boa disposição mental e fez mesmo parte de um grupo de estudantes que, vestidos de trajes multicolores, ensaiavam a dança tradicional moldava para apresentar em palco, para mostrar a integração cultural dos africanos. Não resultou tão bem assim, tecnicamente falando, mas permitiu apertar e acariciar as partes arredondadas das colegiais ainda adolescentes, recuperando assim um pouco da sua jovialidade e amor próprio.

A sua amiga, a Vika, parecia gostar dele, mas nunca dizia nada, limitava-se a olhar para ele e a sorrir. Também ele sorria, dividido entre o desejo de seduzi-la e o medo de enganá-la. Pode-se mentir a quem se ama?... O Chiquinho ainda vivia no mundo em que um homem era incapaz de transformar o mundo com o enredo das palavras dúbias, enviesadas, entorpecentes como a morfina.


(xvi) Finais de junho de 1986: o Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não entendia a atração dos africanos e dos próprios soviético pelo Ocidente

Em finais de Junho de 1986, terminaram os exames e muitos estudantes foram a Moscovo tratar de vistos nas embaixadas para viajar aos países do Ocidente. Ele recebeu o convite de um irmão que era estudante em Lisboa, mas ainda não queria afastar-se muito do universo que queria integrar e também da posibilidade de aproximar-se da Vika. Todavia, a menina com os seus cabelos cor de trigo, não correspondia muito à imagem da europeia dos seus sonhos.

Adiou a visita para o ano seguinte. Entretanto a expetativa da viagem aos paises do Ocidente fazia furor entre os estudantes estrangeiros, particularmente nos congoleses que sonhavam com as luzes de Paris e não escondiam o seu entusiasmo. Lisboa era o destino preferido dos guineenses e angolanos.

O Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não compreendia porque razão os estudantes eram tão atraídos pelo Ocidente, atitudes que ele considerava como subproduto da mentalidade neocolonial e servil. Para ele, era mais importante a apropriação da doutrina marxista-leninista, em especial o pilar da economia política que encerrava as premissas para a verdadeira libertação dos povos do terceiro mundo.

Mais surpreendido ficou ainda quando viu a avidez com que os próprios soviéticos consumiam os mais insignificantes produtos trazidos do Ocidente pelos estudantes em contrabando, bugigangas de um regime em decadência. 

Afinal, as férias dos estudantes escondiam outras realidades que, não sendo políticas nem filosóficas, contribuíam para minar os alicerces de base sovietica e comunista.

(Continua)
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império  dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 




Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte III:  Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


por Cherno Baldé (*)


(x) A primeira viagem de comboio: até Kichinev, capital da Moldávia

A viagem para Kichinev [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. Blagat... Blagat... Blagat... Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.

Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.

Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. 

Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...


(xi) Inspeção médica: "uma afronta à dignidade de homem africano"...

Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.

Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!

As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo, ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.

Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca, também, mas por motivos diferentes.

Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.

(xii) Quatro meses de aulas intensivas de língua russa, segundo um método tão eficiente quanto brutal... que o fez esquecer o português!

As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.

Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia, de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital”, de Karl Marx.

(xiii) Síndroma russa, provocada pela 
desoladora visão da natureza morta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar (1)

Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.

Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.

Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doença seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!... Lenine em Moscovo!... Poça, vida!

Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar, feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.

Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...

(xiv)  "Com que então, estava farto de Lenine!?"

O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.

Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que não o surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...

Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista.

“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.

O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes), de Tchaikovsky.

Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo.

Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.
___________________

RASSIA (1)

Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,

O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.

Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei Ecenin e Tsvetaeva
Pushkine e Akmatova
Em toda a mística e gratidão,
Em toda a dor e solidão,

Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! Poltava!...
Ha...! Smolensk!...
Ha...! Tchornobyl!...
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E Kaniev Tcherkassy?
E Taras Sevtchenko?

“Dumi moi...”
“Dumi moi...”


(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)
____________

Notas do autor:

(1) Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània;

Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do séc.XIX/XX;

Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragédias humanas;

Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]

“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.


[Fixação / revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG]

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

(**) 'Ventos de mudança' que se traduziam nas célebres expressões russas Glasnost (гла́сность, transparência) e Perestroika (Перестройка, reconstrução, reestruturação) introduzidas no vocabulário político dos russos, em 1985, pelo governo de Mikhail Gorbachev, num processo de reforma que conduziria em 1989 ao fim da guerra fria e ao desmantelamento da URSS.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20334: (Ex)citações (362): Excertos do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões, Engels, de todos nós, do racismo e do colonialismo (António Graça de Abreu)

Camões
Engels
 1. Mensagem enviada pelo António Graça de Abreu, com data de 6 do corrente:


Data - Quarta, 6/11/2019 à(s) 13:15

Assunto - Do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões [, foto à esquerda], Engels (, foto à direita,],  de todos nós, do racismo e do colonialismo (*)



Excertos do meu "Diário de Pequim":

Pequim, 12 de Setembro de 1980 (**)

 (...) Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no extravagante diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.

Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou activamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.

António Graça de Abreu
Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. 

De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou o ilustre peito lusitano e os que entre gente remota edificaram/Novo Reino que tanto sublimaram." Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido "no gosto da cobiça e da rudeza/ duma austera, apagada e vil tristeza. Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.

Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, "um socialista antes do tempo", como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:

Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…


Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, "Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante:

Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:

Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.


Camões, um colonialista? Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo, praticamente, nos últimos anos da sua atribulada existência, de esmolas, de caridade, de amigos.

Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava e se abria a todos os homens.

Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as "memórias da alegria", essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.

O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que "é como ondas do mar sobre flores e prados" e depois confessa-lhe que, de manhã cedo, gosta de "se sentar num jardim com  o sol batendo-lhe nas costas lendo Os Lusíadas." O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas?

Um grande historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:

"O português de Camões foi moldado  pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e ao amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos os homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra.".

Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua que, como escreveu Engels, "é como as ondas do mar sobre flores e prados." (...)

[Seleção e realce a amarelo e a negrito, da responsabilidade do editor LG] (***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd.poste de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1) 
(**) vd. poste de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões

(***) Último poste da série > 29 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20285: (Ex)citações (361): Do meu amigo Zé Saúde, com quem estive estes anos todos sem falar da guerra, até ao segredo dos 'Asas Brancas' de Contuboel (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547, 1972-74)

domingo, 29 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18576: Efemérides (279): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro ( REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte IV




Cabeçalho de panfleto do PCP (m-l)  (Partido Comunista de Portugal, marxista-leninista) com a palavra de ordem "Nem mais um só soldado para as colónias"...  Data: 26 de abril de 1974. 

Fonte: com a devida vénia ao Gualberto Freitas: 1969 Revolução Ressaca [documentos para a história de uma revolução]



Lisboa > Dia 28 de Abril de 1974, ao fim da tarde, na Rua Fontes Pereira de Melo, antes de chegar às Picoas. Começou espontaneamente o pessoal a aglomerar-se, já depois da Rotunda [do Marquês], e, enquanto o diabo esfregou o olho, estruturou-se uma manifestação, com muitos militares da Força Aérea, como se pode ver nas linhas da frente com farda azul e boina verde. As palavras de ordem: 'Nem mais um soldado para o ultramar'…  Manifestações e palavras de ordem como estas (*) começaram a ter um efeito psicológico negativo no moral das nossas tropas que estavam a milhares de quilómetros de casa, como se pode depreender do aerograma que abaixo se transcreve.

Foto (e legenda): © José Corceiro (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




Imagem da primeira parte do aerograma, datado de Bissau, 4/5/74.



Desta vez o aerograma é dirigido à mesma pessoa, a esposa do Jorge Gameiro, Ana Paula Gameiro, mas com outro endereço postal: Rua Sampaio Bruno, 8, 3º Esq, Lisboa 3, em Campo de Ourique [ Código postal atual: 1350-283 Lisboa;  pertence à freguesia de Santo Condestável]. 



Remetente: Jorge Gameiro, ACAP, SPM 0348


1. Continuação da publicação dos aerogramas de Jorge Gameiro [ militar colocado na REP / ACP / QG /CC, Bissau, 1974], relativos aos acontecimentos pós-25 de abril...

Cópias desses aerogramas foram-nos enviadas pelo leitor (e futuro membro da Tabanca Grande, Carlos Mota Ribeiro, engenheiro, residente na Maia, filho do nosso querido amigo, camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; estes documentos foram comprados por ele há 5 ou 6 anos no OLX).

Os aerogramas (o primeiro datado de Bissau, 30/4/1974) (**) eram dirigidos à esposa do Jorge Gameiro, Ana Paula Gameiro. O casal tinha um filho de tenra idade, Nuno Gameiro, cujo paradeiro o Carlos Mota Ribeiro gostaria de poder descobrir para lhe poder oferecer esta correspondência que ele provavelmente nunca terá lido. A Ana Paula Gameiro aparece com duas moradas: uma na Av Mouzinho de Albuquerque, 5-5- Esq, Lisboa-1, freguesia de Penha de França; e outra na Rua Sampaio Bruno, 8, 3º Esq, Lisboa 3, em Campo de Ourique, freguesia de Santo Condestável. Não sabemos ao certo onde é que o casal vivia. Nem sabemos como os aerogramas foram parar ao OLX: uma hipótese é a separação do casal; ou a  morte de um dos correspondentes...

Também não sabemos, até agora, quem é (ou foi) o Jorge Gameiro, a não ser que: (i) estava colocado, no QG/CC, na Amura, na Repartição ACAP - Assuntos Civis e Apoio à População; e (ii) em maio de 1974 estava a 4 meses de acabar a comissão... Especulando, achamos que podia ser arquitecto, na vida civil, ou estudante de arquitetura ou de engenharia ou coisa assim parecida. Devia ser miliciano, mas desconhecemos o seu posto e especialidade.

Como nos explicou o Carlos Mota Ribeiro [, foto atual acima, à direita]:

(...) Em relação aos aerogramas comprei-os a alguém no OLX, já foi há uns 5 ou 6 anos e não me recordo do nome da pessoa que mos vendeu, lembro-me que os comprei por terem o sentido histórico do 25 de Abril de 74 e os achei muito interessantes.

Como tenho um colega britânico que se interessa pela Revolução dos Cravos, enviei-lhe as fotos dos aerogramas com a tradução em inglês para ele dar uma leitura e compreender o sentimento que alguns jovens tinham naquela época e naqueles dias conturbados.


Quando estava a transcrever o mencionado aerograma, fiquei a pensar no Nuninho (Nuno Gameiro) do aerograma e do carinho daquele pai pelo filho. Por isso entrei em contacto contigo para tentar encontrar o tal Nuninho e lhe fazer chegar a meia dúzia de aerogramas que tenho, enviados pelo seu pai, da Guiné Portuguesa para a Metrópole.

É claro que apenas lhos vou oferecer, se o Nuno Gameiro quiser esta recordação dos pais, pode nem querer saber deste assunto ou não dar qualquer valor sentimental aos aerogramas, mas como para mim este tipo de itens tem muito valor e são documentos que considero históricos, guardo-os religiosamente na minha coleção particular sobre o Ultramar Português. [...]


 Do aerograma do dia 4 de maio, que transcrevemos a seguir, só temos a primeira parte. segundo informação prestada pelo nosso coeditor Magalhães Ribeiro, que está a digitalizar estes documentos.

 2. Transcrição do aerograma de 4 de maio de 1974

Bissau 04.05.74
Minha Paula, meu amor:

Recebi hoje a tua cartinha do dia 28 [, de abril, de 1974], a qual me deixou muito feliz por te achar tão calma e feliz, calma essa que é contagiante e que para mim foi um bem, pois também eu com esta tua tão preciosa ajuda fiquei mais calmo, que é coisa que não consigo ter de há uns dias a esta parte.

A nossa situação aqui no ultramar continua sem ser definida, não há meio de se pronunciarem, mas pelos vistos as coisas em relação ao ultramar as mudanças serão muito significativas pois soube que ontem saiu um contingente de tropas, do qual a população pelos vistos não gostou muito pois até foram raptados 10 militares, mesmo do estilo “sacados” à mão do aeroporto. [***]

É claro e bem sei que isto não pode ser resolvido de um dia para o outro, e por isso penso que a atitude dessas pessoas até foi inconsciente, pois enquanto não houver nada resolvido,  as tropas terão de continuar a vir. E não é parar com as mobilizações que se podem resolver as coisas, pois assim os únicos prejudicados seriamos nós, aqueles que estão a terminar a comissão, não tendo rendição não nos poderíamos ir embora, o que não é justo. 

Mas esta espera, sem saber nada, torna a vida angustiante para todos nós os que aqui estamos. Resta-nos a consolação de que, mesmo se a situação aqui continuar a mesma,  quando voltarmos espera-nos um ambiente mais leve, mais puro, onde já não seremos espezinhados como dantes,  seremos livres mais que nunca e isso pelo menos,  apesar de não ser de maneira nenhuma uma compensação para os 2 anos que passamos aqui, já é pelo menos algo positivo e muito bom. 

Outra das coisas pela qual andamos doidos todos os que aqui continuamos,  é não pudermos partilhar mais de perto desses tão grandes momentos que se vêm passando desde o dia 25 [de Abril] até agora,  principalmente desse grandioso 1.º de Maio festa culminante da libertação de um povo dominado por uma ditadura fachista [sic] durante 48 dolorosos anos. E só espero, e o meu grande desejo, é que este grande passo que iniciou uma maravilhosa caminhada ,não seja afundado por minorias de esquerdistas a cometerem atos impensados como aquele que se passou no aeroporto, mas não isto é certamente precipitações dos primeiros dias causados pelos [...] [**]

Continua 
 

Fotos (e legendas): © Carlos Mota Ribeiro (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Revisão e fixação de texto: Carlos Mota Ribeiro / Luís Graça]


Translation to English:

Bissau 04.05.74

My Paula, my love:

I received today your letter of the 28th, which made me very happy to find you so calm and happy that is contagious and that for me was a good, because I too with this your precious help I am calmer, which is something that I can not get from a few days ago to this part, our situation here overseas is still not defined, there is no way to pronounce, but by the way things in relation to overseas the changes will be very significant because I knew that yesterday left a contingent of troops, of which the population was not very pleased because 10 military personnel were even kidnapped by the airport, of course, and I know that this can not be solved overnight, and so I think the attitude of these people was even unconscious, as long as nothing is resolved the troops will have to continue to come. And it is not to stop with the mobilizations that can solve things, therefore the only losers we would be those who are finishing the commission, not having surrender we could not leave what is not fair. But this waiting without knowing anything makes life anguish for all of us here. There remains the consolation that even if the situation here continues the same when we return, we expect a lighter but cleaner environment where we will not be trampled as before we will be free more than ever and this at least despite not being at all a compensation for the 2 years that we spent here, is already at least something positive and very good. Another of the things we are going crazy about here is that we can not share more closely those great moments that have been happening since the 25th until now, especially on this great May Day, the culminating celebration of the liberation of a people dominated by a fascist dictatorship for 48 painful years and I only hope and my great desire is that this great step that started a wonderful journey is not sunk by minorities of leftists to commit unthinking acts like the one that happened at the airport, but this is certainly not precipitation of the first days caused by

To be continued

[Translation by Carlos Mota Ribeiro]

___________


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8863: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (27): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte III) (Cherno Baldé)


URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial

Foto: © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.


 Continuação do relato do Cherno Baldé [, hoje quadro superior da administração pública da Guiné-Bissau,] sobre as aventuras e desventuras do Chiquinho, enquanto estudante,  no país dos sovietes (1986-1989).


(3) A primeira viagem de comboio


A viagem para Kichinev  [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. BLAGAT...BLAGAT...BLAGAT. Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.

Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.

Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...

Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.

Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!

As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo,  ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.

Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca também, mas por motivos diferentes.

Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.

As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.

Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia,  de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital” , de Karl Marx.

Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.

Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.

Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doençaa seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!...Lenine em Moscovo!... Poça,  vida!

Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar,  feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.
- Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...

O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.

Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que no lhe surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...

Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista. 

“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.

O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes),  de Tchaikovsky.

Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo. 

Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.

___________________

RASSIA

Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,

O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.

Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei ECENIN e TSVETAEVA
PUSHKINE e AKMATOVA
Em toda a m+istica e gratidão,
Em toda a dor e solidão,

Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! POLTAVA!...
Ha...! SMOLENSK!...
Ha...! TCHORNOBYL
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E KANIEV TCHERKASSY?
E TARAS SEVTCHENKO?

“Dumi moi...”
“Dumi moi...”

(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)

Notas de C.B.: 

Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània; 
Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do sec.XIX/XX; Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragedias humanas; 
Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]
“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.
___________________


Estava de novo apaixonado, o Chiquinho, desta vez, por uma mulher do Iémen do Norte (ou era do Sul?), sem hipótese de aproximação. Ela era casada e vivia com o marido num quarto isolado. Tinha tanta inveja do homem que queria matá-lo. Foi, talvez, a mulher mais bonita que os seus olhos alguma vez tinham visto. 

Mas, ou era o sentido universalmente humano que o guiava ou era a tolice de um coração desorientado, pois no meio de tanta diversidade étnica e cultural, tinha que apaixonar-se logo por uma mulher árabe, com a carga de desprezo secular que estes beduínos do deserto nutrem pelos negros. 
 - Acorda,  preto!.. - Apetecia dizê-lo. Era mais um daqueles amores platónicos, impossíveis, destinados a colmatar o vazio do seu coração. O frio agudizava o seu sentimento de solidão. Começou, assim, a criar o hábito de deambular sozinho pelos parques da cidade na secreta esperançaa de encontrar, numa viragem qualquer, a sua europeia de cabeleira reluzente, a promessa de um destino que o empurrava para o desconhecido. 

No entanto, ainda tinha muitas questões sem resposta. Por exemplo, por onde a pegaria?...Pela mão, no braço ou por cima dos seus ombros?... Seria capaz de adivinhar seus sentimentos encarando os seus olhos azul-marinhos ?.. O que lhe diria, e como lhe diria?...Contar a verdade ou mentir descaradamente sobre a sua vida como faziam alguns colegas para melhor seduzir?... Na sua terra natal ouvira dizer que a mulher conquista-se com a mentira e mantem-se com a verdade. E para os europeus, seria o mesmo?... Tinha muitas duvidas e uma certeza, a certeza de que a amaria muito, dentro do seu coração.

Com a chegada da primavera, o Chiquinho começou também a recuperar a boa disposição mental e fez mesmo parte de um grupo de estudantes que, vestidos de trajes multicolores, ensaiavam a dança tradicional moldava para apresentar em palco, para mostrar a integração cultural dos africanos. Não resultou tão bem assim, tecnicamente falando, mas permitiu apertar e acariciar as partes arredondadas das colegiais ainda adolescentes, recuperando assim um pouco da sua jovialidade e amor próprio. 

A sua amiga, a Vika, parecia gostar dele, mas nunca dizia nada, limitava-se a olhar para ele e a sorrir. Também ele sorria, dividido entre o desejo de seduzi-la e o medo de enganá-la. Pode-se mentir a quem se ama?... O Chiquinho ainda vivia no mundo em que um homem era incapaz de transformar o mundo com o enredo das palavras dúbias, enviesadas, entorpecentes como a morfina.

Em finais de Junho de 1986, terminaram os exames e muitos estudantes foram a Moscovo tratar de vistos nas embaixadas para viajar aos países do ocidente. Ele recebeu o convite de um irmão que era estudante em Lisboa, mas ainda não queria afastar-se muito do universo que queria integrar e também da posibilidade de aproximar-se da Vika. Todavia, a menina com os seus cabelos cor de trigo, não correspondia muito à imagem da europeia dos seus sonhos. 

Adiou a visita para o ano seguinte. Entretanto a expetativa da viagem aos paises do ocidente fazia furror entre os estudantes estrangeiros, particularmente nos congoleses que sonhavam com as luzes de Paris e não escondiam o seu entusiasmo. Lisboa era o destino preferido dos guineenses e angolanos.

O Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não compreendia porque razão os estudantes eram tão atraídos pelo ocidente, atitudes que ele considerava como subproduto da mentalidade neocolonial e servil. Para ele, era mais importante a apropriação da doutrina marxista-leninista, em especial o pilar da economia política que encerrava as premissas para a verdadeira libertação dos povos do terceiro mundo. 

Mais surpreendido ficou ainda quando viu a avidez com que os próprios soviéticos consumiam os mais insignificantes produtos trazidos do ocidente pelos estudantes em contrabando, bugigangas de um regime em decadência. Afinal, as férias dos estudantes escondiam outras realidades que, não sendo  políticas nem filosóficas, contribuíam para minar os alicerces de base sovietica e comunista.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

 4 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

5 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8861: Memórias do Chico, menino e moço (26): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte II) (Cherno Baldé)

 (**) 'Ventos de mudança' que se traduziam nas célebres expressões russas  Glasnost (гла́сность, transparência) e  Perestroika (Перестройка, reconstrução, reestruturação) introduzidas no vocabulário político dos russos, em 1985, pelo governo de Mikhail Gorbachev, num processo de reforma que conduziria em 1989 ao fim da guerra fria e ao desmantelamento da URSS.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7179: (In)citações (16): Os irmãos Turpin, José e Eliseu, "verdadeiros filhos da Guiné" (Luís Graça)

Há dias ouvi pela rádio RFI, uma entrevista de José Turpin (irmão de Elysée Turpin, co-fundador do PAIGC) que falava de Cabral dizendo:

- Quando ele chegou a Conacri, escondido sob o pseudónimo de Abel Djassi, e onde eu e mais outros camaradas já nos encontrávamos, rapidamente se impôs como líder, não pela força mas pela sua integridade moral e força de convicção. Foi ele que nos unificou sob uma única liderança política e estratégica, antes dele, os "verdadeiros" Guineenses pavoneavam-se por aí, perdendo seu tempo em discursos patrióticos e disputas pueris por mulheres (prostitutas, provavelmente).

Cherno Baldé (*)


Comentário de Luís Graça (foto à esquerda, em Bambadinca, 1969):

Meu caro Cherno, conheci o José (ou Joseph) Turpin em Bissau, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) (**).

Fiz, inclusive, um pequeno vídeo com um depoimento dele, com uma mensagem de saudação destinada ao António Lobato, o hoje major piloto aviador reformado que foi prisioneiro do PAIGC durante 7 anos em Conacri... Nunca cheguei a saber se o António, que é minhoto de Melgaço (se não me engano),  teve conhecimento do vídeo, que de resto está disponível em You Tube > Nhabijoes.

Embora tivesse sido breve a nossa conversa, fiquei com uma boa impressão deste homem em cuja casa, a dos pais que eram comerciantes, se acolheu Amílcar Cabral (aliás, Abel Djassi), quando veio, da clandestinidade,  para Conacri, creio que  em 1960. Nessa altura o Joseph (hoje, José) nem sequer falava (ou falava muito mal o) português, segundo depreendi da nossa conversa no Hotel Palace, em Bissau... A sua admiração por Amílcar terá começado aí...

Como aqui, neste blogue, já o disse em tempos,  o José pediu-me para gravar e mandar uma curta mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador português, cujo caça-bombardeiro T6 fizera uma aterragem de emergência, na Ilha do Como, em 1963.

Feito prisioneiro por camponeses e entregue ao PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à sua libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde, como todos sabem. (***)

Gostei da autenticidade, da simplicidade e da sinceridade deste homem:

- Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim... - são as primeiras palavras deste histórico do PAIGC, na altura, nos anos 60, a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. (O irmão, o Elisée ou Eliseu, nascido a 23 de Maio de1930, viveu sempre em Bissau onde foi guarda-livros da Casa Gouveia, entre 1958 e 1964, e depois gerente da ANCAR, até 1973, nunca tendo particiapdo directamente na luta armada).

Nesse curto vídeo, o José Turpin recordava os momentos em que, por diversas vezes, visitara o nosso camarada António Lobato na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que, afinal, revelavam o melhor da nossa humanidade...

- Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade...

José Turpin agradecia, por fim, ao Lobato as palavras de apreço com que ele se referira à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua dura experiência de cativeiro. Agradecia também o exemplar do livro que o Lobato lhe mandara e que ele leu, com muito interesse. Diz ainda, no vídeo, que ficara sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato.

- Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau - são as últimas palavras, deste homem afável, e de grande estatura moral, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada.

Como eu gostava, Cherno Baldé, que este homem se juntasse a nós, aqui, na Tabanca Grande. Ele é seguramente um "verdadeiro filho da Guiné", independentemente das circunstâncias do nascimento (julgo que os dois irmãos nasceram na Guiné-Bissau, indepentemente de os pais, comerciantes,  viverem ou terem vivido em Conacri).

Que será feito do José Turpin, hoje ? E do seu irmão, Elisée Turpin (hoje com 80 anos) (**) ? E dessa mulher extraordinária, que é a Carmen Pereira, outra "verdadeira filha da Guiné", em 7 de Março de 2008, que também conheci na altura e que é visita, sempre que vem a Portugal, da casa da Júlia e do Nuno Rubim. (Aliás, as duas mulheres são primas).

Cherno, se souberes notícias do José o Eliseu não o conheço pessoalmente), dá-lhe um grande abraço meu e transmite-lhe o meu convite para ingressar na nossa Tabanca Grande.E, já agora, que estamos em maré de mantenhas, dá também um abraço ao Cadogo Pai, membro da nossa Tabanca Grande.

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7176: (In)citações (20): Os verdadeiros filhos da Guiné (Cherno Baldé / José Belo)

(**) Vd. entrevista dada por Elisée (ou Eliseu) Turpin ao portal Notícias Lusófonas  > 20 de Janeiro de 2003 > Pai de duas nacionalidades foi assassinado há 30 anos , de que se reproduzem, com a devida vénia,  alguns dos excertos mais significativos:

(...) Quando se assinala o 30º aniversário da "partida" do "pai" [, Amílcar Cabral,] das nacionalidades da Guiné-Bissau e Cabo Verde, as certezas da memória "esmagam" as dúvidas sobre a orquestração do assassínio do guerrilheiro. Apenas a especulação aponta possíveis cenários para o que se passou naquele dia [20] de Janeiro [de 1973], mas a memória de Elisé Turpin, um dos "camaradas" de Amílcar, permite seguir, com assinatura, os mais importantes momentos da "gestação" da independência da Guiné-Bissau.
 
Após a longa batalha de 11 anos travada pelos guerrilheiros liderados por Cabral e quase três décadas de independência, foram muitos os heróis que ficaram esquecidos num "canto da história" da Guiné-Bissau, permanecendo Amílcar como o regaço onde todos se recolhem.
 
Foi por "convicção" que, logo após a independência, EliséeTurpin se retirou para o seu "canto da história" e é para "ajudar a, finalmente, cumprir o ideal de Amílcar Cabral" que agora, com 72 anos de idade, regressa através de um passeio pela memória.
 
"Não há futuro possível - para a Guiné-Bissau - sem os ecos do passado a marcar o passo da história", considera Turpin, e é com essa convicção que, na sua casa, a 50 metros da sede do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), situada na Praça dos Heróis da Liberdade da Pátria (ex-Praça do Império), em Bissau, activa a memória.
 
Elisée Turpin conta, enquanto fundador do PAIGC ao lado de "mais cinco camaradas: Amílcar e Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes e Júlio Almeida", o que foram os primeiros passos desta organização política que viria a ser o pilar central da "libertação da Guiné-Bissau".  Mas há ainda outro "pormenor" que enfatiza o papel de Turpin na criação do PAIGC: "Sim, posso ser considerado como o único indivíduo que esteve na fundação do partido e que era genuinamente cidadão guineense. Os outros eram todos filhos de pais cabo-verdianos".

O surgimento do PAI (Partido Africano para a Independência), depois transformado em PAIGC na Guiné-Conacri, acontece "por vontade e iniciativa de Amílcar Cabral", então jovem engenheiro agrónomo regressado dos estudos em Portugal, em 19 de Setembro de 1956.  Antes do surgimento do PAI, havia na então Guiné portuguesa muitas outras organizações ou movimentos de tendência nacionalista que aspiravam à libertação do país.  Tudo no seguimento dos ventos da libertação que sopravam nas outras províncias coloniais, sobretudo as províncias vizinhas do território da Guiné-Bissau: Senegal, Gana e Guiné-Conacri.

"Mas, verdade seja dita, o PAI foi de longe a organização melhor estruturada, conseguindo rapidamente granjear a simpatia dos rapazes da altura, que encontraram em Amílcar pensamento e personalidade, o estandarte que secretamente procuravam para poder seguir", diz Turpin com um leve, mas mal disfarçado, ar de orgulho por ter vivido estes momentos ao lado do mítico guerrilheiro.

Tudo começou com "um simples clube de futebol (não se recorda do nome) do qual faziam parte os fundadores do partido" e que rapidamente foi transformado num "espaço de consciencialização dos moços da altura para uma ideia de libertação do país".

"Lá partíamos nós, com as coisas do futebol à frente, mas com as coisas da libertação da Pátria atrás, dos lados, por cima, por baixo ... cada vez mais, cada vez mais conscientes do pontapé certeiro que estávamos a dar na História", diz Turpin.  Iniciativas deste tipo já aconteciam no Senegal, para onde muitos dos guineenses se deslocavam em visitas familiares, sobretudo Turpin, que, então, tinha familiares na administração pública em Dacar (capital).

Com tudo isso, cita de memória, Cabral dizia: "Olhem que os portugueses nos estão a enganar com alguns privilégios que dão a um grupo reduzido de indivíduos, enquanto a grande parte da população é explorada e maltratada".

"Devemos avançar para a independência", defendia Cabral, ainda citado por Turpin, mas acompanhava sempre esse desígnio com a exigência de uma "independência negociada". Ou seja: "Com diálogo. Sem violência".  Cabral era um "profundo cultivador do diálogo e da tolerância", frisa, admitindo algumas saudades desta forma de estar nos dias de hoje.

Chegado a este ponto do "escorrer" das memórias, Elisée Turpin fala também da polémica que é, na Guiné-Bissau, quase da idade do PAIGC: Quem foram, de facto, os fundadores do partido?

Sobre a história da dúvida de quem foram os fundadores do partido responde um dos eleitos: "Havia muitas pessoas com as quais Cabral vinha mantendo um relacionamento mais ou menos próximo mas, no acto da fundação do partido, Cabral fez uma selecção de pessoas da sua inteira confiança".

"Não se podia expor muito ao risco da PIDE (...) desconfiar da nossa actividade", recorda. "Todos nós éramos funcionários públicos na altura. Cabral era engenheiro agrónomo, Júlio Almeida, prático agrícola, Fernando Fortes, aspirante nas alfândegas, Aristides Pereira, chefe de administração e eu era guarda-livros", diz, aliviado, como que dando por sepultada a dúvida sobre este assunto.

"Lembro-me que, após a fundação do PAI, a PIDE quase que não saía do nosso encalço. Sabia que estávamos “contaminados” com o “vírus” dos movimentos de libertação, que se tinha já instalado noutras paragens de África. Mas, graças a Deus, sempre soubemos esconder os nossos propósitos", adianta.  No início, diz, "começámos (1956/57) logo os trabalhos de mobilização com os Balantas (a mais representativa etnia da população guineense) de Brá e Portegol, e ainda na região de Mansôa".

Fingiam que iam caçar coelhos e perdizes, mas a caçada era outra: "Aproveitávamos para falar com os rapazes sobre os propósitos do partido". Isto é, mobilizar a juventude para seguirem para os campos do partido na Guiné-Conacri". 

Nesse trabalho de mobilização a favor do PAI os "camaradas" contaram com a ajuda de portugueses que estavam contra a ditadura fascista de Oliveira Salazar, alguns liberais, outros revolucionários do PCP que estavam na Guiné, "como é o caso de José Tomás Pires, Fortes Teixeira, Filipe Pomba Guerra, o próprio chefe do posto da polícia, de nome Liberato (...) todos estavam do nosso lado, só que de forma bem disfarçada".

Houve mesmo um administrador português que, na altura, só não prendeu Amílcar Cabral porque não quis, pois sabia muito bem das suas actividades "subversivas" e um dia chamou Cabral à sua residência, conta Turpin, para lhe dizer: "Rapaz, sei tudo o que andas a fazer mas não te prendo porque gosto muito de ti. Vê lá no que te metes".  Esse administrador era Diogo José Pereira de Melo [e Alvim, e não Antunes, como por lapso consta no portal , governador da Guiné entre 1954 e 1956].

O objectivo primeiro e último do partido de Cabral foi sempre a independência da Guiné que, ainda segundo Turpin, dizia: "Se a independência tiver que passar por um partido marxista, então vamos tê-lo".  E foi o que foi. Mas Cabral fazia também a distinção entre ter "um partido de cariz marxista e ser marxista", o que "ele mesmo dizia - o próprio Turpin o ouviu afirmar -, no princípio, que não era".

O contacto de Elisée Turpin com Cabral esfriou muito quando ele decide transferir a base do partido para Conacri, onde decidiram mudar a denominação do partido de PAI  [, Partido Africano da Independência,] para PAIGC.  "Eu não participei na luta armada, ou seja, nos tiros. Não porque não quisesse, o facto foi que achei que podia ser útil ao partido estando cá para outras tarefas, tais como a mobilização de outros camaradas", frisa.  E acrescenta, arredando qualquer hipótese de ser encarada a afirmação como uma justificação: "Fui eu quem trouxe de Dacar aquele que foi o primeiro instrutor dos guerrilheiros guineenses em Conacri, o comandante Luciano Ndaw. Esse senhor já tinha feito a tropa colonial portuguesa e, portanto, sabia bem da poda".

"A minha ligação a Cabral resumiu-se à estadia dele em Bissau. Depois da sua partida para a Guiné-Conacri praticamente deixamos de nos corresponder. Passei a falar mais com o irmão dele - Luís Cabral (...) - e com Rafael Barbosa que na altura era responsável pela chamada «zona zero» de mobilização, hoje a capital do país", Bissau.

"Não posso falar muito do partido depois da independência porque, praticamente, desliguei-me, mas uma coisa sei: o partido que Cabral e nós fundámos queria mais de que isto que hoje temos. O nosso sonho era transformar a Guiné numa Suíça de África, pois julgávamos, e eu continuo a julgar, que o país tem potencialidades para tal", diz em tom de desafio às "novas gerações". (...).

[ Fixação / revisão de texto / destaque a cor: L.G.]

(***) Tenho um exemplar do livro escrito pelo António Lobato, Liberdade ou evasão: O mais longo cativeiro da guerra (Amadora, Erasmos, 1995), com a particularidade de ter duas dedicatórias, belíssimas. 

Uma, escrita pelo punho do Miguel Pessoa, que me ofereceu um exemplar que tinha a mais em casa, e que diz esta coisa singela, mas que me tocou, como camarada: 

"Ao Luís Graça, do Miguel Pessoa, alguém que, felizmente, não precisou de escrever um  livro assim. Jun 2009."... 

E, a propósito, vai daqui um grande Alfa Bravo para o Miguel e um beijinho ternurento para a Giselda, que ontem fizeram anos de casados e andaram pelas "minhas terras" da Lourinhã, antes de seguirem, hoje, para o almoço de convívio da Tabanca do Centro, em Monte Real... Que sejam (e)ternamente felizes o Miguel e a Giselda... e que levem para o régulo Joaquim Mexia Alves e demais convivas da Tabanca do Centro os nossos votos de amizade e camaradagem.

A outra dedicatória é do autor e reza assim: 

"A quantos me amam ou odeiam, sem que eu dê por isso; a todos os que amo, sem nunca lhes ter dito; àqueles de quem gosto e que acredito gostarem de mim, (...)".

Do livro do Lobato, tomo a liberdade de transcrever este excerto:

“(...) O comportamento deste homem [o chefe dos sentinelas, Koda, de etnia balanta,] não pode servir de exemplo para qualificar os outros guerrilheiros do PAIGC e muito menos uma parte dos seus responsáveis. 

De entre estes, merecem especial referência Fidelis Cabral, Aristides Pereira, Joseph Turpin e o Tio Lourenço, não só pela sua moderação, sensatez e sabedoria, mas sobretudo pela força do humanismo que deles emana e se repercute em quantos, por razões comuns ou mesmo contrárias, se encontram à mercê das suas decisões. São os homens bons do presente, mas sem dúvida também os do futuro,

"Uma vez por outra , um deles vem falar comigo e procura tranquilizar-me. Joseph Turpin, que passa a maior parte do seu tempo no Cairo, em representação do partido, diz-me que o Papa intercedeu por mim junto do Arcebispo de Conakry, Monsenhor Tchidimbo, o que certamente terá resultados práticos. Mas o tempo vai passando e nada acontece.

"Fidelis, um advogado formado em Portugal, procura convencer-me das razões da sua luta, do respeito e amizade pelo povo português. Afirma que, após a independência, não pretendem ligar-se a ninguém, mas que se isso tivesse de acontecer, só poderiam continuar com os portugueses” (…) (Lobato, 1995, p. 168)